Vanessa Ribeiro

Carolina Martins

Felipe Zular

A <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-adeus-a-roe-49-anos-depois-a-superacao-do-precedente-do-aborto-25062022">Suprema Corte dos EUA reverteu neste ano o precedente </a>Roe v. Wade, que, desde 1973, <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/rosa-weber-libera-acao-sobre-descriminalizacao-do-aborto-para-julgamento-12092023">garantia o direito ao aborto</a>. O fato gerou protestos e acirrou o debate sobre o avanço dos direitos das mulheres e, mais recentemente, o suposto financiamento de agendas conservadoras, <a href="https://theintercept.com/2022/10/01/roe-amazon-google-facebook-independent-womens-forum/">inclusive pelas chamadas Big Tech</a>.
Vale lembrar que, no julgamento de Roe v. Wade, o direito ao aborto derivou justamente do direito à privacidade, conforme compreendido à época. Afinal, em 1973, a Suprema Corte norte-americana já havia julgado os casos Olmstead v. United States (1928) e Katz v. United States (1967), tendo assegurado, neste segundo caso, que a intimidade é inviolável. A corte entendeu existir, portanto, um direito de ser deixado sozinho (“right to be let alone”), na linha do defendido no icônico artigo “The Right to Privacy” (1890), de Samuel Warren em coautoria com o juiz da Suprema Corte Louis Brandeis, que já havia escrito voto dissidente sustentando essa tese no caso Olmstead.
Essa visão de privacidade como uma obrigação negativa já encontrava respaldo, igualmente, em instrumentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966.
Por outro lado, quando do julgamento de Roe v. Wade, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha ainda não havia julgado o famoso caso sobre o censo populacional (de 1983), por meio do qual estabeleceu o conceito de autodeterminação informativa que fundamenta a compreensão atual do direito à privacidade e, mais especificamente, inspira a regulação moderna de proteção de dados pessoais. Até então, tampouco havia sido debatido nos EUA o caso Kyllo v. United States (2001), em que a Suprema Corte foi provocada a pensar sobre como as inovações tecnológicas tornam desnecessária a invasão física em si para concretizar a violação da intimidade.
Em outras palavras, o direito ao aborto teve a sua origem atrelada a uma visão de privacidade em um mundo onde a atualíssima distopia de George Orwell no livro "1984" ainda parecia ficção científica.
De qualquer modo, se a concepção do direito ao aborto esteve, desde o início, relacionada ao direito à privacidade, como então a reversão do precedente Roe v. Wade pode afetar a privacidade das mulheres em uma realidade de constante controle e ampla exploração de dados pessoais?
Decerto, não é mais novidade que no ambiente virtual as pessoas são rastreadas em tempo real e a análise das suas informações permite que sejam categorizadas em determinado grupo, tal como o de pessoas grávidas. Aplicativos de saúde e de controle menstrual, por exemplo, coletam informações suficientes para identificar uma gravidez e até mesmo inferir quando uma gestação foi interrompida. O mesmo vale para dados gerados a partir do uso de mecanismo de busca como o Google ou de redes sociais como o Instagram. 
O documentário “Terms and Conditions May Apply’’ (Sujeito a Termos e Condições, em tradução livre) narra um caso em que um pai furioso se dirige até uma loja da Target para reclamar acerca do envio de promoções de produtos para bebês para a sua filha sob o argumento de que o marketing da empresa estaria incentivando a adolescente a engravidar. A jovem, contudo, já estava grávida, e a empresa, em realidade, tinha conhecimento desse fato em razão daquilo que revelavam os seus dados de hábito de pesquisa e consumo.
Não obstante tais possibilidades ou, melhor dizendo, facilidades proporcionadas pela tecnologia atual, as gigantes do setor de tecnologia ainda nada disseram de forma assertiva sobre a <a href="https://fortune.com/2022/06/27/abortion-digital-data-privacy-apple-google-facebook-roe-wade/">mudança de entendimento em relação ao aborto</a> e quais os seus desdobramentos no que diz respeito às suas práticas e políticas. A título ilustrativo, nada anunciaram sobre como irão proceder nos casos de pedido de divulgação de dados para fins de persecução criminal nesse contexto. Ou seja, se aos olhos dessas empresas tudo que for registrado no ambiente digital poderá ser utilizado como ferramenta para, como <a href="https://www.washingtonpost.com/business/online-privacy-becomes-critical-if-roe-v-wade-is-overturned/2022/05/04/ac183740-cb96-11ec-b7ee-74f09d827ca6_story.html">já apontado pelo senador estadunidense Ron Wyden</a>, controlar o corpo das mulheres.
É evidente que o desvio de finalidade para facilitar a vigilância, sobretudo levando a investigação e prisão de cidadãos, acarreta sérias questões de violação de direitos fundamentais, em particular de privacidade. Ademais, o medo da vigilância constante tende a inibir comportamentos como a busca de informações relacionadas a saúde e bem-estar da mulher, educação sexual e até mesmo planejamento familiar, acarretando prejuízos a quem já tanto teve que batalhar para a conquista de direitos. 
O assunto, portanto, não deve ser esquecido diante dos riscos que impõe para mulheres – diga-se, ao redor do mundo, em especial por estar umbilicalmente ligado à privacidade. 
No âmbito estatal, faz-se necessário estabelecer salvaguardas e limites para o uso de informações relacionadas ao aborto, em especial para decidir sobre as formas como devem ser compartilhados os dados pessoais de pessoas que buscam interromper uma gestação e o seu uso para fins de persecução penal.
As empresas, por sua vez, podem melhorar práticas de governança, visando aumentar a transparência sobre o compartilhamento de dados pessoais em suas políticas de privacidade e implementar medidas de segurança via técnicas de anonimização e descarte de dados pessoais.
Já no plano individual, as pessoas podem se valer mais amplamente de plataformas de mensagem que usem criptografia e se atentar para a possibilidade de navegação anônima na Internet.
A tarefa será certamente árdua e envolverá apoio constante entre empresas, governos e indivíduos para evitar, a pretexto da reversão do precedente Roe v. Wade, seja definitivamente suprimida qualquer possibilidade de escolha de quem quer que seja, em qualquer contexto sobre o uso de seus dados pessoais.

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JOTA

Empresas podem melhorar práticas de governança

Aborto e direito à privacidade: cuidados após a reversão de Roe v. Wade

Como reversão de Roe v. Wade nos EUA afeta a privacidade das mulheres em uma realidade de constante controle e exploração de dados pessoais?