José Rodrigo Rodriguez

<h3>Direito e crenças morais</h3>
Em <a href="https://catarinas.info/crencas-morais-predominam-nos-processos-judiciais-por-aborto/">entrevista recente ao portal Catarinas</a>, Fabiana Severi, professora de direito na USP Ribeirão Preto, falou sobre a pesquisa “Aborto no Brasil: Falhas Substantivas e Processuais na Criminalização das Mulheres”, que examina casos de acusações por crime de aborto nos termos do Art. 124 do Código Penal.
A pesquisa mostra que, mesmo em casos em que o aborto é permitido por lei, há agentes de saúde, magistrados e integrantes do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-publico">Ministério Público</a> que põem suas crenças morais acima do direito positivado para criar obstáculos e criminalizar mulheres que procuram tratamento médico em razão de complicações relacionadas a abortos.
A pesquisa levanta um problema que tem sido central para a reflexão filosófica a respeito do direito há alguns séculos, qual seja, é possível deixar de cumprir leis que sejam consideradas claramente injustas? É aceitável deixar de aplicar uma lei válida, ou seja, criada por uma autoridade competente, em nome de valores considerados superiores às leis?
Ao fazer esta pergunta, faremos um esforço para nos colocarmos no ponto de vista dos agentes de saúde e das autoridades estudadas pela pesquisa para especular: será que essas pessoas não teriam agido em nome da justiça? Em nome de uma ideia que exigiria delas impedir a prática de aborto, mesmo desrespeitando abertamente a lei? Teriam elas agido, quem sabe, não com a intenção primária de prejudicar as mulheres, mas para evitar que elas violassem regras consideradas mais importantes do que as leis?
Se desrespeitar a lei em nome de uma suposta injustiça extrema for admissível, como queria Gustav Radbruch, uma nova pergunta precisa ser respondida: o que é justiça? Justiça é o que uma suposta maioria religiosa entende como justiça? Ou seria a justiça um valor objetivo, nem cristão nem laico, que deve prevalecer em face de qualquer outra crença, individual ou coletiva?
Ainda, seria a justiça o que está previsto nas leis, ou seja, o conceito de justiça se confundiria com as escolhas sociais que se transformaram em leis e são modificadas ao longo do tempo? Neste último caso, quando previstas em lei, tais escolhas ganham, muitas vezes, a forma de princípios cuja função é organizar nosso projeto constitucional, indicando os objetivos a serem perseguidos pelo Estado e pela sociedade.
Assim, pergunta-se: devemos ou não submeter as normas jurídicas ao controle de fatores externos às leis, ou seja, a fatores não jurídicos?
Em uma primeira aproximação, a resposta é óbvia: é claro que não. A vontade do povo expressa nas leis, criadas por seus representantes eleitos para o Parlamento, deve ser respeitada e as leis devem ser sempre aplicadas aos casos concretos. O cidadão ou a autoridade que deixa de aplicar as leis em favor de regras de outra natureza – por exemplo, crenças religiosas – está se apropriando da vontade do povo e frustrando uma das características centrais do Estado de Direito: ser o governo das leis e não de pessoas.
Assim, ainda que injusta, a lei deve ser cumprida até que outra lei a revogue, renovando-se, assim, a expressão da vontade da soberania popular. No caso dos juízes, fazer diferente significaria desrespeitar a separação de Poderes e recair no que se costuma chamar, sem muita precisão, de ativismo judicial.
Mas talvez a resposta a esta questão não seja tão simples assim. Vou deixar de lado os casos em que há dúvidas sobre a melhor interpretação das leis para focar o problema que me interessa. Pois se houver divergências sobre o sentido de um texto legal, divergências entre autoridades e entre cidadãos e cidadãs, o problema se põe de outra maneira.
Neste caso, será preciso debater qual é o critério para decidir a melhor interpretação de um texto legal, problema que abre outra discussão importante que também ocupa a reflexão filosófica sobre o direito há mais de um século.
Mas o que nos interessa pensar neste momento são casos em que uma pessoa pretenda deixar de cumprir uma lei cujo texto seja claro, ou seja, cujo sentido não seja questionado por uma determinada comunidade de juristas, cidadãs e cidadãos. Em casos como esse, os casos relatados na pesquisa, estamos diante de um comportamento lícito ou ilícito? As pessoas que agem assim devem ser punidas? Há ao menos três respostas possíveis para essa pergunta.
<h3>Ilicitude e desobediência civil</h3>
Como já dito acima, uma alternativa é dizer que se trata de um comportamento ilícito sem mais nada, ou seja, um comportamento reprovado pela sociedade e pelo direito. É claro, a história nos ensina que o germe do direito novo está nas ilicitudes atuais. Os sindicatos nasceram ilegais, a prática de sodomia já foi ilegal e assim tantas outras condutas que hoje são aceitas pela sociedade e pelo direito.
Pode ser que a ação de impedir o acesso ao aborto legal seja o germe de uma república cristã extremista futura a qual certamente suprimiria o pluralismo político, o pluralismo religioso e combateria a diversidade social. Mas, até mesmo por essa razão, esta é uma conduta ilícita para o nosso estado democrático de direito.
Outra possibilidade é afirmar a ilicitude do comportamento, reconhecendo que se trata de um ato de desobediência civil que pode estar sendo praticado em nome, por exemplo, da luta por direitos fundamentais. Um ato praticado para dar publicidade ampla a uma injustiça que, por isso mesmo, se mostrará chocante para a sociedade.
Em determinados casos, diante da importância coletiva deste tipo de ação, o Poder Judiciário brasileiro tem deixado de punir os agentes que a praticam. Tem sido este o caso de ocupações de prédios públicos e fazendas improdutivas. Ocupações que não visam a apropriação privada, mas tem a finalidade de exigir que o Estado cumpra a Constituição, implementando políticas públicas – de planejamento urbano e de reforma agrária – previstas em seu texto.
A nosso juízo, não é razoável classificar os atos em análise como de desobediência civil. Não estamos diante de uma injustiça evidente, de um desrespeito a direitos fundamentais que choque a sociedade brasileira e exija ações para efetivar o texto constitucional, cuja função central é promover o convívio em uma sociedade pluralista e diversa.
Não é por outra razão que a CF 1988 afirma o pluralismo político como fundamento da República (art. 1º, V) e combate todas as formas de discriminação (art. 3º, IV).
Argumentar, como fazem alguns, que a luta contra o aborto se justificaria em nome dos direitos do nascituro, fundados na exigência de proteção absoluta da vida humana, significaria, logo de saída, negar a legitimidade das posições discordantes e tentar apresentar o que é uma divergência política e religiosa atual como se fosse uma injustiça evidente para todos e para todas.
Este é um argumento antidemocrático, pois, justamente, há divergência sobre o aborto na sociedade brasileira. Há visões diversas a respeito do grau de proteção que o direito deve dispensar à vida intrauterina e à vida humana em geral. Em uma democracia, não é aceitável um argumento que simplesmente negue a legitimidade de todos os demais argumentos e pretenda vencer a disputa por um W.O. retoricamente fabricado. Cada pessoa deve poder viver de acordo com a sua consciência, exceto quando viver assim prejudicar o convívio democrático.
“Conceda-me um pressuposto apenas; conceda-me Deus que eu te provarei todo o resto!” Alguém que pretendesse vencer um debate desta maneira só não seria objeto de riso pelo medo que todos temos de religiosos fundamentalistas. Sabemos do que o fundamentalismo religioso, inclusive cristão, é capaz e ninguém gostaria de ser alvo de sua ira santa e assassina.
Nossa conclusão seria diferente, é claro, se a sociedade brasileira condenasse de fato o aborto em toda e qualquer hipótese. Se prevalecesse a visão moral de que a vida humana deve ser preservada de forma absoluta. Mas, nesse caso, teríamos que admitir a hipótese absurda de que, 85 anos depois do Código Penal de 1940, a sociedade brasileira teria se tornado mais conservadora, mais religiosa e, mais do que isso, teria se tornado uma sociedade religiosa fundamentalista, o que soa completamente absurdo em face da modernização do país desde a década de 50 e contraria a CF 1988.
Não há base empírica para afirmar que a sociedade brasileira é hoje mais religiosa do que em 1940 e desejaria, portanto, impor uma tábua de crenças única a todos e todas. Só faz sentido dizer o contrário, especialmente depois da consagração do voto universal pela Constituição de 1988. A partir desse momento, forças políticas as mais variadas, em nome de crenças religiosas ou não, passaram a disputar o poder no Brasil, nos municípios, nos estados e na federação. Além disso, foi afirmada, fora de qualquer dúvida, a igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Vale a pena lembrar que o Código Penal de 1940 foi aprovado na primeira metade do século durante uma ditadura. Sua legitimidade democrática é, portanto, questionável: a sociedade brasileira não participou livremente de sua confecção. Além disso, nesse momento, a mulher ainda era considerada subordinada ao marido por ser relativamente incapaz. De fato, as mulheres só tiveram seu direito de voto garantido em 1936 e até hoje há obstáculos para que ocupem plenamente o espaço político.
Convenhamos, se já havia a permissão de abortar na legislação produzida por uma ditadura em um Brasil que via a mulher como subordinada ao homem, a matéria, nos dias de hoje, deve avançar e não retroceder. Ao contrário do começo do século 20, vivemos hoje em um país urbano, marcado pelo pluralismo político e religioso. Não somos mais um país cristão em que o direito de votar é restrito a alguns grupos.
Houve um tempo no ocidente em que ser ateu era impensável, inconcebível:  só havia católicos. As transformações sociais no mundo e no Brasil fizeram com que surgissem várias maneiras de lidar com e religião, até mesmo não acreditar em nenhuma delas. Por isso mesmo, a Constituição brasileira protege todas as pessoas, todos os seres aos quais se possa atribuir dignidade humana (art.1º. III), sem admitir discriminações de nenhuma natureza.
Exceto, é claro, as necessárias para permitir um convívio democrático, definido pela CF 1988 em sua lista de direitos fundamentais e em seu modelo de separação de poderes. Por exemplo, pode-se discriminar para combater desigualdades substantivas que impeçam o exercício dos direitos fundamentais, discriminações entre pobres e não pobres, construídas para instituir políticas públicas de combate à pobreza.
<h3>A invalidade do crime de aborto</h3>
A terceira alternativa para responder à questão proposta neste texto, qual seja, “é aceitável afastar uma lei em nome da justiça?”, exige questionar se o texto normativo em questão não teria caído em desuso em razão de transformações profundas na sociedade para o qual ele foi criado. Tratar-se-ia de argumentar, portanto, que a imagem de sociedade que motivou a edição do texto teria se modificado a ponto de ele perder sua razão jurídica de ser, ou seja, dele perder sua validade.
Este argumento pressupõe que a validade e o sentido dos textos legais são materialmente dependentes da sociedade, ou seja, dependem do sentido que uma sociedade em determinado contexto confere a eles. Precisam de uma ancoragem material. A validade não é apenas uma relação formal entre normas primárias e secundárias, mas sim uma relação material que depende, para existir, do fato de que a autoridade da norma seja aceita por uma comunidade política.
Em uma palavra, a validade de uma norma é um fato ao qual a comunidade política atribui sentido jurídico.
A relação entre a validade do direito e a sua aceitação por uma determinada comunidade política - que chamaremos de justiça em sentido construtivo-material - é hoje aceita pela melhor teoria do direito. Ainda que haja divergências, basta um simples experimento mental para perceber a correção desta posição. Vejamos: se todas as pessoas e todas as autoridades públicas deixarem de tratar a Constituição como um texto obrigatório, nossa Carta Magna não passará de um pedaço de papel ou de letras em uma tela iluminada.
Outro exemplo simples: por que um homem de capa que esteja de pé em um estrado no meio de uma sala tenderá a ser identificado como juiz de direito e não como Batman? Explico: porque a presença dessa pessoa nesse local vestindo esses trajes é regulada por uma série de normas jurídicas, regras que só fazem sentido em determinada sociedade e contexto.
A obrigatoriedade de usar toga e capa, diga-se, é algo recente no Brasil. Há poucos anos, um juiz poderia muito bem ser confundido com um Batman de araque e terminar expulso da sala de audiências por estar usando uma roupa ridícula.
Fica claro, portanto, que a validade e o sentido de um texto legal são materialmente dependentes da sociedade para a qual foi criado. Não faz sentido algum desligar o texto legal de seu contexto e refletir sobre ela em abstrato. Por isso mesmo, como argumentamos há pouco, não há como criar obstáculos para exercitar as hipóteses de aborto legal em nome de supostas mudanças na sociedade brasileira.
Faz mais sentido dizer o contrário: o Código Penal de 1940, neste tema, perdeu o sentido em razão das transformações que a sociedade brasileira sofreu desde então. Por isso mesmo, o aborto não deve mais ser criminalizado. E não afirmamos isso porque o consideramos filosoficamente moral ou imoral: isso não importa para o direito de uma sociedade democrática que deve, justamente, garantir que várias visões de mundo possam conviver.
Também não afirmamos tal coisa para atender à agenda deste ou daquele movimento social. No fundo, para o direito, pouco importa de onde nasceu essa demanda. O direito não funciona no registro da política, por isso mesmo, podemos chamar de ativista a corte que confere a vitória moral completa a uma determinada força política e de democrática a corte que procura produzir arranjos que permitam que várias formas de viver convivam na mesma comunidade política.
É claro, devemos ser gratos aos indivíduos e grupos que estão chamando nossa atenção para esta evidente injustiça, para uma situação que ameaça a legitimidade de nossa Constituição. É claro também que a recente organização política de grupos antes pouco ativos politicamente é que está permitindo que sejam corrigidas injustiças graves como essa.
O fato é que, objetivamente, a sociedade em que vivemos se transformou a tal ponto que considerar o aborto um crime significa criar um obstáculo inaceitável para que o Brasil, plural e diverso, viva de acordo com os seus valores reais, ou seja, que viva em meio à controvérsia que historicamente se instalou sobre o tema.
<h3>A inaceitável inércia do Legislativo e do Judiciário</h3>
Dizer o contrário, tendo em vista as transformações da sociedade brasileira, significaria obrigar juridicamente um grupo social a viver de acordo com os valores de outro. Significaria adotar uma posição ativista, de vanguarda moral da sociedade, não de instituição responsável por participar da construção plural e diversa do sentido material de justiça.
Por isso mesmo, ao afirmar a invalidade da criminalização do aborto não se está favorecendo o movimento social tal em desfavor do movimento social qual. Em uma sociedade plural e diversa, não é papel do Judiciário conceder vitória política a quem quer que seja, mas sim promover um convívio democrático entre os diferentes.
A única vitória que cabe ao direito conceder a alguém é a vitória do pluralismo político e da diversidade humana contra qualquer pretensão de unidade de valores, pretensão que tende a ser autárquica, contrária à democracia.
A questão, neste caso, insistimos, é de evidente inadequação entre a materialidade da vida social do Brasil de hoje e o Código Penal de 1940, que perdeu o sentido jurídico que possuía em sua origem. Nesta parte, tal Código deve ser considerado, à luz da CF 1988, simples tinta sobre o papel, sem força vinculante alguma, ou seja, inconstitucional.
E notemos que a Constituição Federal não diz nada a respeito do aborto e poderia tê-lo feito se esse instituto fosse assim tão importante. É marca de nossa Carta o caráter analítico. Além disso, a Constituição de 1988 protege a vida, mas não a define. Se o poder constituinte, que regulou tantos temas, quisesse, ele teria criado uma definição rígida de vida. No entanto, preferiu deixar para o legislador ordinário espaço para definir o grau de proteção que deve ser dedicado à vida humana nas mais diversas circunstâncias.
Diante do que foi dito, fica claro que a omissão do Parlamento e do Judiciário, até o presente momento ao menos, permitindo que a criminalização do aborto seja tomada como válida, está em franco desacordo com a Constituição, interpretada da forma mais adequada, ou seja, de forma congruente com a sociedade brasileira atual.
Espero que, em breve, o STF corrija esta injustiça, mas este não é o assunto desse texto. Para o que nos importa, cabe concluir que não faz sentido criar obstáculos para o exercício dos casos de aborto legal em nome das crenças morais da sociedade brasileira, muito ao contrário. Faz mais sentido concluir, observando a sociedade brasileira atual, que o crime de aborto é inconstitucional e, ademais, injusto à luz do imperativo de um convívio democrático.

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JOTA

Não faz sentido criar obstáculos para o exercício dos casos de aborto legal em nome de crenças morais

Aborto e convívio democrático

Não faz sentido criar obstáculos para o exercício dos casos de aborto legal em nome de crenças morais da sociedade brasileira