Cristiano Paixão

A cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro foi marcante em vários aspectos: a criatividade artística, o esplendor visual, a construção de uma narrativa e a originalidade da apresentação como um todo fascinaram os espectadores e provocaram uma série de manifestações elogiosas no Brasil e no exterior. Podemos também considerar a abertura da Olimpíada como um interessante exercício de autodescrição do Brasil contemporâneo, em vários planos distintos.
Numa obra recente, o historiador Serge Gruzinski elegeu as cerimônias de abertura e encerramento de grandes eventos – especialmente as olímpicas – como uma das formas contemporâneas de se fazer história (uma resenha informativa do livro de Gruzinski pode ser encontrada em http://next.liberation.fr/livres/2015/01/21/passes-par-ici-passes-par-la_1185670). Formam-se, nessas festividades, grandes painéis narrativos que possuem múltiplas finalidades. Por um lado, são construídas de forma minuciosa e exaustivamente calculadas em razão dos tempos globais de transmissão e disseminação pelas redes sociais. Por outro lado, apresentam narrativas poderosas sobre o passado e o presente: raízes históricas são postuladas e explicitadas, com escolha de personagens, processos e eventos singulares na trajetória do país-sede.
Além disso, há uma dupla dimensão da recepção da narrativa proposta nas cerimônias de abertura. Essa dualidade é composta, em primeiro lugar, pela forma que o resto do mundo recebe a descrição histórica propiciada pelo espetáculo da abertura. Aqui a preocupação está em saber como os demais países (que não o anfitrião) devem reconhecer a história ali contada. Em segundo lugar, e não menos importante (mas talvez menos visível), há a preocupação em compreender como o próprio país-sede se observa na complexa coreografia da solenidade.
E aqui as questões relacionadas à abertura da Rio 2016 se tornam muito fecundas e importantes. As escolhas da cerimônia foram bastante claras, e talvez nem precisassem ter sido vocalizadas pela atriz Regina Casé. Optou-se por um registro transparente da história brasileira, com pouca mitologização, e principalmente decidiu-se enfatizar a imensa diversidade cultural, étnica, racial, religiosa e artística que caracteriza o Brasil no passado e no presente.
Como espetáculo destinado a um impacto imediato e global, a cerimônia de abertura das Olimpíadas também nos provoca em relação ao direito. Como traduzir juridicamente as aspirações por reconhecimento surgidas numa sociedade multicultural e complexa como a brasileira? Como o passado vivido afeta as opções do presente (que visam ao futuro)? Uma indicação nos é dada por uma poderosa ideia: a relação entre as gerações. No momento em que o sambista da velha guarda, utilizando uma caixa de fósforo como instrumento musical, evoca os nomes do samba em frente a um garoto que segue o ritmo com enorme facilidade, percebe-se que a cerimônia é, no fim das contas, uma representação poderosa da história. A partir das raízes africanas do samba até as inúmeras releituras contemporâneas, verifica-se uma trajetória em que se acumulam lutas e demandas, derrotas e vitórias, que foram descritas (e continuam a ser) por compositores, intérpretes e, principalmente, por amplos setores da sociedade na sua incessante produção de cultura.
Se o diálogo intergeracional for apropriado pelo direito (e por suas instituições), seria o caso de perguntar: quem, até aqui, escreveu a narrativa histórica do direito brasileiro? Quem foram os protagonistas? A resposta a essas questões não existe de modo claro – e precisa ser construída a cada momento. Mas algumas pistas nos foram dadas pela própria festa de abertura: nunca houve tanto contraste (visual, cultural, político) entre a vitalidade e o drama do que se representava no palco e as figuras graníticas e datadas dos ocupantes da tribuna de honra do Maracanã.

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Abertura Jogos Olímpicos: sentidos políticos e jurídicos

Democracia e sociedade