Fabrício Reis Costa

“A matança se torna mais fácil para os seres humanos se o adversário é primeiro desumanizado. De fato, tal desumanização oferece uma forte defesa contra a repulsão emocional de matar. É mais fácil matar quando se está convencido de que o inimigo é sub-humano ou de certa forma fundamentalmente mau ou dispensável”<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>.
Cresce, em nossa pátria mãe tão distraída, o ideário irracional sobre a necessidade de se fazer justiça a qualquer custo, a fórceps e sem medida de consequências. Fruto de uma constante sensação de insegurança, ondas de violência e irracionalidades por todos os lados. Infelizmente, com o afloramento dos debates políticos por ocasião das eleições, propostas oportunistas se fizeram presentes e, com elas, questões ignóbeis e, porque não dizer, ilegais.
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Nesse espectro, o governador eleito do Rio de Janeiro, ex-juiz de direito, Wilson Witzel entendeu por bem autorizar policiais a “abaterem”<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a> pessoas que portem fuzis, sem que respondam por homicídio. Segundo o então candidato ao Palácio Guanabara, na hipótese dada, o policial treinado para atirar a longas distâncias e matar – ou o “sniper”, como ele prefere dizer - estaria agindo em legítima defesa. No entanto, no ordenamento jurídico brasileiro e, mais objetivamente, em nosso Código Penal, tal entendimento não encontra qualquer respaldo.
Por questão de honestidade intelectual neste momento de embate, transcreve-se a ideia: “A autorização está no artigo 25 do Código Penal: o policial estaria agindo em legítima defesa de si próprio e da sociedade para repelir uma agressão iminente. Não é sair atirando para matar. Acontece que quem está portando uma arma de guerra certamente não está disposto a conversar ou negociar com as forças policiais e está na iminência de matar pessoas inocentes.”<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>
Trata-se, em curtas linhas, de espécie de legítima defesa presumida. Tal entendimento não pode prevalecer, sob pena de se estar em severa afronta ao texto do próprio artigo mencionado em seu argumento. Isto porque a legítima defesa prescinde o uso moderado de um meio necessário para repelir uma injusta agressão que seja atual ou iminente. Veja-se, a proposta do Governador eleito não trata de qualquer moderação e – muito menos – de perigo atual ou iminente, mas, sim, de uso desproporcional para repelir um perigo presumido – para não dizer inexistente.
Ainda, o agente policial que assim agir estaria, segundo a proposta, sujeito às regras do parágrafo único do artigo 23 do Código Penal, ou seja, respondendo pelo excesso culposo ou doloso de sua conduta. Parece claro que um sniper atirando para “abater” busca, de fato, o homicídio daquele que representaria ameaça prática. Fica a dúvida, neste ponto: quem define quando se vê presente tal ameaça? De quem é o poder decisório para atirar? O ‘atirador de elite’ o fará sponte propria? E mais: em um cenário no qual a proposta do também recém-eleito ao cargo da Presidência da República de liberação de armas para indivíduos, como saberá o sniper se o cidadão armado está com uma arma de uso restrito ou não, se o faz com ou sem autorização e se se trata de um “cidadão de bem” ou de uma ameaça? A escolha continuará sendo a partir de um recorte étnico racial e classista? Para esta última pergunta, a Polícia Militar do Estado de São Paulo já tem jurisprudência firmada<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>.
As respostas para essas perguntas parecem, curiosamente, ter sido escritas por Caetano Veloso no ano de 1993, pois é sabido que “presos são quase todos pretos. Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres. E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote5sym" name="sdfootnote5anc">5</a>
A escolha de palavras e de método tomada por Witzel não é novidade e muito menos uma exclusividade deste agente político. Trata-se de atuação cotidiana na contenção de anseios populares por meio do conhecido e já muito mastigado Direito Penal do Inimigo. Para Zaffaroni, “ao revisarmos o exercício real do poder punitivo, verificamos que este sempre reconheceu um hostis, em relação ao qual operou de modo diferenciado, com tratamento discriminatório, neutralizante e eliminatório, a partir da negação da sua condição de pessoa, ou seja, considerando-o basicamente em função de sua condição de coisa ou ente perigoso."<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote6sym" name="sdfootnote6anc">6</a> Assim, estabelecem-se rótulos pré-determinados àqueles que, por sua cor, classe e endereço seriam os inimigos da segurança e paz públicas.
Busca-se, em exercício falho por sua própria natureza, justificar uma atitude brutal e ilegal: o extermínio de “entes perigosos”. Fala-se, como num papo de boteco, sobre o crescente sentimento de “impunidade” e de falta de segurança na sociedade. A política, como a ave de rapina que enxerga a presa a quilômetros de distância, reconhece nessa emotividade o potencial necessário para obtenção e manutenção do poder. Aproveitam-se da situação para chegar ao fato de que o defensor do combate à criminalidade ganha no debate em torno do clamor público.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote7sym" name="sdfootnote7anc">7</a> O que Raymundo Faoro ou Buarque de Holanda pensariam do ano de 2018?
O que se põe nestas breves linhas sequer deveria ser objeto de discussão. É evidente que há meios legais para contenção de empreitadas delituosas, esculpidos pelo legislador em momento de racionalidade e que não se dão pelo mero ceifar de uma vida. Mas os dois requisitos impostos pelo artigo 25 do Código Penal, segundo a proposta do próximo governador fluminense, devem ser esquecidos. 
O caminhar para o Estado policialesco é como o andar do desajuizado vendado em sentido ao precipício: não se pode determinar o momento de parar a caminhada e, quando o mentecapto dá por si, já é tarde demais. Vivemos exatamente esse momento. É preciso retirar a venda dos olhos, muitas das vezes impostas por paixões e medos, e colocar os óculos da técnica racional. Vive-se o tempo em que muitos se olvidam que o Direito Penal é uma ciência e como tal deve ser tratado.
E “este é o grande escândalo”, como nos alerta Zaffaroni: “a enorme medida em que, por ação ou omissão, o direito penal admite e legitima o tratamento de uma pessoa como não pessoa, ou seja, considerada como um ente puro ou coisa perigosa, sem importar conceitualmente (é claro que importa quanto às consequências pessoais) a extensão dos direitos de que a pessoa é privada por causa disso.”<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote8sym" name="sdfootnote8anc">8</a>
Enfim, parece repetitivo, mas em tempos sombrios é dever acadêmico dizer: o Direito Penal tem também, como enunciado em seus princípios, a função precípua de proteger o cidadão do abuso do poder estatal.
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<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> JOHNSON, R. N. “O conceito de agressão”. In: Agressão nos Homens e nos Animais. RJ, Interamericana, 1979, p. 1-33
</div>
<div id="sdfootnote2">
<a href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> Apesar de parecer óbvio, faz-se necessário destacar o significado do verbo abater utilizado.. Trata-se de matar, ceifar a vida. O verbo, como se sabe, é comumente utilizado para se referir à morte de animais de caça.
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> <a href="https://www.conjur.com.br/2018-out-26/pares-witzel-juiz-rigoroso-advogados-autoritario">https://www.conjur.com.br/2018-out-26/pares-witzel-juiz-rigoroso-advogados-autoritario</a> Acesso em 06/11/2018.
</div>
<div id="sdfootnote4">
<a href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> Apenas para que se entenda, em recorte entre os anos de 2014 a 2016, 67% das vítimas de homicídios causados pela Polícia Militar de São Paulo eram pretos ou pardos, enquanto o percentual das demais vítimas pretas e pardas de homicídio doloso fora da atuação policial era de 46%. Conforme demonstra a pesquisa de doutoramento de Samira Bueno Nunes: Trabalho sujo ou missão de vida? : persistência, reprodução e legitimidade da letalidade na ação da PMES. – 2018.
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<div id="sdfootnote5">
<a href="#sdfootnote5anc" name="sdfootnote5sym">5</a> “Haiti”, CD Tropicália 2, 199. Música: Gilberto Gil. Letra: Caetano Veloso.
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<div id="sdfootnote6">
<a href="#sdfootnote6anc" name="sdfootnote6sym">6</a> ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 115.
</div>
<div id="sdfootnote7">
<a href="#sdfootnote7anc" name="sdfootnote7sym">7</a> GÜNTHER, Klaus. Crítica da Pena I. In Revista Direito GV, 2006.
</div>
<div id="sdfootnote8">
<a href="#sdfootnote8anc" name="sdfootnote8sym">8</a> ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 190.
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witzel4

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JOTA

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