Pandemia

A zombaria do Sars-CoV-2, por enquanto, ao nosso fetiche tecnológico

Como contra-atacar e reverter o jogo?

Foto: Warley de Andrade/TV Brasil. Fotos Públicas

Desde 1918, uma senhora tem acompanhado com grande curiosidade o desenvolvimento tecnológico dos Homo Sapiens[1].

Ela estava cansada. Em 1918, ela desferiu um grande ataque biológico contra a humanidade, que ficou conhecido como gripe espanhola. Apesar da alcunha castelhana, a enfermidade ganhou este nome porque a pandemia recebeu, inicialmente, atenção da mídia na Espanha, já que o país não estava envolvido na Primeira Guerra Mundial e gozava de enorme liberdade de imprensa. Curiosamente, na Espanha, a pandemia foi chamada de gripe francesa.

De lá para cá, ela tem desfechado alguns ataques contra mulheres[2], homens e animais, mas nenhum deles com a dimensão daquele de 1918. Afinal, nem precisava, pois a humanidade estava focada na tarefa de auto aniquilação.

Nem tudo foi alegria para a senhora. Igual a todos nós, ela também tem antipatia por determinadas classes profissionais, com ênfase nos médicos e cientistas. A arrogância deles e seus sucessos sempre a incomodaram, eles sempre foram seus reais inimigos.

Nestes 100 anos, a senhora se dedicou à literatura e ao cinema, com atenção nas evoluções tecnológicas dos Sapiens. Vez ou outra, assistia algumas séries de sucesso como The Walking Dead.

Ela acompanhou o surgimento da Inteligência Artificial (IA), algo que tinha visto em filmes e livros de ficção científica, mas que jamais imaginara ser concretizado pelo Homo Sapiens.

Achou graça quando os humanos previram que a IA iria substituir grande parte dos médicos, inclusive os radiologistas. Se divertia com as fake news ligadas à saúde e os gatinhos fofinhos nas redes sociais. Adorou a globalização e a massificação do transporte das massas; agora, os seus patogênicos circulam com uma facilidade nunca antes presenciada. Viu o surgimento da Gig Economy e os aplicativos de transporte de passageiros.

Acompanhou pelo Twitter os insultos de autoridades às vacinas e aos cientistas, seus velhos inimigos.

Se deliciou com o fetiche tecnológico das pessoas, que acreditavam piamente que a tecnologia iria resolver todos os problemas da humanidade.

Em 2019, a senhora natureza, já entediada, depois de ter relido diversos livros e assistido os mesmos filmes, resolveu replicar o grande sucesso de bilheteria de 1918.

Como uma alquimista do mal, ela criou um patogênico, provavelmente oriundo da mutação de material genético de morcegos, serpentes ou pangolins, que o Homo Sapiens deu o nome estranho de Sars-CoV-2. Ela não gostou do nome, achou-o pouco comercial.

Nesta regravação do filme de 1918, a tecnologia está conseguindo entreter os humanos com os mesmos gatinhos fofos e fake news, que tanto ajudam na propagação da desinformação sobre o Sars-CoV-2. A natureza está adorando este quadro, o seu tédio foi completamente embora.

Enquanto parte da população se distrai com os fetiches tecnológicos, alguns Sapiens estão fazendo frente à ofensiva da natureza.

Estes Sapiens, também reeditando o roteiro de 1918, colocaram de lado as crenças tão comuns a nós e contra-atacaram com armas extremamente analógicas, como máscaras, luvas, oxigênio, estetoscópios, ambulâncias, isolamento de pacientes e uso de medicamentos bem antigos.

A maioria dos Sapiens, entretanto, não notou que toda a espécie, e não somente médicos e cientistas, possui uma arma mortal contra o Sars-CoV-2.

Esta arma cabe dentro dos nossos bolsos e tem sido usada durante toda a pandemia para entreter e nos manter trabalhando, o celular.

Alguns países estão usando este equipamento para combater o coronavírus, como Israel[3], Coreia do Sul[4] e China[5]. Por outro lado, esses países também vêm recebendo muitas críticas[6] daqueles que enxergam um risco futuro à privacidade. A natureza torce para que os críticos continuem neste caminho, afinal, sua ameaça é presente e mortal.

O admirado professor Yuval Harari[7], autor do best-seller Sapiens, escreveu um importante artigo para o Financial Times[8] expressando seus receios sobre um mundo pós-coronavírus dominado pelo totalitarismo digital:

In order to stop the epidemic, entire populations need to comply with certain guidelines. There are two main ways of achieving this. One method is for the government to monitor people, and punish those who break the rules. Today, for the first time in human history, technology makes it possible to monitor everyone all the time. Fifty years ago, the KGB couldn’t follow 240m Soviet citizens 24 hours a day, nor could the KGB hope to effectively process all the information gathered. The KGB relied on human agents and analysts, and it just couldn’t place a human agent to follow every citizen. But now governments can rely on ubiquitous sensors and powerful algorithms instead of flesh-and-blood spooks.

 

Entretanto, a Coreia do Sul, exemplo de democracia e desenvolvimento econômico, tem usando um arsenal tecnológico, como câmeras de monitoramento (aproximadamente 8 milhões de câmeras), rastreamento de cartões bancários e geolocalização de celulares (algo em torno de 860.000 mil aparelhos) para fazer frente aos desafios impostos pelo coronavírus.

O rastreamento de celulares, além de auxiliar as autoridades de saúde do país asiático, permite o envio de mensagens aos cidadãos possibilitando que eles evitem locais de grande infecção. Os bons resultados[9] já começam a ser colhidos:

Segundo o professor da University College London – UCL, Jung Won Sonn:

The difference between the South Korean approach and that of European countries doesn’t represent the simple cliché of eastern collectivism versus western individualism. In fact, information exposure can prevent the need for a lockdown of individuals’ movements.

 

In this way, governments around the world are facing a hard choice between these two violations of individual rights (information exposure and movement restriction). South Korea has chosen the former, but France and Italy had to choose the latter. The former requires the necessary infrastructure and a culture that tolerates a certain level of surveillance, neither of which can be created overnight.

O exemplo sul coreano mostra que é possível lutar contra o Sars-CoV-2 usando ferramentas do Século XXI, sem enveredarmos pelo caminho do totalitarismo digital.

Para tanto, as soluções tecnológicas, tais como geolocalização, devem ser colocadas na mesa como possíveis armas emergenciais de contra-ataque, sempre com informações claras e precisas à população.

Certamente, a senhora não está gostando nada destas novas possibilidades. O ano de 1918 foi mais fácil para ela. Em 2020, ao contrário, os Sapiens podem sair da inação e do medo passivo e partirem para o ataque, munidos de tecnologia, em forma de celulares. Nunca se esquecendo, por óbvio, da privacidade e da proteção de dados pessoais.

 

 

Nota: Particularmente, estou longe de ser um grande fã do monitoramento das pessoas através dos celulares. Já pedi judicialmente a suspensão do serviço Vivo Ads[10] da Telefônica[11] e conduzi investigação contra a empresa InLoco[12]. Em ambos os casos, por conta do uso de dados de geolocalização dos titulares de celulares.

 

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[1] O amplo uso das palavras Homo Sapiens e Sapiens neste texto tem com referência o magnífico livro Sapiens do professor Yuval Noah Harari.

[2] A senhora em questão considera-se uma feminista desde a primeira onda do movimento no Século XIX.

[3] TIDY, Joe. Coronavírus leva governo de Israel a se dar ‘poderes especiais’ de espionagem. BBC, 18 mar. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-51938946>. Acesso em: 26 mar. 2020.

[4] SONN, Jung Won. Coronavirus: South Korea’s success in controlling disease is due to its acceptance of surveillance. The Conversation. Disponível em: <http://theconversation.com/coronavirus-south-koreas-success-in-controlling-disease-is-due-to-its-acceptance-of-surveillance-134068>. Acesso em 26 mar. 2020.

[5] CARBINATTO, Bruno. China está usando vigilância em massa para combater coronavírus. Super Interessante, 25 mar. 2020. Disponível em: <https://super.abril.com.br/tecnologia/china-esta-usando-tecnologias-de-vigilancia-em-massa-para-combater-coronavirus/>. Acesso em 26 mar. 2020.

[6] SINGER, Natasha; SANG-HU, Choe. As Coronavirus surveillance escalates, personal privacy plummets. The New York Times, 23 mar. 2020. Disponível em: < https://www.nytimes.com/2020/03/23/technology/coronavirus-surveillance-tracking-privacy.html>. Acesso em 25 mar. 2020.

[7] Harari, além de ser um dos grandes pensadores da atualidade, me abriu os olhos para a Meditação Vipassana. Sou duplamente grato a ele, tanto pelos livros, quanto pela Vipassana.

[8] HARARI, Yuval Noah. The world after coronavirus. Financial Times, 20 mar. 2020. Disponível em: <https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75>. Acesso em 20 mar. 2020.

[9] WorldOmeter. Disponível em: <https://www.worldometers.info/coronavirus/country/south-korea/>. Acesso em 26 mar. 2020.

[10] BUCCO, Rafael. Ministério Público do DF pede suspensão do Vivo Ads. tele.síntese, 1 ago. 2019. Disponível em: <http://www.telesintese.com.br/ministerio-publico-do-df-pede-suspensao-do-vivo-ads/>. Acesso em 26 mar. 2020.

[11] A Ação Civil Pública – ACP foi julgada improcedente no primeiro grau de jurisdição. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios recorreu da decisão e aguarda decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.

[12] LIMA, Mariana. MP investiga empresa de publicidade por monitorar brasileiros pelo celular. Estadão, 19 set. 2018. Disponível em: <https://link.estadao.com.br/noticias/cultura-digital,mp-investiga-empresa-de-publicidade-por-monitorar-brasileiros-pelo-celular,70002502195>. Acesso em 26 mai. 2020.

O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – MPDFT arquivou o Inquérito Civil Público – ICP em 27 de novembro de 2019. A promoção de arquivamento foi homologada pela Câmara de Coordenação e Revisão da Ordem Jurídica Especializada do Ministério Público do Distrito Federa e Territórios em fevereiro de 2020.