Thiago Barros Ribeiro

O Teorema do Eleitor Mediano (TEM), esboçado por Harold Hotelling, na década de 1920, e formalizado por Anthony Downs, em 1957, estabelece, em sumário muitíssimo breve, que um sistema de votação por maioria absoluta sempre terá como resultado a escolha preferida do eleitor mediano.
Visto de outra forma, numa eleição em dois turnos, o eleito será o candidato capaz de atrair, além de seus eleitores originais, proporção suficiente entre aqueles que não o teriam como primeira opção, mas preferem-no em relação ao oponente, entre os quais necessariamente estará o chamado eleitor mediano.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Aplicado à história eleitoral recente do Brasil, o TEM possibilita enxergar as movimentações da sociedade ao longo das últimas três décadas e permite prognósticos para 2022. A hipótese aqui defendida é a de que, após um período mais próximo ao centro político-ideológico, que vai de 89 a 2002, a partir de 2006 o eleitor mediano brasileiro se posiciona cada vez mais em função da figura de Luiz Inácio Lula da Silva.
Tal personalização – seja por afeição ou aversão –, muito mais do que qualquer preferência ideológica, explica os resultados eleitorais seguintes, até mesmo o de 2018, que cristaliza o fenômeno Bolsonaro, originado como a antítese ideal de Lula.
Olhando para 2022, embora o caráter personalista da eleição deva se manter, a polarização entre os níveis de rejeição extremamente elevados de Lula e Bolsonaro tende a levar o eleitor mediano de volta ao centro, despersonalizando as preferências e ampliando as chances de vitória do candidato que consiga concentrar os votos dos descontentes com ambos os polos atuais.
<blockquote class="jota-article__eye">Por oportuno, destaca-se que a definição de eleitor mediano não se relaciona com nível de instrução ou posição político-ideológica, representando tão somente aquele que se localiza na metade de uma distribuição.</blockquote>
Numa eleição com 99 eleitores ordenados da esquerda para a direita, o mediano ocupará a 50ª posição. Evidentemente, há uma probabilidade maior de tal eleitor estar mais próximo do centro do que dos extremos, porém quanto maior e mais apaixonado o antagonismo ideológico em uma sociedade, maior será a concentração dos eleitores nas caudas da distribuição e, consequentemente, maior a chance de a mediana se localizar próxima a um dos extremos.
Numa análise retrospectiva, 1989 certamente foi o ano com as mais abrangentes possibilidades de escolha no 1º turno das eleições presidenciais. Sem muito esforço, lembra-se de Lula, Brizola, Covas, Ulysses, Maluf, Afif e Collor, que preenchiam praticamente todo o espectro de preferências como opções viáveis.
Não à toa, Ulysses, o menos votado entre eles, recebeu quase 5% dos votos válidos, indicando a forte pulverização entre as escolhas. Interessante observar que, se os três candidatos mais próximos ao centro (Covas, Afif e Ulysses) tivessem se unido já no 1º turno, Covas muito provavelmente chegaria à casa de 20% dos votos, ultrapassando os 17% de Lula e indo com Collor a um 2º turno em que certamente seria eleito, atraindo, no mínimo, todos os votos de Lula e Brizola – voltaremos a este ponto quando chegarmos a 2022.
Não foi o que aconteceu e, com Collor e Lula, o resultado mostrou que, entre dois polos à época totalmente antagônicos, o eleitor mediano brasileiro estava mais próximo da direita tradicional que da esquerda até então radical verbalizada pelo petista. Porém, a pequena diferença de 6% entre os candidatos indicou também que o eleitor mediano estava muito mais próximo do centro que de um dos extremos.
Nas duas eleições seguintes, Fernando Henrique Cardoso sagrou-se vencedor com mais de 50% dos votos ainda no primeiro turno. Ao se analisar a conjuntura da época – FHC colhia, sobretudo em 1994, os louros pelo bem-sucedido Plano Real, que eliminou a inflação, problema mais dramático da economia brasileira durante anos – e o espectro de candidatos, com figuras como Lula – ainda fiel ao discurso puro-sangue de esquerda – Brizola e Enéas, percebe-se que Fernando Henrique representava melhor do que ninguém o centro político-ideológico em ambas as eleições.
Pode-se dizer, pois, que os resultados daqueles dois pleitos reafirmaram, ainda com mais força, a concentração dos eleitores brasileiros em torno do centro político-ideológico, numa postura que pode ser também percebida como conservadora, de aversão ao risco associado aos extremos.
Em 2002, voltamos ao cenário de dois turnos, desta vez com Lula e Serra e, embora à primeira vista possa parecer que o resultado demonstra um deslocamento do eleitor mediano para a esquerda, a verdade é que dois movimentos inteligentes do Partido dos Trabalhadores foram bem-sucedidos em atrair o eleitor de centro para Lula.
O primeiro, contínuo desde o 1º mandato de FHC, consistiu em associar o PSDB, partido de origem e trajetória de centro-esquerda, à direita brasileira. Tal narrativa estratégica, independente de se sustentar na realidade – lembremos que o PSDB surgiu de uma dissidência à esquerda do PMDB e que FHC implantou programas de transferência de renda que não teriam espaço num governo neoliberal de direita –, conversa perfeitamente com o TEM: se não conseguisse deslocar o PSDB para a direita, seria quase impossível para o PT ter chances num 2º turno, pois naturalmente os tucanos, além dos próprios eleitores de centro-esquerda, atrairiam todos aqueles posicionados à sua direita, sobrando fatia relativamente reduzida ao PT.
O segundo movimento ocorreu já em 2002 e buscou deslocar o próprio PT da esquerda para o centro, ficando simbolizado por duas iniciativas: a aliança com o Partido Liberal, concedendo a posição de vice ao empresário José Alencar, e a famosa Carta ao Povo Brasileiro, publicada em junho daquele ano, em que, para acalmar e ganhar a confiança dos mercados, Lula se comprometeu com o combate à inflação, o equilíbrio fiscal e outras medidas até então relegadas a plano inferior em propostas de governos petistas.
Duas jogadas de mestre que, associadas ao sucesso da militância em arrastar o rival para longe de seu locus, levaram Lula à presidência e, mais uma vez, confirmaram que o eleitor mediano brasileiro continuava próximo do centro político-ideológico.
Uma vez eleito, Lula fez governos pragmáticos, conjugando o aprofundamento de políticas de transferência de renda ao apoio a grandes corporações nacionais. Agradou em medida semelhante a grupos em tese antagônicos.
De forma crescente, e graças à feliz combinação entre seu carisma e o momento de relativa bonança econômica vivido especialmente em 2007, 2008 e 2010, deslocou para si próprio o eleitor mediano, revivendo o personalismo já observado no Brasil com Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek.
A primeira eleição de Dilma, em 2010, reflete de forma clara esse personalismo. Até então desconhecida da grande massa, Dilma se elege com relativa folga sobre José Serra não por ser ligada ao PT, por representar uma determinada linha ideológica ou por inspirar algum grau especial de confiança nos eleitores, mas sim por ser a escolhida de Lula, assim como teria sido eleita qualquer outra pessoa na mesma situação. A eleição de Dilma em 2010 não é de Dilma, mas sim a segunda reeleição que o eleitor mediano assegura a Lula.
Em 2014, embora menos gritante, o fenômeno se repete. Dilma já entra no pleito desgastada por forte rejeição, que se aprofundara a partir das manifestações de 2013 e terminaria no impeachment, em 2016.
Com Lula propositalmente ausente do cenário, por discordar da forma como sua sucessora havia levado adiante seu governo, o eleitor mediano órfão ameaça voltar ao centro e se aproxima de Aécio Neves que, a poucos dias da votação final, despontava como favorito.
É então que, para evitar a derrota de seu grupo, Lula se convence a embarcar com força na campanha de Dilma, o que, no último instante, traz de volta para ele o eleitor mediano que garante sua quarta vitória consecutiva. Entretanto, como em todo fenômeno personalista, a adoração que surgiu e se consolidou em torno de Lula de um lado fez nascer e florescer, de outro, uma oposição também apaixonada em busca um rival à altura.
Os quase 14 anos de PT no poder, e mais especificamente o período Dilma, caracterizado por inabilidade política e taxas de crescimento anuais de cerca de 1%, haviam saturado um grupo cada vez maior de pessoas, que acabou por atrair o eleitor mediano e constituir maioria a partir de 2015.
Embora essa fatia tenha se juntado a Aécio em 2014, ela nunca enxergou no tucano o real destinatário de seus anseios. Para combater a força representada por Lula era necessário alguém tão popular e populista quanto ele, tão capaz de falar ao povo e despertar paixões quanto ele. Naturalmente, não era um tucano.
Foi Bolsonaro. Surgido de forma caricata, exatamente com o objetivo de contrapor radicalmente o ideário representado por Lula e o PT, o ex-militar não parecia, inicialmente, ter fôlego suficiente para a vitória.
Com efeito, em condições normais, o TEM não combina com o sucesso democrático de um candidato associado a posições extremas. Porém, as condições naquele momento eram especiais: o deslocamento do eleitor mediano em direção a Lula criara um processo de polarização de preferências que se aprofundou ao máximo com a reeleição de Dilma e a operação Lava-Jato.
Em 2018, pela primeira vez, o eleitor mediano brasileiro decidiu votar não a favor, mas contra alguém – Lula e o projeto petista de poder – e teria escolhido qualquer um que se colocasse como a alternativa mais provável de derrubada do opositor escolhido. Foi Bolsonaro.
O fato é que, depois da ascensão ao poder e da trágica gestão da pandemia, Bolsonaro hoje encara nível de rejeição semelhante ao de Lula, recentemente reabilitado à competição.
Embora tanto um quanto outro mantenham porções relativamente relevantes de votos, hoje o eleitor mediano muito provavelmente se localiza entre aqueles que rejeitam ambos.
Por linhas tortas, portanto, o representante mais importante para a definição de uma eleição parece ter voltado a posição semelhante àquela ocupada até 2002, mais próxima ao centro, não necessariamente por identidade político-ideológica, mas por aversão aos dois extremos.
Não por acaso, hoje a questão mais saborosa e determinante em termos eleitorais é saber como os inúmeros potenciais candidatos que gravitam em torno do centro irão se organizar para 2022.
Se quiserem ter chances, Ciro, Huck, Doria, Leite, Mandetta, Moro, Amoêdo, Santos Cruz e eventuais outros deverão reconhecer a estrita necessidade de alianças as mais amplas possíveis, com máxima redução no número de candidaturas, e acomodar de forma pragmática as diferenças, para viabilizar a ida de um deles para o 2º turno, em que a vitória sobre Lula ou Bolsonaro será quase certa.
Claro está que a tarefa de construir alianças está longe de ser simples. Inclui não apenas o sacrifício de candidaturas, mas também o cálculo dos efeitos de longo prazo das ações de agora. Ciro, apenas para ficar no melhor exemplo, dificilmente conseguirá encabeçar uma chapa ampla e tampouco deverá ter interesse em simplesmente compor uma coligação.
Por um lado, as posições em determinadas questões econômicas e os pesados ataques a possíveis aliados inviabilizam a primeira hipótese; por outro, apoiar um candidato que o obrigaria a moderar o discurso e ainda diminuiria as chances de ele próprio um dia se tornar presidente não condiz com o perfil do pedetista. Antes da volta de Lula, ainda havia esperanças de liderar os simpatizantes da esquerda. Agora, o mais provável é ficar isolado, sem chances reais.
Em que pesem, porém, as dificuldades inerentes a uma ampla concertação, o retrovisor que aponta para o erro estratégico dos candidatos de centro, em 1989, não deixa dúvidas: ela é imprescindível.
Do contrário, a profusão de candidaturas que por ora parece mais provável servirá apenas para patrocinar a refilmagem daquele ano, adensando uma nuvem de coadjuvantes da qual emergirão os já conhecidos protagonistas. Neste caso, Lula e Bolsonaro serão as estrelas de um roteiro com final imprevisível, a ser pesarosamente decidido pelo eleitor mediano. O passado ensina. Basta querer aprender.
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JOTA

Lula e Bolsonaro serão as estrelas de um roteiro com final imprevisível, a ser decidido pelo eleitor mediano

A volta do eleitor mediano ao centro da arena política brasileira

Lula e Bolsonaro serão as estrelas de um roteiro com final imprevisível, a ser decidido pelo eleitor mediano