Pedro Hartung

Ana Cláudia Cifali

“Tenho apenas 14 anos de idade e moro no Complexo da Maré. Eu só quero pedir uma coisa a vocês, policiais e bandidos: por favor, parem de matar inocentes”<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>; “Toda hora que a gente vê polícia, é o medo de apanhar”; “Pra mim, que já apanhei muitas vezes, eu não gosto de polícia”; “Pra mim, a pior coisa é a polícia”; “Eu não era só revistada não. Era agredida”.<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Essas são as palavras que emergem de crianças e adolescentes quando questionados sobre suas experiências com a polícia e também de inúmeros relatórios que analisam operações policiais no Brasil. Também são situações que fazem parte do cotidiano das pessoas que moram nas regiões periféricas e vulnerabilizadas do país, não se tratando de abusos excepcionais, mas casos frequentes e rotineiros; violências institucionais de uma instituição do Estado contra a população que deveriam em primeiro lugar proteger.
Entre 2017 e 2019, no Brasil, operações policiais mataram ao menos 2.215 crianças e adolescentes, o que significa a morte de mais de duas crianças e adolescentes por dia, em especial crianças negras e periféricas. E o número de mortes vem crescendo. Em 2017, representavam 5% do total das mortes violentas nessa faixa etária; já no ano passado, eram 16%<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. O<a href="https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/10/policial-sofre-mata-e-morre-em-silencio-no-rio-de-janeiro.shtml?utm_source=folha&amp;utm_medium=site&amp;utm_campaign=topicos" target="_blank" rel="noopener noreferrer"> Rio de Janeiro ocupa o primeiro lugar no ranking</a> de letalidade policial nessa faixa etária, mesmo com metade dos registros sem informação de idade. Mesmo com o isolamento social, 100 crianças e adolescentes foram mortos por policiais em 2020, 27% na capital e 73% em outros municípios. Ainda, o estado responde por quase 40% das mortes de crianças e adolescentes decorrentes de intervenção policial no país, percentual que mais que dobrou nos últimos dois anos<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Tais operações, além de atentar para a vida de crianças e adolescentes e sua saúde, pelo estresse tóxico e pós-traumático gerados, violam seus direitos constitucionais: à educação, pelo constante medo nas salas de aula durante e o fechamento das escolas devido a tiroteios em operações policiais - 65 dias de aulas perdidas somente em 2017-  impactando diretamente o desempenho acadêmico; à convivência familiar e comunitária, pela morte dos adultos responsáveis e pela impossibilidade de conviverem em paz nas suas comunidades; e o direito ao brincar, algo tão estruturante para o desenvolvimento da criança e do adolescente, que fica circunscrito pelo medo das balas perdidas e das violências várias, inclusive dentro do próprio lar, como nos casos da menina Ágatha Félix, 8 anos, e das primas Emily e Rebeca, 4 e 7 anos, que brincavam na porta de casa.
A violência policial é tão naturalizada que, muitas vezes, não há efetiva apuração e responsabilização pelos abusos cometidos. Temos, assim, a legitimação da violência institucional do Estado por aqueles que deveriam controlar e coibir tais ações. Também por isso, o Brasil foi condenado em 2017 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no âmbito do caso da Favela Nova Brasília, que analisou execuções extrajudiciais de 26 pessoas – incluindo seis crianças, concluindo-se: “que o Estado brasileiro é internacionalmente responsável pela morte de 26 vítimas como resultado do uso excessivo de força letal pela polícia, bem como pela violação sexual e estupro de L.R.J., C.S.S. e J.F.C., e a resultante impunidade duradoura da que gozam os perpetradores dessas violações”.<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
A gravidade desse quadro de violações ficou ainda mais evidente na catastrófica operação policial realizada recentemente na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, no início do mês de maio, que resultou na morte de 29 pessoas e na maior chacina da história do Estado, com indícios da prática de execução extrajudicial por parte da Polícia Civil. Verifica-se que a realização dessa operação policial configura clara violação a decisões cautelares proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 635, que determinou: (i) excepcionalidade da realização de operações policiais no contexto da emergência sanitária causada pelo coronavírus; (ii) que, nessa hipóteses, deveriam ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente; (iii) que, nos casos extraordinários de realização dessas operações, fossem adotados cuidados excepcionais para não colocar em risco ainda maior população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária; (vi) se o uso da força fosse inevitável, deveria ser proporcional e utilizado apenas para assegurar a prisão do acusado ou para superar a resistência por ele imposta, sendo admitido apenas quando necessário para salvar a vida própria ou de outrem; (v) a documentação e produção de relatórios com base no Protocolo de Minessota, sempre de forma a permitir a preservação e coleta dos vestígios e do exame de corpo de delito, assim como a revisão independente dos fatos. Para o STF, esses são requisitos procedimentais básicos de qualquer atuação do Estado e, se uma operação policial não tem condições de seguir integralmente esses parâmetros, é sinal inequívoco de que a operação não deveria ser realizada.
Com efeito, sob o pretexto de garantir segurança, a polícia atua com desdém com relação aos direitos fundamentais. Por meio de uma rotulação negativa, retira-se a categoria de cidadão, de pessoas, sujeitos de direitos de determinados grupos populacionais, aqui, especificamente, crianças e adolescentes negros residentes de comunidades periféricas, o que reflete o padrão racista, hierárquico e desigual da sociedade brasileira, na qual as relações não são reguladas pelo princípio da equidade. Assim, o sistema de administração da Segurança Pública opera sob dois pesos e duas medidas, para alguns, a presunção de inocência, para os outros, negros e periféricos, a presunção de culpabilidade<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">As classificações e discursos legitimadores da violência, com a construção de figuras como “inimigos”, constituem, ao final, um poderoso mecanismo capaz de turvar as percepções sobre as injustiças do autoritarismo.</blockquote>
Para Zaffaroni, toda violência para desbaratar o inimigo torna-se legítima com base em discursos que fundamentam a necessidade ou a legítima defesa. Nesses casos, os inimigos são sempre os “outros”, motivo pelo qual não se apresentam como merecedores de garantia de seus direitos humanos mais básicos. Além disso, o autor aponta que os crimes de massa são cometidos por um poder punitivo descontrolado, crimes cometidos a partir do aparato estatal sem limitações, sendo constante a tendência de o poder punitivo de descontrolar-se com o pretexto de combater inimigos<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Nesse contexto, aguardamos com sentimento de urgência e gravidade o julgamento dos embargos de declaração opostos na ADPF 635, marcado para os dias 21 e 28 de maio, em que o STF terá a oportunidade de estabelecer limites mais rígidos para a atuação policial no Rio de Janeiro, especialmente para proteger crianças e adolescentes presos em uma guerra sem fim. Cabe ao STF (i) impor a elaboração de um plano de redução de letalidade policial, a ser monitorado pela própria Corte, com auxílio da sociedade civil; (ii) definir de modo mais preciso o conceito de “absoluta excepcionalidade” das operações policiais em comunidades fluminenses; e (iii) determinar às autoridades competentes a apuração dos crimes praticados na chacina do Jacarezinho. É imperativo, também, a adoção de protocolos operacionais, especialmente quando as ações se dão em áreas sensíveis com a presença de crianças e adolescentes, como nos entornos de escolas, garantindo o (i) mapeamento georreferenciado em áreas de grande concentração de crianças e adolescentes; (ii) criação de Comitê Especializado para Atendimentos e Acompanhamento de ações em áreas com alta concentração de crianças e adolescentes; (iii) formação adequada da força policial; (iv) presença obrigatória de socorristas e ambulâncias nas operações; (v) uso da tecnologia (câmeras corporais, GPS) para policiamento mais seguro; (vi) mecanismos de transparência para operações policiais que envolvam crianças e adolescentes; (vii) diminuição do uso ostensivo de armas em áreas sensíveis; (viii) padrões para abordagem e revista de crianças e adolescentes; (ix) protocolos de segurança para as escolas e alunos; e (x) fortalecimento do controle externo da polícia.
Por fim, vale mencionar que o enfrentamento ao tráfico de drogas e o “aliciamento” de adolescentes por parte de grupos criminosos – uma das justificativas para a deflagração da operação no Jacarezinho-, se dá por meio de políticas públicas preventivas de assistência social, educação e saúde, que ofereçam oportunidades para crianças e adolescentes e suas famílias.
O desafio da sociedade brasileira reside em desconstruir os paradigmas de ação e racionalidade estatais de segurança pública historicamente autoritários, violentos e baseados no uso abusivo da força, para que todas as crianças, adolescentes e suas famílias possam viver e brincar em paz em suas comunidades e casas, protegidos e respeitados em sua dignidade e cidadania por uma política de Segurança Pública mais responsável, na qual a vida de todas as pessoas esteja em primeiro lugar.
<hr />
<div id="teste3-99b6e4ed7825b47581be" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('teste3-99b6e4ed7825b47581be', 'UA-53687336-1').createForm();</script> 
<script type="text/javascript">
setTimeout(function(){
 const btn = document.getElementById("rd-button-knf3ol7n")
 const check = document.getElementById("rd-checkbox_field-knj7ibbg")
 btn.disabled = true;
 btn.style.opacity = 0.7;
 check.addEventListener("click", function() {
 if (check.checked){
 btn.disabled = false;
 btn.style.opacity = 1;
 } else {
 btn.disabled = true;
 btn.style.opacity = 0.7;
 }
 });
}, 3000);
</script>
<hr />
<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Crianças da Maré fazem cartilha para orientar polícia a se comportar em operações. Disponível em: <a href="https://oglobo.globo.com/rio/criancas-da-mare-fazem-cartilha-para-orientar-policia-se-comportar-em-operacoes-23978040">https://oglobo.globo.com/rio/criancas-da-mare-fazem-cartilha-para-orientar-policia-se-comportar-em-operacoes-23978040</a>. Acesso em: 4.11.2019.
<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. A violência policial na voz dos adolescentes em conflito com a lei, 2011. Disponível &lt;em:<a href="https://www.tjdft.jus.br/informacoes/infancia-e-juventude/publicacoes-textos-e-artigos/publicacoes/publicacoes-1/violencia_policial.pdf">https://www.tjdft.jus.br/informacoes/infancia-e-juventude/publicacoes-textos-e-artigos/publicacoes/publicacoes-1/violencia_policial.pdf</a>&gt;. Acesso em 11.03.2021
<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> FBSP. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. São Paulo, 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/02/anuario-2020-final-100221.pdf. Acesso em 12 mar. 2021.
<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Folha. Em três anos, policiais mataram ao menos 2.215 crianças e adolescentes no país. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/12/em-tres-anos-policiais-mataram-ao-menos-2215-criancas-e-adolescentes-no-pais.shtml. Acesso em 12 mar. 2021.
<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso Cosme Rosa Genoveva, Evandro de Oliveira y otros (Favela Nova Brasília), Brasil. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/corte/2015/11566FondoPt.pdf. Acesso em 15 de maio 2021.
<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> KANT DE LIMA, Roberto. Igualdade, desigualdade e métodos de produção de verdade jurídica: uma discussão antropológica. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel56/RobertoKant.pdf Acesso em 15 de maio 2021 .
<a href="applewebdata://E612792E-8408-4AFE-9CFF-6B72434C7660#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> ZAFFARONI, Eugenio Raul. Crímenes de Massa. Buenos Aires: Madres de la Plaza de Mayo, 2010.

policiais favela

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

A violência institucional da polícia contra crianças e adolescentes

O que está em jogo na ADPF 635