Wesley Bento

Na discussão sobre o conceito de normas gerais e o alcance da competência legislativa da União em matéria de licitações e contratos administrativos, é crítica bastante comum a de que o Poder Legislativo federal teria avançado demais no detalhamento das regras que considerou como gerais na <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm">Lei 14.133/2021</a> e que, como consequência, impôs sua observância compulsória ao Distrito Federal, aos estados e aos municípios, retirando-lhes parcela significativa de seu espaço para criar e se adaptar nesse microssistema da contratação pública.
As críticas procedem em alguma medida, e os exemplos de aparentes abusos legislativos estão salpicados pela norma, bastando notar a exigência de que o agente de contratação seja servidor público efetivo<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>; a criação de atribuições para a advocacia pública local<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>; a definição de margem de preferência exclusivamente pelo Poder Executivo federal<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>; a vedação de adesão de estados e DF a atas de registro de preços elaboradas por municípios<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> e tantos outros.
Não seria demais esperar que o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">STF</a>) venha a declarar a inconstitucionalidade de determinadas regras da nova lei, como fez no passado em relação à Lei 8.666/93, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 927-3 e dar interpretação ao art. 17, I, “b” e “c”; II, “b” e seu § 1º, para esclarecer que a vedação neles contida teria aplicação apenas no âmbito da União. E o tribunal, a propósito, já foi provocado a isso na ADI 6.915 ajuizada pela Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape).
Se do ponto de visto teórico se pode reunir preocupação com o pacto federativo, esse arranjo teve ao menos a benfazeja consequência de emprestar maior uniformidade de tratamento das contratações públicas em âmbito nacional, o que é especialmente relevante diante do estágio de maturidade da União nesse ambiente e no extenso número de servidores altamente qualificados que possui em seus quadros para pensar normas estruturantes e padrões de comportamento na relação do Poder Público com seus fornecedores.
Desde 1993, quando se inaugurava a era da Lei 8.666, às licitações assumiram um papel cada vez mais nacional, deslocando as contratações de empresas locais para disputas envolvendo agentes privados de diversas partes do país, especialmente com o advento do Pregão Eletrônico em 2005, e a tendência desse movimento é se expandir, inclusive no âmbito internacional, a depender das negociações do Brasil para o ingresso na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e na aceitação das condições para a celebração de acordo entre o Mercosul e a União Europeia.
Nesse cenário de globalização das contratações públicas, conspira contra e eficiência o estabelecimento de regras locais que distorçam o regime de contratações a ponto de criar milhares de feições distintas a depender do humor legislativo regional, abrangendo não raro as normas de inconstitucionalidade patente e até consciente, que percorrem o caminho contrário e avançam sobre o espaço das normas gerais, criando um pandemônio catalisador de oportunismos e insegurança.
A Lei 14.133/2021 surge, ao revés, no contexto da constitucionalização tardia do Direito Administrativo no Brasil e no mesmo embalo de normas que cultuam a modernização nas relações do particular com o Poder Público, calcadas em estabilidade e previsibilidade, como a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/LINDB">LINDB</a>) em sua nova roupagem e a Lei de Liberdade Econômica<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
E esse enfoque de uniformidade se revela mesmo na incorporação, no texto da nova lei, de diversas disposições que gravitavam em normas regulamentares de aplicação exclusiva no âmbito federal e, mais concretamente, na elaboração de manuais e minutas padronizadas pela União, que naturalmente serão adotadas pelos entes subnacionais, ainda que algumas adaptações.
Por isso tudo também não surpreende que o artigo 187 da nova lei preveja a possibilidade de estados, Distrito Federal e municípios poderem aplicar os regulamentos editados pela União, nem tanto pelo ineditismo ou força jurídica do dispositivo, já que esses entes subnacionais sempre puderam – e em grande medida sempre se serviram dos parâmetros normativos regulamentares da União – mas porque encerra em si um convite formal e explícito para que isso aconteça, como que a reforçar a uniformidade nacional das contratações públicas que é objetivo cuja ganância normativa da Lei 14.133/2021 denuncia.
Do ponto de vista prático, para resguardar a esfera de competência constitucional e garantir um mínimo de dignidade legiferante ao Poder Público local, sinalizando inequivocamente aos órgãos administrativos subalternos as regras que devem ser por eles adotadas, a opção pelo uso da regulamentação federal deve ser explícita e objeto de decreto editado pelo chefe do Poder Executivo, descrevendo qual regulamentação federal deve ser incorporada ao acervo legislativo estadual ou municipal.
A rigor, é como se o texto da norma federal fosse transcrito ipsis litteris na norma local, que pode adotar basicamente dois modelos para essa finalidade: o primeiro, com a identificação do regulamento federal a ser incorporado, inclusive registrando em dispositivo próprio eventuais adaptações à estrutura governamental e ao ordenamento jurídico local; no segundo, que pode alcançar grau maior de eficiência, o decreto local se abstém de identificar a norma federal pelo número, referindo-se a ela ou a elas pelo seu objeto, de modo que a sucessão de novas normas federais sobre a mesma temática possa ser automaticamente incorporada à regulamentação local sem a necessidade de sucessivos decretos, somente necessários se a pretensão for inversa, ou seja, de recusar a recepção das alterações regulamentares posteriormente implementadas pela União.
Com a adoção desse expediente, sem ignorar as severas críticas que recaem sobre a abrangência da lei geral, o dispositivo cumpre o objetivo de buscar uma maior uniformidade nas contratações públicas no país, colaborando com a segurança jurídica, que é princípio previsto no artigo 5º da própria lei e tem sido fonte de preocupação constante para a melhora do ambiente de negócios no Brasil.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Art. 8º A licitação será conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Art. 10. Se as autoridades competentes e os servidores públicos que tiverem participado dos procedimentos relacionados às licitações e aos contratos de que trata esta Lei precisarem defender-se nas esferas administrativa, controladora ou judicial em razão de ato praticado com estrita observância de orientação constante em parecer jurídico elaborado na forma do <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm#art53%C2%A71">§ 1º do art. 53 desta Lei</a>, a advocacia pública promoverá, a critério do agente público, sua representação judicial ou extrajudicial.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Art. 26. No processo de licitação, poderá ser estabelecida margem de preferência para:[...]
<ul>
<li>
1º A margem de preferência de que trata o caputdeste artigo:
</li>
</ul>
I - será definida em decisão fundamentada do Poder Executivo federal, no caso do inciso I do caput deste artigo;
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Art. 86. O órgão ou entidade gerenciadora deverá, na fase preparatória do processo licitatório, para fins de registro de preços, realizar procedimento público de intenção de registro de preços para, nos termos de regulamento, possibilitar, pelo prazo mínimo de 8 (oito) dias úteis, a participação de outros órgãos ou entidades na respectiva ata e determinar a estimativa total de quantidades da contratação.[...]
<ul>
<li>
3º A faculdade conferida pelo § 2º deste artigo estará limitada a órgãos e entidades da Administração Pública federal, estadual, distrital e municipal que, na condição de não participantes, desejarem aderir à ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora federal, estadual ou distrital.
</li>
</ul>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Lei 13.874/2019.

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JOTA

Críticas à Lei 14.133/21 procedem em alguma medida, mas texto trouxe relevante padronização

A uniformidade nacional da contratação pública e o abuso legislativo

Críticas à Lei 14.133/21 procedem em alguma medida, mas texto trouxe relevante uniformização para a contratação pública