Renato Stanziola Vieira

Ao longo da passagem do tempo de uma vida, há quem passa sem deixar marca, quem deixa saudades e quem vai com a sensação de já ir tarde. E, no mundo do direito brasileiro, a aposentadoria do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), deixa o gosto da nostalgia. A ele somos gratos pelo amadurecimento e contribuições fecundas dadas ao país. Foi um exemplo de espírito cívico.
O mais recente brinde que o ministro deu à sociedade brasileira e ao direito processual penal foi seu voto proferido a propósito de existir ou não a prerrogativa de ocupante de cargo de presidente da República, em sendo investigado pela prática de crime, optar por ser interrogado ou não.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
O voto longo, lúcido como de praxe, é denso e permeado por inúmeras menções aos mais respeitados autores e autoras de direito constitucional e processo penal do Brasil. Mesmo que já tenha sido a essa altura objeto de comentários e análises, com a proximidade da continuidade do julgamento do tema no Inquérito 4381 (que investiga se o presidente da República interferiu na Polícia Federal) pelo plenário do STF, vale repisar alguns detalhes.
<blockquote class="jota-article__eye">Como premissa e consequência, o ministro afirmou que o presidente da República, como de fato pessoa alguma, não tem nem mais nem menos direitos e garantias do que todo o leque previsto para qualquer investigado.</blockquote>
Presidente não é monarca, e investigado não merece distinção favorável em razão do cargo público que ocupe. Pau que bate em Francisco bate em Jair.
Há muitas facetas para a assunção da correção do entendimento do ministro Celso de Mello, como por exemplo a interpretação de que o art. 221, do Código de Processo Penal, tem como destinatários exclusivos as testemunhas e vítimas (e ainda assim o dispositivo flerta abertamente com a inconstitucionalidade ao trazer distinção não aceitável com a ordem constitucional pós-1988), como também as salutares passagens explícitas que indicam que distinção em favor de presidente da República deve ser aquela estritamente prevista na própria Constituição (como, por exemplo, a de competência para julgamento prevista no art. 102, e as demais sobre prerrogativas em sentido estrito, do art. 86, do mesmo Texto). As razões de qualquer distinção, para serem aceitas, devem ser as estritamente constitucionais.
Do ponto de vista processual penal, as alterações da lei que redundaram na redação do artigo 221 do Código de Processo Penal, como dizem os autores mais antigos e presos àquele tempo como por exemplo Eduardo Espínola Filho, Inocêncio Borges da Rosa e Hélio Tornaghi, decorreram de leis (3653, de 1959, e 7616, de 1977).
Enquanto a primeira tinha o propósito de evitar delongas no processo a depender de marcações de audiências, a última é que ultrapassou o farol da distinção razoável, trazendo a distinção agora revisitada.
A ideia que deflui da interpretação àquele dispositivo com a redação da Lei 3653 era a de conferir celeridade às persecuções penais, modificando, se o caso, o local e data do depoimento, mas não a de converter o depoimento oral em escrito.
Como constou do parecer da Comissão de Constituição e Justiça em 1959, a ideia principal daquela alteração, advinda do Projeto de Lei 614, do Senado Federal, era a de adequar alguns cargos e funções que passaram a existir com a nova ordem constitucional à logística de agendamento de dia e hora para a normal inquirição de seus titulares. Mas nada de desnaturar a essência da colheita da prova oral.
Assim disse o então presidente da Comissão da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, Pedro Aleixo, em 10 de agosto de 1959: “O art. 221 (caput) do Código de Processo Penal, promulgado com o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, não incluía, entre as pessoas que têm a faculdade de ajustar previamente com o juiz local, dia e hora em que devem ser inquiridas, vários titulares de cargos e funções que não existiam no regime da Carta Constitucional de 1937 ou que não mereciam, neste diploma da ditadura ,especial consideração. De outro lado, gozavam da faculdade pessoas cujas funções foram extintas na Constituição de 18 de setembro de 1946. Impunha-se, por isso, uma revisão do texto do art. 221 tão logo se restabeleceu no País o regime democrático.” (a íntegra do processo legislativo que redundou na Lei 2653, sancionada por Juscelino Kubitschek em 3 de novembro de 1959, pode ser consultada aqui: <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1206676&amp;filename=Dossie+-PL+614/1959" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1206676&amp;filename=Dossie+-PL+614/1959</a>., acesso em 04/02/2021)
Só com a Lei 6416 de 1977 é que apareceu o esdrúxulo privilégio, repudiável, de se abrir a possibilidade de, em se tratando de algumas testemunhas ou vítimas, admitir-se a anomalia processual que é o depoimento escrito. Além do odioso privilégio, o dispositivo fere a essência da oralidade da colheita da prova e não se endereça a investigado.
A clareza e o propósito inédito de se ir além do agendamento de data e hora do depoimento para aniquilar-lhe a essência (oralidade) em razão de cargo ficaram claras na única passagem em que se justificou a alteração no projeto. Isso constou do item 16, da exposição de motivos apresentada pelo ministro da Justiça, Armando Falcão, do general Ernesto Geisel, Presidente da República, de 22 de fevereiro de 1977: “Conferiu-se maior dignidade à prestação testemunhal, substituindo a prisão administrativa da testemunha faltosa, por outras medidas compulsórias, enquanto que se cercou de maior respeitabilidade o testemunho a ser prestado pelas cinco mais altas autoridades da República, prevendo que possam fazê-lo por escrito, em resposta a ofício do Juiz.” (Diário do Congresso Nacional, Março de 1977, sábado 12, p. 195. A íntegra do documento pode ser encontrada aqui: <a href="https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/15897?sequencia=8" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/15897?sequencia=8</a>).
Hoje, como temos testemunhado a desditosa história de presidentes, governadores e outros cidadãos eleitos a cargos públicos sendo investigados por crimes comuns, temos a vexatória mas importante responsabilidade de reapreciar o tal artigo 221 do Código de Processo Penal. Não há espaço para favorecimentos e privilégios, e mesmo um viés de interpretação “histórica” merece levar em conta a distinção há pouco efetuada a partir do que se constatou do próprio processo legislativo das duas alterações do mesmo dispositivo. Só com a alteração promovida durante a ditadura é que se prestigiou a inconstitucionalidade.
E aí de novo uma das grandes lições do voto do ministro: nem menos nem mais direitos do que os catalogados na jurisprudência do STF e inscritos na Constituição do Brasil e nos tratados internacionais pelo país aderidos.
Um ponto pode suscitar ainda algum debate: investigado algum tem dever de cooperação com autoridade na persecução penal. Ninguém tem dever de comparecer para ser interrogado. Não há, no processo penal, estrutura de colaboração que possa forçar qualquer pessoa, seja Jair, Flávio, Eduardo, a comparecer para se fazer ouvir. O interrogatório é, antes de uma expectativa estatal para apuração de crimes, um direito do próprio investigado, que pode ser exercido na extensão que melhor lhe aprouver.
A oposição, pelo investigado, à realização de seu interrogatório, pode causar danos à apuração dos fatos, como pode fragilizar a própria linha defensiva, pois no limite deixa-se de se defender tentando provar de viva-voz alguma versão. Mas ainda assim, observada a permissão constitucional de ninguém se autoinculpar compulsoriamente, o ônus da amplitude maior ou menor do exercício de defesa oral é de seu titular, observada a atividade da advocacia responsável.
Mas escudar-se no “direito” de “optar” por comparecer ou não ao ato que é eminentemente oral em razão de ser presidente da República não tem cabimento. Investigado que não quer colaborar com a apuração dos fatos não colabora e ponto. Mas assim é não por se tratar de presidente da República. O ponto não é o da dignidade do cargo ocupado, e sim o do exercício de uma das facetas do direito de defesa. Não há a “opção” em participar do interrogatório em razão do art. 221 do Código de Processo Penal, mas sim por ser uma decorrência do direito de não produzir prova contra si mesmo. A razão, pois, é constitucional, e não legal.
Sem privilégios e com Justiça, mais uma lição do ministro Celso de Mello. Quem é senhor do exercício de seu direito de se deixar ser ouvido em investigação é o investigado, que pode ter postura ativa ou reativa. E isso não depende do cargo que ocupe.
O ministro Celso de Mello deixará saudades. Já argumentos como os desfiados em prol do atual ocupante de cargo de presidente da República, além de terem sido com razão veementemente repudiados pelo último decano do STF, talvez indiquem o lugar na memória coletiva do atual presidente da República. Sem saudades e, pelo vociferado resumo de escárnio da conhecida figura, não passará em brancas nuvens.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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JOTA

O presidente Jair Bolsonaro não merece distinção favorável em razão do cargo público que ocupa

A última lição do ministro Celso de Mello

O presidente Jair Bolsonaro não merece distinção favorável em razão do cargo público que ocupa