Caio Borges

Em <a href="https://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&amp;selForma=NU&amp;txtValor=5033746-81.2021.4.04.0000&amp;chkMostrarBaixados=&amp;todasfases=&amp;todosvalores=&amp;todaspartes=&amp;txtDataFase=&amp;selOrigem=TRF&amp;sistema=&amp;txtChave=">decisão monocrática </a><a href="https://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&amp;selForma=NU&amp;txtValor=5033746-81.2021.4.04.0000&amp;chkMostrarBaixados=&amp;todasfases=&amp;todosvalores=&amp;todaspartes=&amp;txtDataFase=&amp;selOrigem=TRF&amp;sistema=&amp;txtChave=" target="_blank" rel="noopener noreferrer">proferida no último dia 19 de agosto pela Desembargadora Federal Vânia Hack de Almeida</a>, uma ação civil pública que tenha por objeto central o cumprimento, pelo Estado, das obrigações jurídicas atinentes à mitigação dos gases de efeito estufa (GEE) e à efetivação do direito fundamental ao clima estável, e que seja fundamentada em normas jurídicas que tratam eminentemente da mudança do clima, não se confunde com uma ação civil pública que pretenda a implementação de medidas de comando e controle do direito ambiental, ainda que esta última possua uma inerente dimensão climática.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
No caso concreto, a justiça federal de Curitiba havia declinado da competência para processar e julgar ação civil pública proposta pelo Instituto de Estudos Amazônicos (IEA) em outubro de 2020 em face da União visando à redução dos GEE associados ao desmatamento ilegal, em conformidade com a Política Nacional de Mudança do Clima (Lei n° 12.187/2009 - PNMC).
A PNMC e seu regulamento administrativo previam a redução, até o ano de 2020, de 80% do desmatamento ilegal da Amazônia, em relação aos níveis de 2005. A ação pretende, ainda, que a União implemente medidas de restauração florestal para compensar as emissões acima do patamar da PNMC, bem como demonstre as ações adotadas para a implantação da quarta fase do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal – PPCDAm.
O juízo federal de Curitiba declinou de sua competência em favor da justiça federal de Manaus, alegando que a ação proposta pelo IEA continha “elementos suficientes de similitude” com uma ação proposta em abril de 2020 pelo Ministério Público Federal (MPF) em face da União e órgãos ambientais federais (Ibama e ICMBio), além da Funai.
Tal ação busca a implementação de bases de fiscalização nas dez áreas críticas do desmatamento na Amazônia (os chamados "hot spots"). O MPF argumenta, nessa ação, que a implantação de bases estava prevista no PPCDAm, o mesmo plano mencionado na ação do IEA de Curitiba, e em outros instrumentos de planejamento dos órgãos ambientais.
As bases seriam importantes para uma atuação preventiva e repressiva do Estado aos ilícitos ambientais, especialmente o desmatamento que agrava a crise climática, e às violações a direitos territoriais e a outros direitos fundamentais - como o direito à saúde - de povos tradicionais e comunidades indígenas da região no período da pandemia da Covid-19.
No cerne da lide apresentada ao TRF-4 está a delimitação do fórum mais apropriado para processar e julgar os litígios climáticos a partir dos seus elementos temáticos, territoriais, temporais e obrigacionais. Esse, contudo, não é um desafio que se apresenta apenas no Brasil. Em vários países onde a litigância climática chega aos tribunais, os conflitos de competência são um dos principais desafios para o exercício da jurisdição nesse tipo de caso. A demarcação de critérios para definir a competência para o conhecimento e julgamento das ações climáticas é relevante na medida em que os litígios climáticos colocam diante do judiciário diversos novos desafios para a efetivação da tutela coletiva do direito fundamental ao clima estável face à situação de emergência climática.
A decisão do TRF-4 é feliz em diversos aspectos. Dentre eles, está o reconhecimento de que a delimitação da competência para a prestação da tutela jurisdicional efetiva no contexto de ações que versam sobre a mudança do clima não pode ser circunscrita a um único elemento da ação, como o pedido ou a causa de pedir. Além disso, fica implícito na decisão que a identidade de temas entre ações sobre mudança do clima não pode ser definida por meio de uma interpretação expansiva.
A decisão reforça a noção de que o direito ao clima estável, embora possa - e deva -, ser tutelado por meio da aplicação dos institutos materiais e processuais de direito ambiental, não pode estar adstrito ou subordinado a essa área do direito.
Como já havia sido ventilado por Gabriel Wedy em sua obra “<a href="https://www.editorajuspodivm.com.br/litigios-climaticos-2019">Litígios climáticos </a><a href="https://www.editorajuspodivm.com.br/litigios-climaticos-2019">de acordo com o Direito Brasileiro, Norte-Americano e Alemão</a>” (2019), os instrumentos processuais de tutela do direito ao clima estável possuem traços próprios, posto que visam tutelar um bem - o direito ao clima estável - regulado por um regime jurídico próprio e cada vez mais autônomo em relação a outros regimes legais.
<blockquote class="jota-article__eye">Assim, a ação civil pública climática, entendida como aquela que demanda do Poder Judiciário decisões voltadas ao cumprimento de normas eminentemente climáticas, é taxonomicamente distinta da ação civil pública ambiental.</blockquote>
A decisão também reconhece a importância de conferir à mudança do clima um tratamento adequado no que diz respeito à questão dos limites territoriais das demandas coletivas. Nesse sentido, a decisão não se furtou a enfrentar o precedente do Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou inconstitucional o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública. A lição que se extrai é que, assim como no que diz respeito ao elemento temático, o aspecto territorial deve ser interpretado à luz do objetivo de cada ação.
Nesse aspecto, as duas ações claramente buscam provimentos que não conflitam entre si, nem com o precedente da Suprema Corte. Pelo contrário, elas se complementam. A primeira ação, coordenada pela extinta Força Tarefa Amazônia do MPF, trouxe, nas suas razões, as omissões do Estado na implementação de planos e demais instrumentos de controle e redução do desmatamento em áreas localizadas, para daí evidenciar a conexão entre tal omissão e os esforços globais de combate à mudança do clima.
Embora seja uma ação que tenha inovado na articulação entre ciência e direito do clima com institutos tradicionais de direito ambiental, tal ação busca medidas específicas e ajustadas ao contexto local, em marco temporalmente definido.
Já a ação proposta pelo IEA na justiça federal de Curitiba foi além da primeira, do MPF, ao arguir uma situação de ilegalidade e inconstitucionalidade pela conduta omissiva do Estado brasileiro em adotar medidas amplas para garantir a convergência dos índices de desmatamento ao patamar expressamente estipulado pela PNMC. Desta forma, esta segunda ação busca medidas de caráter estrutural para sanar a omissão do Estado e que tem resultado no sistemático descumprimento da meta de redução do desmatamento ilegal na Amazônia, que já excede os 11.000 km2 anuais, frente ao limite de 3.925 km2 permitido pela PNMC.
Em meio a uma crescente judicialização do clima, impulsionada pela maior frequência e intensidade de eventos extremos, é natural que as ações que tratam de situações fáticas locais, inclusive problemas de natureza não-ambiental, passem a considerar, cada vez mais, as implicações e as interações entre o contexto local com a mudança do clima como um fenômeno multidirecional, multifatorial e multicêntrico.
Como o próprio Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) reafirmou no seu <a href="https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg1/">relatório mais recente</a>, a mudança do clima acarretará consequências em todas as esferas e dimensões da vida humana e natural do planeta. Da mesma forma, os <a href="http://climatecasechart.com/climate-change-litigation/wp-content/uploads/sites/16/non-us-case-documents/2018/20180207_Case-No.-2-O-28515-Essen-Regional-Court_order.pdf">relatórios do Painel Científico para a Amazônia</a> demonstram com clareza os efeitos da degradação e desmatamento da Amazônia no nível local (mudanças na paisagem), regional (alterações no ciclo hidrológico) e global (aumento das emissões de GEE).
Qualquer ação que trate da preservação do bioma amazônico terá, portanto, uma conexão indissociável com a mudança do clima e, caso procedente, acarretará potenciais consequências locais, regionais e globais. Mas disso não decorre que aglutinar tais ações sob um único juízo seja a forma adequada de enfrentar a complexidade do tema, visto que é plenamente possível ajuizar ações de litigância climática com enfoques diferenciados sob um mesmo problema.
Nesse sentido, em uma situação de incerteza ou conflito de competência, é preciso atentar para as especificidades dos litígios climáticos envolvidos, de modo a não se incorrer em um dos dois extremos: um juízo universal para julgar todas as ações climáticas, dado o seu caráter eminentemente global, ou, no seu oposto, um vazio de jurisdição.
Como exposto no “<a href="https://www.conectas.org/publicacao/guia-de-litigancia-climatica/">Guia de litigância climática”, elaborado pela Conectas Direitos Humanos</a> e referenciado na decisão do TRF-4, debaixo de uma mesma alcunha de "litígio climático" coexistem diversos tipos de ações climáticas, com perfis bastante variados. Os litígios climáticos podem ser estruturais, quando tendem a questionar políticas públicas complexas e com abrangência territorial, ou pontuais, quando possuem um enfoque mais local ou setorial. Podem, ainda, requerer medidas de mitigação, adaptação, perdas e danos e gerenciamento de riscos.
Assim, a diferenciação tipológica da ação civil pública climática deve ser entendida à luz de sua potencialidade de ampliar e assegurar a efetividade dos mecanismos jurisdicionais de proteção do clima e dos direitos humanos, fortalecendo, pela via lateral, todo o arcabouço material e processual dos direitos socioambientais do ordenamento jurídico brasileiro.
A decisão do TRF-4 inaugura uma nova era no diálogo entre o microssistema do processo coletivo brasileiro e o regime jurídico da mudança do clima, hoje perfeitamente identificável a partir de instrumentos-chave de direito internacional e doméstico, dentre eles a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, o Acordo de Paris e a PNMC. A litigância climática no Brasil dá, assim, um passo marcante na consolidação de seu papel decisivo no preenchimento do vazio entre ambição formal e ação real em prol do clima estável, direito das atuais e futuras gerações.
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clima

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JOTA

Decisão do TRF-4 é divisor de águas no direito da mudança do clima

A tutela jurisdicional do direito ao clima estável avança no Brasil

É possível diferenciar uma ação civil pública ambiental de uma ação civil pública climática?