Samuel Rodrigues de Miranda Neto

Decorre do pós-positivismo a necessidade de releitura do ordenamento jurídico sob a óptica do Direito Constitucional, cenário no qual ganha força a aplicação instrumental do princípio da segurança jurídica, intrinsecamente ligado à isonomia, de modo a conferir estabilidade, coordenação e coerência às atividades jurisdicional e administrativa; observa-se, nesse cenário, o surgimento de mudanças na Teoria Geral do Direito, emergindo a jurisprudência como fonte.
O Direito Administrativo, como não poderia deixar de ser, não escapou dessa onda de constitucionalização, mormente porque o extenso conteúdo da Carta Constitucional de 1988, de maneira pródiga, ocupou-se de normas administrativas.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>A esse respeito, o ministro Luís Roberto Barroso aponta alterações qualitativas nas relações travadas entre a Administração Pública e os administrados, destacando a superação de dogmas tradicionais, dentre as quais: a redefinição da ideia da supremacia do interesse público sobre o privado e, mais, do próprio princípio da legalidade (A constitucionalização do direito e suas repercussões no âmbito administrativo. Direito Administrativo e seus novos paradigmas. Alexandre Santos de Aragão e Floriano de Azevedo Marques Neto — coordenadores. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012, p. 46-50).
Na mesma senda, Gustavo Binenbojm identifica dois “giros” que refletiriam tais mudanças: no primeiro deles, o chamado “giro democrático-constitucional”, tem-se, propriamente, a constitucionalização do Direito Administrativo, propondo-se uma nova roupagem ao princípio da legalidade, o abrandamento da supremacia do interesse público sobre o particular, e a processualização e democratização da atividade administrativa; já o segundo, o “giro pragmático”, traz consigo as ideias de anti-fundacionalismo, segundo a qual são abandonados os dogmas que não produzem bons resultados, além do contextualismo e consequencialismo (Poder de Polícia, Ordenação e Regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 37-52).
Outrossim, verifica-se que as leis de processo administrativo ganharam especial relevo. Segundo Carlos Ari Sundfeld, tais diplomas têm sido encarados nos diferentes ordenamentos jurídicos como uma “estratégia fundamental para os países fazerem avançar com rapidez, e depois consolidar, o controle jurídico sobre a tomada de decisões pela Administração Pública” (Direito Administrativo para Céticos. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2017, p. 293).
<blockquote class="jota-article__eye">Partindo desse contexto, o presente ensaio busca tecer linhas gerais sobre a sistematização da Teoria dos Precedentes Administrativos, com supedâneo na disciplina processual dos precedentes judiciais vinculantes e no princípio da proteção à confiança legítima, notável manifestação da segurança jurídica no Direito Administrativo.</blockquote>
Segundo Rafael Carvalho Rezende de Oliveira, o precedente administrativo é a norma jurídica extraída de uma decisão administrativa, a qual, sendo concreta, válida e consonante com o interesse público, servirá como critério interpretativo e deverá ser considerada, futuramente, pela entidade que a proferiu – a pessoa jurídica, e não o órgão –, sempre que verificada semelhança entre as situações fático-jurídicas postas (Precedentes no direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 92).
Não se confundem com meras rotinas de gestão, mas, sim, correspondem a práticas administrativas qualificadas pela iteração e constância, sobretudo nas atividades decisórias e discricionárias, nas quais é ainda mais imperativo o dever de coerência estatal.
Com efeito, em que pese o Brasil não adote o sistema do contencioso administrativo francês, no qual o efeito vinculante das decisões administrativas tem, decerto, força muito superior àquela observada no sistema unitário de jurisdição, vislumbra-se, com as devidas moldagens, uma teoria dos precedentes administrativos, a partir da já consagrada e positivada teoria dos precedentes judiciais.
Isso porque a previsibilidade e congruência na atividade administrativa, ainda consoante a lição de Oliveira, é uma imposição do Estado Democrático de Direito, encontrando-se os precedentes administrativos na denominada “autovinculação administrativa”, concepção de origem germânica, relacionada ao princípio da proteção à confiança legítima e ao combate de abusos estatais, cujas vantagens também reverberam em favor do Poder Público, que dela experimentará a redução da litigiosidade, incertezas, riscos e custos, bem como o reforço à legitimidade de suas decisões.
Ademais, é possível relacionar a teoria dos precedentes administrativos à clássica teoria dos atos próprios, fulcrada, em síntese, na ideia de que o emprego de uma conduta determinada justifica a convicção da não adoção de postura contrária a ela, limitando o exercício de direitos pela boa-fé objetiva.
A propósito, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari asseveram que a Lei nº 9.784/1999 acolheu o princípio da boa-fé objetiva e seus conceitos parcelares, máxime o venire contra factum proprium, consubstanciador da vedação ao comportamento contraditório (Processo Administrativo. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2020, p. 381).
Anote-se, por oportuno, que, mesmo na eventual hipótese de mudez das leis de processo administrativo, a boa-fé processual, estampada expressamente no Código de Processo Civil de 2015, incidirá na disciplina administrativa por força do art. 15 do mesmo estatuto, que estabelece a aplicação supletiva e subsidiária de suas disposições quando silente a norma processual específica.
Convém frisar que a admissão de uma sistematização dos precedentes administrativos não vai de encontro à possibilidade de revisão e autotutela administrativa, porquanto não se cogita o engessamento de sua atividade; para isso, contudo, algumas balizas são necessárias, e, na falta de uma consistente sistematização legal nesse aspecto, o estatuto processual civil servirá, decerto, de vetor interpretativo, uma vez que, do mesmo axioma da segurança jurídica que seria vilipendiada com a inobservância, pela Administração Pública, dos precedentes qualificados estampados nos incisos do caput do art. 927 do Código de Processo Civil de 2015, dimana o princípio da proteção à confiança legítima dos administrados.
Por fim, a ideia ora defendida está afinada com as duas perspectivas do princípio da confiança legítima: a objetiva, em que a tutela normativa se volta à estabilização do ordenamento jurídico; e a subjetiva, atinente à proteção das expectativas legítimas dos indivíduos. Em ambas as compreensões, não são tolerados atos e comportamentos contraditórios ou instáveis do Poder Público.
Assim, ao superar determinado entendimento, até então, continuamente seguido por ela, deverá a Administração Pública rever os atos administrativos daí decorrentes, sempre de forma motivada caso a caso, respeitando a convicção que os administrados têm quanto à certeza e estabilidade das condutas estatais, em especial daquelas derivadas do exercício da discricionariedade.
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Sistematização a partir da disciplina dos precedentes vinculantes e do princípio da proteção à confiança legítima

A Teoria dos Precedentes Administrativos

Sistematização a partir da disciplina dos precedentes vinculantes e do princípio da proteção à confiança legítima