
É notório a constatação da forte e robusta sociedade tecnológica no bojo do século XXI, ocasião em que todas as áreas sociais são fortemente afetadas (positivo, na maioria dos casos), o que abarca também o direito em essência, nas mais variadas vertentes.
Percebam que é comum visualizar discussões sobre transações virtuais, provas eletrônicas e demais novidades, assim como um novo ambiente processual na seara digital, seja com audiências por meios telemáticos, processos eletrônicos e daí por diante. Fato que, tal qual a sociedade evolui, o direito também se adapta às referidas novas intenções e tratativas, fornecendo respostas aos anseios humanos, que apresenta cenários diferentes com frequência, um fato incontroverso.
Em tal sentido, carece de todos os operadores e amantes do direito, doravante, repensarem o instituto da suspeição judicial na era informacional, principalmente no que concerne a cravar ou refletir sobre a possível parcialidade de qualquer magistrado quanto a “amizade ou contato” nas mais variadas redes sociais, minimizando a eventual subjetividade de tal ponto no Poder Judiciário. Em era de pura tecnologia, sempre se constatam alguns ganhos em detrimentos de certos prejuízos – redes sociais, adicionando a necessidade de sopesar alguns contatos ou exposições:[1]
Há um preço a pagar pelo privilégio de “viver em comunidade” — e ele é pequeno e até invisível só enquanto a comunidade for um sonho. O preço é pago em forma de liberdade, também chamada “autonomia”, “direito à autoafirmação” e “à identidade”. Qualquer que seja a escolha, ganha-se alguma coisa e perde-se outra. Não ter comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isto ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade […]
De antemão, plausível relatar que o ponto abordado no presente texto reflete a suspeição em si, normatizada no artigo 145 do Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015):
Art. 145. Há suspeição do juiz:
I – amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados;
II – que receber presentes de pessoas que tiverem interesse na causa antes ou depois de iniciado o processo, que aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa ou que subministrar meios para atender às despesas do litígio;
III – quando qualquer das partes for sua credora ou devedora, de seu cônjuge ou companheiro ou de parentes destes, em linha reta até o terceiro grau, inclusive;
IV – interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes.
§ 1º Poderá o juiz declarar-se suspeito por motivo de foro íntimo, sem necessidade de declarar suas razões.
§ 2º Será ilegítima a alegação de suspeição quando:
I – houver sido provocada por quem a alega;
II – a parte que a alega houver praticado ato que signifique manifesta aceitação do arguido.
Assim, não será tratado da correlação entre suspeição e impedimento (artigo 144 do CPC), justamente para majorar o foco quanto subjetividade de conceito de amizade virtual, muito presente na atualidade. Destarte, a Constituição Federal do Brasil, em seu artigo 05º (dentre outros itens esparsos), protege o direito à personalidade, honra, imagem e julgamento justo (devido processo legal), ratificando que todos são iguais perante a lei (inclusive para efeitos de julgamento), vide:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
XXXVII – Não haverá juízo ou tribunal de exceção.
LV – Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Em vertente análoga ao ora disposto e, fortalecendo garantias fundamentais – muito bem explicitado, temos a lição de Elayne Menezes Garcia e Douglas Alencar Rodrigues:[2]
No exercício do poder-dever de prestar a jurisdição, uma das mais expressivas formas de manifestação da soberania, o Estado se faz representar por agentes políticos que são recrutados, em sua expressiva maioria, de forma impessoal e democrática, por meio de concurso público de provas e títulos (CF, art. 93, I).38 No rol das garantias fundamentais que disciplinam o acesso à Justiça, figuram diretrizes essenciais segundo as quais ninguém será processado ou condenado senão pela autoridade competente, assegurando-se, na máxima extensão, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos que lhe são próprios, em estrita consonância com o devido processo legal (CF, art. 5o ., LIII, LIV e LV) […]
[…] Em razão das exigências de imparcialidade e independência, e considerando a natureza e a relevância dos poderes inerentes ao exercício da jurisdição, a ordem jurídica prevê critérios objetivos e impessoais para a divisão do trabalho entre os juízes. Com esse espírito, a distribuição das ações e recursos é realizada de forma equitativa, aleatória e impessoal, mas sem prejuízo da previsão de regras que possam determinar, em momento posterior à regular distribuição, a modificação do órgão judicial competente, em razão de imperativos de ordem racional (segurança jurídica, no caso da perpetuatio jurisdicionis – art. 43 do CPC de 2015) ou mesmo lógica (unidade de convicção, como nas hipóteses de prevenção, continência e conexão – artigos 54 e 107 do CPC de 2015). Com o objetivo de assegurar a imparcialidade e a independência do julgador, a Constituição consagrou prerrogativas e vedações (CF, art. 95) […]
Ora, tais premissas constitucionais (idem infra legal) refletem a necessidade de todos terem um julgamento correto e sem dúvidas (com lisura), isto é, por operadores do direito sem particularidades pretéritas ou momentâneas (amizades virtuais com envolvidos no cerne) que, em certos casos, podem ocasionar contratempos no balanço da justiça. Em lei orgânica da magistratura – no artigo 35 e em ótica de deveres correlatos, é dever do magistrado atuar de modo exemplar na condução dos embates jurídicos (e sem qualquer envolvimento, por menor que seja).
Ainda, os textos legais que garantem o julgamento efetivo e equânime são variados (seja constitucional, infra ou em textos esparsos adotados e assinados pelo Brasil). No mesmo viés, o artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos – ONU, relata com maestria e por analogia (ótica cível, penal e demais) que[3]: toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ela”. Em soma e no Brasil, adota-se a previsão de julgamentos imparciais, vide a garantia judicial prevista no artigo 08º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos:[4]
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
Fato que, dentre outros dispositivos legais – já excetuando os acima elencados, temos que a suspeição é um item preocupante (ante difícil categorização e subjetividade) que, sem delongas, deve ser melhor refletida e pontuada pelo Poder Judiciário quanto a contatos via redes sociais entre magistrados e partes, inclusive, para obstar provas negativas ou desconfianças. O Superior Tribunal de Justiça – STJ, positivamente em julgamento de acórdão – Recurso Especial nº 1.720.390 RS, observa que é necessário a abrangência do artigo 145 do CPC relacionado a suspeição, no aspecto do magistrado ter o dever de repassar a confiança aos consulentes:[5]
“… Por esse enfoque, o standard aplicável deixaria de ser de autoavaliação subjetiva do juiz e assumiria conformação de aparência exterior objetiva, isto é, aquela que toma por base a “confiança do público” ou de um “observador sensato”. Em outras palavras, a aferição de impedimento e suspeição, a partir do texto da lei, haveria de levar em conta, além do realmente ser, o parecer ser aos olhos e impressões da coletividade de jurisdicionados. Em suma, não se cuidaria de juízo de realidade interna (ótica individual do juiz), mas, sim, de juízo de aparência externa de realidade (ótica da coletividade de jurisdicionados) …”.
O julgado acima (muito técnico, por sinal), atualiza informes e decisões pretéritas do mesmo órgão colegiado quanto a indefinições técnicas do instituto da suspeição, entretanto, novos entendimentos (idem interessantes e bem relatados) permanecem sendo exarados quanto a instituto da suspeição e singularidade em contatos (às vezes em pensamento distinto), vide interessante acórdão no AREsp 1.667.649:[6]
EXCEÇÃO DE SUSPEIÇÃO. Troca esporádica de mensagens em redes sociais que não afigura, por si só, amizade íntima a comprometer a imparcialidade do magistrado. Inexistência de provas que conduzam ao reconhecimento da suspeição do Excepto. Exercício regular da atividade jurisdicional. Incidência da Súmula 88 desta Câmara Especial. Inocorrência das hipóteses previstas no artigo 145 do Código de Processo Civil. Exceção rejeitada. Opostos embargos de declaração, foram rejeitados.
É notório que tais dicotomias (importantes para fortalecimento do direito) são visualizadas em grande escala pelos demais níveis, graus e entes do Poder Judiciário (com plena e independente autonomia), o que demonstra a importância de tal tema.
É incontroverso que o Brasil possui um dos melhores e mais capacitados judiciários existentes versus volumetria de trabalho – e com licitude e presteza dos entes e assuntos tratados, entretanto, alguns temas correlatos – vide suspeição, são muito interessantes e carecem de entendimentos mais práticos e assertivos – inclusive na era da sociedade informacional, justamente para otimizar as decisões (com foco em equidade e forte justiça) e, não obstante, ofertar soluções e decisões mais rápidas, práticas e seguras aos entes sociais variados.
Recentemente, o respeitado Supremo Tribunal Federal – STF reforçou a autonomia do Poder Judiciário quanto apontamento, configuração ou categorização do instituto da suspeição (majorando segurança jurídica e requisitando análises sempre detalhadas e concretas), vide julgamento de Emb. Decl. Na Arguição de Suspeição 99:[7]
Não há dúvidas, portanto, que a suspeição aventada no bojo do Inq nº 4.828, tem como razão de ser os fatos ocorridos em 27/5/20, que, estreme de dúvidas, foram provocados pela arguente, o que torna ilegítima a alegação de suspeição. É certo, ainda, como bem destacou o jurista Renato Brasileiro de Lima, ao comentar o art. 254, I, do CPP, que “prevalece o entendimento de que é do juiz que deve partir a amizade íntima ou a inimizade capital, e não da parte em relação ao magistrado. Afinal, é do juiz que se espera a imparcialidade necessária para a prolação de uma decisão justa. Portanto, se a parte se declarar amiga íntima ou inimiga capital do magistrado, não há motivo para o reconhecimento da suspeição, salvo se tais sentimentos forem recíprocos” (Código de Processo Penal Comentado, 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 217, p 712).
Até que ponto uma amizade em rede social (ou suposta) pode definir o nível de profundidade em qualquer relação, principalmente no século XXI e era tecnológica? Como a parte suscetível no embate judicial poderá provar o “grau” de intimidade entre partes (e magistrado) – relacionado a rede social? Nos itens supra – e para constatação de suspeição, relatamos e reforçamos a necessidade de existir amizade ou relacionamento comprovado em redes sociais.
É muito complicado produzir provas quanto a critérios subjetivos e de difícil valoração (amizade subjetiva e outros), ocasião em que se faz prudente, em nível judicial e legislativo, estabelecer critérios mais assertivos quanto a relacionamentos virtuais – e profundidade – até mesmo para evitar desconfianças sem lastro.
Em outras palavras, sendo plausível e possível ocorrer alteração de entes judiciais em casos de alegação comprovada de suspeição e nos prazos assertivos pré ou pós julgado (com provas de amizades ou contatos fortes em redes sociais), oportuno que se efetue a substituição do nobre julgador e demais consequências na esfera do processo em si – sem qualquer ponto desabonador ou prejuízo ao julgador e Poder Judiciário, mas tão somente pensando na otimização da prestação jurisdicional e almejada celeridade dos atos e fatos (evitando, por tal meio, qualquer desconfiança no cerne judicial ou recursos desnecessários para abalizar tal questão).
Pelo exposto, a pretensão do artigo não é esgotar o tema que gera intensos debates, mas sim, refletir e proporcionar um debate democrático e sadio sobre a devida e necessária contextualização do quesito suspeição judicial em ótica da era da sociedade da informação, sempre pensando na melhoria do já atuante e focado Poder Judiciário, o qual respeitamos e confiamos desde os primórdios.
O episódio 43 do podcast Sem Precedentes analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Ouça:
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. Plínio Dentzien. Ed. Jorge Zahar, 2003, p. 10.
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Disponível em: <Https://www.cidh.oas.og/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em 20 de outubro de 2020.
GARCIA, Elayne Menezes; RODRIGUES, Douglas Alencar. AS REGRAS DE IMPEDIMENTO E SUSPEIÇÃO DE MAGISTRADOS NA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRA. Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.3, n.3, jul./dez., 2017. p. 62 – 63.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ. Acórdão em AREsp nº 1.667.649. Datado de 10. ago. 2020. Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo>. Acesso em 28 de outubro de 2020.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ. Acórdão em Recurso Especial nº 1.720.390 – RS. Datado de 07. jun. 2018. Relator: Ministro Herman Benjamin. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo>. Acesso em 15 de outubro de 2020.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF. Decisão em EMB.DECL. NA ARGUIÇÃO DE SUSPEIÇÃO 99 DISTRITO FEDERAL. Julgado em 05 de ago. 2020. Relator: Ministro Dias Toffoli. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos>. Acesso em 29 de outubro de 2020.
UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaração-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em 13 de outubro de 2020.
Notas
[1] BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. Plínio Dentzien. Ed. Jorge Zahar, 2003, p. 10.
[2] GARCIA, Elayne Menezes; RODRIGUES, Douglas Alencar. AS REGRAS DE IMPEDIMENTO E SUSPEIÇÃO DE MAGISTRADOS NA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRA. Revista de Direito: Trabalho, Sociedade e Cidadania. Brasília, v.3, n.3, jul./dez., 2017. p. 62 – 63.
[3] UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaração-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em 13 de outubro de 2020.
[4] COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Disponível em: <https://www.cidh.oas.og/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em 20 de outubro de 2020.
[5] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ. Acórdão em Recurso Especial nº 1.720.390 – RS. Datado de 07. jun. 2018. Relator: Ministro Herman Benjamin. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo>. Acesso em 15 de outubro de 2020.
[6] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ. Acórdão em AREsp nº 1.667.649. Datado de 10. ago. 2020. Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo>. Acesso em 28 de outubro de 2020.
[7] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF. Decisão em EMB.DECL. NA ARGUIÇÃO DE SUSPEIÇÃO 99 DISTRITO FEDERAL. Julgado em 05 de ago. 2020. Relator: Ministro Dias Toffoli. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos>. Acesso em 29 de outubro de 2020.