André Portugal

O <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-possibilidade-de-se-anular-roe-v-wade-nos-eua-06052022">rascunho de voto do Justice Samuel Alito em Dobbs v. Jackson Women's Health Organization</a>, que provavelmente superará Roe v. Wade, revelou a necessidade de se discutir, cientificamente, uma série de temas sobre a interpretação constitucional e dos textos legais em geral.
Premissas de que ele partiu: (1) o direito ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/aborto">aborto</a> não teria proteção constitucional porque não estaria textualmente previsto na Constituição; (2) ele também não estaria implícito em outros dispositivos constitucionais; (3) a tradição norte-americana não o reconheceria como direito, antes havendo evidências no sentido contrário até 1973; (4) ao juiz não caberia dar ouvidos à opinião pública de seu país, com o que aparentemente referiu-se aos esperados protestos contra a decisão e pesquisas segundo as quais a maioria da população declara-se favorável ao reconhecimento desse direito.
Há duas questões sobre interpretação constitucional que esse rascunho de decisão suscita.
<h3>Só há direitos expressos em textos?</h3>
Um direito deve estar literalmente escrito na lei ou na Constituição para ser reconhecido como tal? Ou há direitos não escritos? O esboço de voto indica que o Justice Alito não acredita na limitação que a primeira pergunta coloca. Afinal, na mesma frase em que destacou a ausência de previsão explícita de um direito ao aborto, ele sustentou que o aborto também <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fernando-aith/aborto-seguro-e-direito-da-mulher-e-imperativo-de-saude-publica-no-brasil-06052022">não ostentaria o caráter de direito implícito</a>, deduzido de outras normas constitucionais, com o que, abstratamente, admitiu essa possibilidade. Ainda assim, é importante compreendermos as razões pelas quais é equivocada a exigência de que todo direito ou dever esteja expresso em lei.
A norma jurídica pode ter o objetivo de prescrever padrões de comportamento, definir competências ou, ainda, adaptar, via textos abertos, o sistema às transformações sociais. Nenhuma norma <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/o-mundo-fora-dos-autos/o-direito-ao-aborto-nos-eua-vai-acabar-06092021">pode prever todas as hipóteses de sua aplicação</a>, e é por isso que o direito, embora objetive regular e transformar a realidade, frequentemente se depara com casos, problemas e realidades inicialmente não imaginados por quem redigiu os textos legais. Isso pode acontecer por diversas razões: por limitações inevitáveis de quem redige qualquer texto, que jamais conseguirá prever todas as hipóteses em que esse texto deve se aplicar, por transformações tecnológicas ou por alterações do uso de palavras por uma comunidade. Sob esse aspecto, o direito sempre corre como retardatário.
Quem defende a necessidade de previsão expressa na lei para que se possa falar em direito ou dever jurídico exige da lei mais do que ela pode oferecer. E, ao mesmo tempo, exige do juiz menos do que ele pode e deve fazer. Afinal, casos concretos que não estejam perfeitamente adequados à hipótese legal simplesmente deveriam resultar em uma negativa jurisdicional: o juiz deveria dizer que o caso não se enquadra na hipótese legal. Se essa premissa fosse válida, a proibição do ingresso de cachorros em determinados lugares não se aplicaria ao ingresso de ursos.
A exigência parte de uma compreensão equivocada da teoria da norma jurídica e do modo como o direito opera: a partir de conceitos gerais, casos concretos são interpretados e, via raciocínio analógico, conduzidos à hipótese da norma naquilo que for pertinente. Com isso, retira da interpretação o raciocínio que a caracteriza.
<h3>Como derivar direitos e deveres de textos constitucionais e legais (normas implícitas)?</h3>
Diversas respostas já foram oferecidas a essa intrigante questão.
Para o Justice Alito, esse critério deve ser a tradição da comunidade. Se, tradicionalmente, esta entender que da interpretação de um texto se pode depreender um determinado direito ou obrigação, então há um direito implícito. Se a tradição indicar o caminho oposto, não existe direito implícito. O curioso é que, ao mesmo tempo que sustenta existir uma “tradição” nacional no sentido de condenar o aborto e, portanto, de negá-lo como direito vinculado à liberdade, o Justice Alito está a reverter um precedente com 50 anos de história, e a afirmar que, como juiz, não deve dar ouvidos ao que pensa sobre o tema a opinião pública, majoritariamente favorável ao reconhecimento do direito ao aborto. O raciocínio é peculiar porque o termômetro de uma tradição é a comunidade, que a segue ou não. A tradição, embora datada de outros tempos, deve também viver no presente. Se já foi superada, deixou de ser tradição, para ser memória.
O uso do recurso à tradição para solucionar os casos difíceis não foi inventado pelo Justice Alito, e ele tem variações significativas que o permitem ser aceito por conservadores e liberais. O “originalismo” de Antonin Scalia, por exemplo, apela à tradição pela qual os textos foram originalmente concebidos e interpretados como forma de, em suas palavras, reduzir o arbítrio judicial e assegurar a democracia. Trata-se de um método que, em casos paradigmáticos, costuma pender para a perspectiva conservadora.
Por outro lado, Ronald Dworkin, um liberal, também recorre à ideia de uma história institucional de uma comunidade para sustentar sua teoria da interpretação constitucional. A diferença é que, em Dworkin, a decisão correta não é a que simplesmente segue essa tradição, mas a que a interpreta segundo a sua melhor luz, o que acaba conferindo ao juiz, naturalmente, maior liberdade para enfrentar tradições consideradas obsoletas ou iliberais. Por fim, o positivismo convencionalista, segundo o qual a interpretação deve se basear no modo como uma comunidade de falantes usa os termos sujeitos à interpretação, igualmente tem algum apelo à tradição pela qual esses termos são interpretados. Como, todavia, as convenções mudam de maneira contingente, essa perspectiva serve também para fundamentar teses de mutação constitucional, geralmente contrárias ao conservadorismo.
Essas considerações devem servir apenas para demonstrar que o recurso retórico à tradição em si diz pouco, e pode trazer mais dúvidas do que esclarecimentos. Por quantos anos e por que proporção populacional uma prática interpretativa deve ser mantida para ser considerada uma tradição? A tradição se fundamenta por si mesma, ainda que contrarie direitos fundamentais? A questão da vez é: “O direito ao aborto pode ser derivado do direito fundamental à liberdade?” E, a depender do modo como o termo “tradição” for usado, diferentes respostas lhe poderão ser dadas.
Por isso, há quem aposte na lógica para diferenciar derivações normativas pertinentes e impertinentes. A lógica seria a ferramenta utilizada pelo intérprete para construir, a partir de inferências, da analogia e da busca pelo propósito presumidamente racional que fundamenta aquela norma, interpretações de casos difíceis, em que o direito não oferece uma resposta explícita ou não há consenso interpretativo. Foi a partir do recurso à analogia, aliás, que o STF reconheceu o direito dos casais homoafetivos de celebrarem uniões estáveis — a Corte entendeu que as semelhanças entre as uniões homoafetivas e heteroafetivas eram mais importantes que as diferenças. Por sua vez, o Justice Alito usou a analogia para recusar a comparação entre o direito ao aborto e direitos que envolveriam a intimidade e a liberdade sexual, como as uniões homoafetivas, pois, no caso do aborto, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/aborto-questao-de-batimentos-cardiacos-ou-de-igualdade-03122021">haveria uma violação ao direito à vida</a>. De volta ao Brasil, a permissão judicial para o aborto de fetos anencefálicos decorreu também de inferência a partir do sistema normativo brasileiro, que permitia o aborto em casos de colisão entre a vida do feto e a dignidade da mãe.
A lógica é parte da interpretação, mas seu uso carece de critérios avaliativos da pertinência entre os textos ou casos fonte e aqueles casos a eles comparados nos casos concretos (alvo), no caso da analogia, e entre o texto e a norma derivada, na derivação a partir de inferências.
Em suma, esse rascunho de decisão suscita mais dúvidas do que oferece respostas. Essas dúvidas são praticamente universais, e é por isso que a ciência jurídica brasileira deve estar preparada para elas.

Roe v. Wade

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JOTA

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