Mariana Capela Lombardi Moreto

Marcela Melichar Suassuna

Um dos verbetes sumulares mais utilizados no exame de admissibilidade dos recursos especiais consiste na Súmula 123 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), editada pela Corte Especial do STJ em 02 de dezembro de 1994, na qual se prevê que “[a] decisão que admite, ou não, o recurso especial deve ser fundamentada, com o exame dos seus pressupostos gerais e constitucionais.”
Em breves linhas, como parte do duplo juízo de admissibilidade dos recursos especiais – compreendido, nesse particular, em uma primeira análise preventiva do tribunal a quo, seguida de uma análise definitiva do recurso especial pelo tribunal ad quem, no caso, o STJ –, cabem aos respectivos tribunais, dentro de sua competência, examinar os pressupostos específicos do recurso para autorizar, ou não, o seu processamento.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Não é pouco frequente, entretanto, que sejam proferidas decisões de admissibilidade recursal por tribunais estaduais ou federais – isto é, os tribunais a quo – nas quais se adentrem na análise meritória do recurso especial, o que, como cediço, cabe única e exclusivamente ao STJ, por força do artigo 105, inciso III, da Constituição Federal (CF).
Essa usurpação de competência, em princípio, foge ao objetivo da Súmula 123 do STJ, que se destina originalmente a atribuir aos tribunais a quo e ad quem a aferição dos pressupostos recursais, gerais e constitucionais, porém dentro de suas respectivas competências, o que, hoje, não tem sido integralmente atendido em decisões de admissibilidade recursal e pelo próprio STJ ao analisar o tema.
<h3>Competência dos tribunais no exame de admissibilidade recursal</h3>
A CF estabelece, no seu artigo 105, inciso III, a competência exclusiva do STJ para “julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.”
Dessa forma, por força da alínea “a” do artigo supracitado, o STJ deve analisar especificamente se houve contrariedade ou negativa de vigência à lei federal em sede de recurso especial. Da mesma forma, o STJ também analisará alegação de dissídio jurisprudencial, consoante a alínea “c”, para verificar se foi conferida interpretação distinta à lei federal, por outro tribunal, em situação análoga.
De outro lado, o Código de Processo Civil (CPC) prevê o procedimento para interposição do recurso especial, que deverá ser interposto perante o presidente ou o vice-presidente do tribunal recorrido, conforme artigo 1.029, caput, do CPC. Após o oferecimento de contrarrazões pela parte recorrida, o tribunal a quo terá análise limitada sobre o recurso especial, o que inclui, no que pertine à Súmula 123 do STJ:
“I – negar seguimento:
a) a recurso extraordinário que discuta questão constitucional à qual o Supremo Tribunal Federal não tenha reconhecido a existência de repercussão geral ou a recurso extraordinário interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado no regime de repercussão geral;
b) a recurso extraordinário ou a recurso especial interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, exarado no regime de julgamento de recursos repetitivos;
(…)
V – realizar o juízo de admissibilidade e, se positivo, remeter o feito ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça, desde que:
a) o recurso ainda não tenha sido submetido ao regime de repercussão geral ou de julgamento de recursos repetitivos;
b) o recurso tenha sido selecionado como representativo da controvérsia; ou
c) o tribunal recorrido tenha refutado o juízo de retratação.”
Nenhuma das alíneas do artigo 1.020 do CPC atribui aos tribunais a quo competência para decidir acerca da ocorrência ou não de violação à lei federal ou da existência de dissídio jurisprudencial a respeito de determinado tema atividades que competem apenas à Corte Superior por disposição constitucional expressa, já que consiste em julgamento de mérito do recurso.
Em termos práticos, poderia se dizer que os tribunais de origem, no seu respectivo juízo de admissibilidade de recurso especial, podem analisar se há alegação de violação à lei federal ou se está em tese demonstrado o dissídio jurisprudencial, porém somente ao STJ caberá concluir se a lei federal foi violada ou não ou se houve decisões divergentes ou não por tribunais distintos a respeito de um mesmo tema.
<h3>Usurpação de competência do STJ pela não-observância da Súmula 123</h3>
Como se viu, o juízo de admissibilidade do recurso especial pelos tribunais de origem funciona como um mecanismo de filtro do STJ para o prosseguimento da análise do recurso. Contudo, nesse momento, seria cabível apenas a verificação de alguns pressupostos formais de admissibilidade do recurso especial.
Dentro dessas formalidades, caberia aos tribunais estaduais e federais verificar se a parte alegou violação de lei federal, se essa alegação foi ou não debatida na instância de origem (prequestionamento), se foi feito o cotejo analítico entre o acórdão recorrido e o paradigma quando for o caso, se houve o devido pagamento do preparo, se o recurso interposto é tempestivo, entre outros.
Não é, portanto, competência de tribunais a quo realizar o exame do mérito recursal, concluindo-se se houve, ou não, violação a lei federal suscitada pela parte recorrente. Não raro, porém, há decisões de inadmissibilidade de recursos especiais proferidas por tribunais de origem em que consta “inexistir infringência à lei federal”, que “não se provou transgressão aos dispositivos legais”, não haver “violação à lei infraconstitucional”, ou mesmo que “não restou comprovado o alegado dissídio jurisprudencial”, entre outras constatações similares.
Nesses casos, a atividade cognitiva constitui o próprio mérito do recurso especial interposto, o que atrai a competência exclusiva do STJ para o exame de seus termos.
<blockquote class="jota-article__eye">Por esse motivo, tais fundamentos citados acima, recorrentemente utilizados por decisões nas instâncias de origem, não poderiam servir como base para uma decisão de admissibilidade ou inadmissibilidade recursal.</blockquote>
Tal entendimento esbarraria, precisamente, na Súmula 123 do STJ, pois acaba por colocar, indevidamente, para os tribunais a quo, a atribuição de analisar pressupostos de admissibilidade de recursos especiais que não lhes cabe examinar, qual seja, o mérito recursal, entendido como a aferição se houve violação a dispositivo de lei infraconstitucional ou se há de fato dissídio jurisprudencial.
<h3>Interpretação e aplicação da Súmula 123 pelo STJ</h3>
Ao analisar recentemente a aplicação da Súmula 123, entretanto, o STJ tem adotado entendimento mais flexível no que se refere à incursão dos tribunais de origem na análise meritória dos recursos especiais, admitindo-a quando ela for “tangenciada”, por entender que tal exame, perfunctório, do mérito é inevitável aos tribunais a quo.
Nesse sentido, a Corte Superior já decidiu que “é possível a incursão no mérito da lide pelo Tribunal local quando necessária à análise dos pressupostos constitucionais de admissibilidade do recurso especial, nos moldes do preconizado no enunciado nº 123 da Súmula desta Corte, sem que isso configure usurpação de competência” (AgInt nos EDcl no AREsp 1186144/RS, rel. min. MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, j. 07/06/2021, DJe 11/06/2021).
O STJ fundamenta expressamente na Súmula 123 a possibilidade de os tribunais de origem se imiscuírem no mérito do recurso, entendendo que “cabe ao presidente da Corte local examinar a admissibilidade do recurso especial, o que por vezes implica exame superficial do próprio mérito, não significando usurpação de competência” (AgInt no AREsp 1263885/SE, rel. min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, j. 11/05/2021, DJe 14/05/2021).
Ainda sobre a inexistência de usurpação de competência também já se manifestou o STJ no sentido de que “afasta-se a alegação de usurpação de competência do Superior Tribunal de Justiça se o tribunal a quo, ao exercer o juízo de admissibilidade do recurso especial, examina tangencialmente o mérito para concluir pela inviabilidade recursal” (AgRg no AREsp 1727402/GO, rel. min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUINTA TURMA, j. 02/03/2021, DJe 05/03/2021).
A fim de compatibilizar a sua interpretação sobre os “pressupostos” dos recursos especiais que poderiam ser analisados pelos tribunais a quo, à luz da Súmula 123 e do artigo 105, inciso III, da CF, o STJ busca explicar que “(...) embora tangenciada a matéria de fundo, nessa fase preliminar [juízo de admissibilidade dos tribunais de origem] não ocorre o juízo de procedência ou improcedência da pretensão deduzida no recurso, mas, tão somente, a análise de sua viabilidade.” (AgInt nos EDcl no AREsp 1585474/RS, rel. min. MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, j. 08/06/2020, DJe 12/06/2020).
A linha, contudo, é bastante tênue entre o juízo da procedência do recurso no seu mérito, que caberia ao STJ, e a sua “viabilidade”, que a Corte Superior entende possa ser feita pela instância de origem. Ambas se referem a um exame meritório, que equivaleria a um julgamento (quiçá um pré-julgamento) do recurso em si, o que, como já se disse, é de competência exclusiva do STJ por força da CF.
A prática, entretanto, demonstra uma flexibilização do STJ ao analisar o tema, permitindo uma análise superficial do mérito do recurso especial pelos tribunais a quo, possivelmente como forma de desafogar o Poder Judiciário, notoriamente assoberbado por um número crescente de processos judiciais e de recursos.
No entendimento destas autoras, os tribunais estaduais e federais, ao realizarem o exame de admissibilidade do recurso especial, deveriam se ater aos pressupostos formais do recurso, tais como aferir se houve prequestionamento, se foi mencionada a respectiva alínea do inciso III do artigo 105 da CF para fundamentar o recurso excepcional, etc. Concluir se houve violação ou não, ou se há de fato dissídio jurisprudencial ou não, é questão de mérito do recurso, o que é de competência exclusiva do STJ.
Na prática, porém, em muitas decisões de admissibilidade recursal proferidas por tribunais a quo, o decisum acaba por enfrentar o mérito do recurso para concluir pela inexistência de violação à lei federal ou de dissídio jurisprudencial, ao inadmitir tais recursos, o que é indevido, seja pela ótica da CF, do CPC e da própria Súmula 123 do STJ.
A despeito disso, o próprio STJ interpreta a sua Súmula 123 de forma a admitir uma análise superficial do mérito dos recursos especiais pelos tribunais estaduais e federais, por entender que cabe a eles, no primeiro exame de admissibilidade, analisar os “pressupostos gerais e constitucionais” do recurso, o que englobaria tangenciar o mérito recursal.
Deve-se, entretanto, haver cautela nesse entendimento, a fim de que não sirva de salvo-conduto para que os tribunais de origem adentrem no mérito e decidam questões que caberiam unicamente à Corte Superior, incluindo-se, à toda evidência, a existência ou não de violação à lei infraconstitucional ou dissídio jurisprudencial, como preconizado na nossa Constituição Federal.
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JOTA

Tribunais estaduais e federais, ao realizarem o exame de admissibilidade, deveriam se ater aos pressupostos formais

A Súmula 123 do STJ e o juízo de admissibilidade dos recursos especiais

Tribunais estaduais e federais, ao realizarem o exame de admissibilidade, deveriam se ater aos pressupostos formais