Antônio Augusto Souza Dias Júnior

Em artigo publicado em setembro de 2020<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, defendeu-se que a mera constituição formal de uma pessoa jurídica dentro de um grupo apenas para permitir a dedução do ágio (interno, pois gerado em operações entre pessoas do mesmo grupo empresarial) deveria ser posta à prova diante das disposições legais que tratam da personalidade jurídica, da sociedade e da pessoa jurídica enquanto contribuinte de tributos.
Naquela ocasião, sustentou-se que noção de pessoa jurídica, seja no direito privado, seja no direito tributário, não permitiria o reconhecimento de efeitos jurídicos a uma sociedade constituída apenas por poucos dias, com o único objetivo de se aproveitar de um benefício fiscal. A personalidade jurídica, argumentou-se, só poderia ser utilizada para a consecução de fins sociais e econômicos, o que não seria atendido com uma existência efêmera premeditada de alguns dias.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Na presente oportunidade, serão abordadas algumas decisões de juízes federais da 3ª Região que adotaram posicionamento semelhante ao defendido no artigo citado.
O objetivo é demonstrar que o raciocínio ora exposto encontra guarida no judiciário, atento à utilização de formalidades documentais sem substância econômica. Em menor número, até pelo estágio relativamente recente da discussão no judiciário, alguns acórdãos do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região também serão mencionados.
Uma advertência se faz necessária. O levantamento de algumas decisões sobre a matéria não possui a pretensão de apontar uma proporção ou uma estatística de julgamentos.
<blockquote class="jota-article__eye">Busca-se, exclusivamente, demonstrar que a mera constatação acerca do cumprimento das formalidades contábeis ou de registro empresarial tem sido insuficiente em muitas das decisões envolvendo a análise de dedutibilidade do chamado ágio interno.</blockquote>
A tônica de tais decisões, assim, concentra-se no prestígio à “realidade econômica” (em oposição a formalismos documentais e de registro), sendo repudiado o valor de uma transação “artificialmente estabelecido dentro de um grupo econômico”. É o que se observa da decisão abaixo da 3ª turma do TRF da 3ª Região (grifos adicionados):
(...) 12. É indispensável que a integralização tenha ocorrido com base no valor real de mercado, o que não ocorre quando o "valor do negócio" é artificialmente estabelecido dentro do mesmo grupo econômico.
13. A entidade empresarial somente terá o direito de se apropriar de um ágio, para fins de amortização, quando isso verdadeiramente tiver representado um custo financeiro ou econômico para ela, segundo a sua interação com os agentes do mercado.
14. A autuação se afigura correta, pois tudo indica uma triangulação societária com a finalidade de criação artificial de ágio, para posterior amortização e de redução do IRPJ e da CSL, envolvendo empresas que tinham os mesmos controladores. (...)
(APELAÇÃO CÍVEL Nº 0017237-12.2010.4.03.6100/SP, j. 07/08/2014, publicado em 15 de setembro de 2014)
Poucos anos depois, a 6ª turma do TRF da 3ª Região apontou como um dos critérios utilizados nas razões de decidir a ocorrência ou não da “real intenção de investimento” (grifos adicionados):
(...) 2. Não obstante, in casu, o reconhecimento do ágio não é factível, visto que decorrente de transação albergada no âmbito de grupo econômico, especialmente considerando a operação de aquisição de 99% das ações (...)
4. O reconhecimento de ágio em operações realizadas por empresas que compõem determinado grupo econômico também é vedado pela Comissão de Valores Mobiliários, consoante se depreende do Ofício Circular CVM/SNC/SEP nº 01/2007, que trata de normas contábeis das companhias abertas.
5. Não merece guarida a pretensão da impetrante, especialmente considerando que a configuração do ágio pressupõe operação entre partes independentes com a real intenção de investimento, e não uma negociação consigo mesmo. (...)
(APELAÇÃO CÍVEL Nº 0027143-60.2009.4.03.6100/SP, j. 02/02/2017, publicado em 15 de fevereiro de 2017)
No primeiro grau de jurisdição, é possível encontrar diversas sentenças (e mesmo decisões interlocutórias que se adiantam no mérito) invocando a ausência de substância econômica das operações de reorganização societária para se vedar a dedutibilidade do ágio interno.
A criação de ágio dentro de um mesmo grupo econômico seria uma ficção, um “negócio consigo mesmo” incapaz de produzir os efeitos tributários de redução da base de cálculo do IRPJ e da CSLL (grifos adicionados):
(...) Se as diretrizes de contabilidade permitissem a existência de ágio em aquisição de participação dentro de um mesmo grupo econômico, em verdade estaria admitindo uma ficção, na medida em que, sendo o controle semelhante, não haveria, de fato, um investimento em terceiro à vista de lucro futuro, envolvendo risco, mas um investimento na própria empresa. Há uma "negociação consigo mesmo". Ademais, não se estaria em um ambiente de livre mercado, a propiciar a correta avaliação do valor da empresa. Além disso, daria azo à possibilidade de fraudes que permitissem simulações de aquisição de participações com ágio quando, em verdade, nenhum valor teria sido efetivamente investido, visando exclusivamente à redução da base tributária. (...)
(Sentença no processo 0027143-60.2009.4.03.6100. Disponibilização D. Eletrônico de sentença em 06 de maio de 2010, pag 22/35)
Como mencionado na introdução, a efemeridade de determinada sociedade (chamada de empresa veículo) é fator que pode ser somado à ausência de atividade econômica, para se reconhecer uma operação artificial e sem efeitos tributários. Nesse sentido:
(...) De todo o analisado, contudo, é possível inferir que o elemento tempo – curta existência da empresa (...) – e as circunstâncias reunidas no caso concreto – ausência de exercício de atividade econômica por essa empresa, indiciam mesmo que ela apenas foi criada ao fim da transferência do ágio invocado pela embargante, ou seja, houve constatação da existência da chamada ‘empresa veículo’ na espécie. Daí porque não há falar em verdadeira operação de incorporação, a legitimar o aproveitamento do ágio invocado (...)
(Sentença no processo 5002674-09.2018.4.03.6144. Disponibilizado no DJ eletrônico em 24 de junho de 2020)
A inexistência de substância econômica também pode ser espelhada na ausência de “intenção de investimento” ou “verdadeiro intuito negocial”, não havendo referido intuito quando da criação de empresas idênticas com novos nomes e CNPJs (grifos adicionados):
(...) Ora, da análise dos dispositivos mencionados, depreende-se que, para ser possível a dedução do ágio, deveria ter havido confusão patrimonial entre a investidora e a investida, o que não ocorreu, já que não houve unificação patrimonial das empresas após o término da reorganização societária. Na verdade, no caso dos autos, a operação se deu entre partes coligadas na qual não se vislumbrou a intenção de investimento.
(...) Assim, constatada a existência de manobra para obtenção do benefício fiscal, pela fiscalização, não há que se falar em irregularidade do lançamento fiscal (...)
(Sentença no processo 5013441-10.2019.4.03.6100. Disponibilizado no DJ eletrônico em 21 de novembro de 2019)
(...) A possibilidade de amortização de ágio é benefício fiscal e, como tal, deve ser interpretada restritivamente, nos termos do art. 111 do CTN: (...)
Na ausência do intuito negocial, depara-se com a ocorrência de ato simulado.
Assim a “incorporação” através da criação de empresas idênticas com novos nomes e CNPJs, sem verdadeiro intuito negocial, como ocorreu no caso, não pode ensejar o nascimento dessa figura econômica e contábil, ainda que, efetivamente, o ágio tenha ocorrido, como disse a própria autoridade administrativa, já que o seu aproveitamento está condicionado aos requisitos previstos em lei.
(Sentença no processo 5027639-23.2017.4.03.6100. Disponibilizado no DJ eletrônico em 20 de janeiro de 2020)
As decisões acima permitem concluir que o judiciário tem considerado de extrema relevância para decidir pela legitimidade ou não da dedutibilidade do ágio interno a “efetiva” ou “real” existência de uma sociedade utilizada na reorganização societária que dá ensejo ao surgimento de ágio.
Pessoas jurídicas que existem por um curto período e de forma premeditada, sem exercer qualquer atividade no mercado, são consideradas artificiais. Tais pessoas jurídicas, a despeito de serem constituídas formalmente no sentido de terem seus atos constitutivos devidamente registrados nos órgãos competentes, não passam de artificialidades, entes sem nenhuma substância.
A ausência de substância, aliás, vai além do que tradicionalmente se reconhece pela “substância econômica”. Mais uma vez resgatando o artigo citado na introdução, sequer o direito (privado ou tributário) reconhecem como pessoa jurídica um registro de documentos que não tem qualquer finalidade de produzir efeitos na sociedade com o exercício de uma atividade econômica ou social, A ausência de substância não é, portanto, apenas de ordem econômica.
De fato, a utilização de reorganizações societárias mediante utilização de sociedades efêmeras (empresas veículos) pode perfeitamente ser entendida como um ato de simulação. Há a criação de uma pessoa jurídica em descompasso com o objetivo visado na lei para tal.
Enquanto a legislação (privada ou tributária) admite a personalidade jurídica como meio de separação patrimonial para a persecução de uma atividade de forma contínua e duradoura, a empresa veículo nasce com uma existência predeterminada de poucos dias, sem nunca ter atuado no mercado ou participado de alguma relação com terceiros. Outro enquadramento não pode haver à figura da empresa veículo que não seja a simulação, a fuga da juridicidade.
Falta mesmo uma substância jurídica, a se considerar que o instituto da “pessoa jurídica” no Direito não é o registro de documentos em certos órgãos como um fim em si mesmo, mas sim um ente voltado à consecução de finalidades de ordem econômica e social, ou, na dicção do art. 126, III do CTN, uma “uma unidade econômica ou profissional”, que não se confunde com uma mera constituição formal.
O autor agradece à indispensável pesquisa de jurisprudência da procuradora da Fazenda Nacional Flávia de Arruda Leme, sem a qual este artigo não teria surgido.
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O episódio 50 do podcast Sem Precedentes faz uma análise da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal nesta semana e que pode acelerar a aplicação de vacinas contra a Covid-19. Ouça:
https://youtu.be/b9z7dDRHnrg
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TRF3

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JOTA

Uma análise de decisões no TRF da 3ª Região

A substância econômica e o ágio

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