Marcelo Goyanes
Sócio fundador de Murta Goyanes Advogados e professor da PUC-Rio
A disputa judicial enfrentada pelos músicos Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, em relação ao direito de utilizar a expressão “Legião Urbana”, ganhou novo capítulo diante da iminente apreciação da matéria pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A formação definitiva da Legião Urbana nasceu em 1982, em Brasília, com Renato Russo, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos. Apesar de Renato Rocha ter entrado posteriormente e permanecido um curto período, foi o trio original que a eternizou. Juntos, foram responsáveis pela concepção, divulgação e consolidação da enorme expressão da banda perante o público ao longo dos anos. Expressão essa definida tanto pela denominação do grupo quanto pelo nome do primeiro disco lançado, Legião Urbana, que, como não poderia ser diferente, se confunde com a própria personalidade dos músicos que a formaram.
Por questões exclusivamente contábeis, cada integrante constituiu sua própria pessoa jurídica como sócio majoritário, com os demais integrantes como minoritários. Surpreendidos com a tentativa oportunista de um desconhecido de registrar o nome Legião Urbana como marca de indústria e comércio no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), os integrantes da banda, de comum acordo, depositaram um pedido de registro para a mesma expressão em nome da empresa cujo sócio majoritário era o crooner Renato Russo. A decisão foi tomada porque o INPI não admitia cotitularidade em registros de marca.
Renato Russo dizia que a Legião Urbana pertencia aos seus integrantes, cabendo a eles todas as decisões da banda. Tanto é verdade que toda a receita era dividida igualmente entre os integrantes, exceto os direitos autorais sobre as composições. Após a sua morte, essa igualdade de direitos chegou ao fim. Dado e Bonfá deixaram de ser sócios da empresa de Renato, que, representada pelo seu herdeiro, começou a criar barreiras impedindo que fizessem qualquer referência ao nome da banda.
O herdeiro havia proibido que os músicos utilizassem a expressão Legião Urbana para desempenhar atividades artísticas, em razão da existência do famigerado registro de marca emitido pelo INPI.
Mais de uma década após a extinção da banda, Dado e Bonfá decidiram retornar aos palcos para comemorar 30 anos do lançamento do primeiro disco, intitulado Legião Urbana. Para tanto, em 2013, ajuizaram uma ação declaratória contra a Legião Urbana Produções Artísticas Ltda., buscando assegurar o direito de uso legítimo do nome Legião Urbana no exercício de suas atividades artístico-musicais, sem ameaças pelo herdeiro do Renato.
A volta aos palcos para “tocar Legião Urbana” foi respaldada na acertada sentença, já transitada em julgado, proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ)[1], que proibiu definitivamente a Legião Urbana Produções Artísticas Ltda. de impedir que os músicos usassem o nome Legião Urbana no desempenho de suas atividades.
Afinal, os músicos jamais renunciaram ao uso do nome da banda, apesar do registro da marca junto ao INPI. Na verdade, a empresa liderada por Renato se tornou a única titular do registro de marca, porque o INPI não admitia cotitularidade de registro. Vale lembrar: a decisão foi tomada em comum acordo e em nome dos integrantes, que mantiveram intacto o direito de usar o nome, que se tornara quase um sobrenome, atributo inerente e indissociável às suas personalidades.
Essa formalidade perante o INPI não legitima a conduta do herdeiro. O nome foi construído pelos três integrantes, os verdadeiros titulares do patrimônio cultural e artístico. Também é deles o direito de usar a expressão Legião Urbana, na qualidade de músicos reconhecidos publicamente com integrantes da sua formação eternizada.
A sentença proferida na ação declaratória reconheceu aos autores o legítimo direito de uso da marca/nome da banda em suas atividades profissionais. E determinou que a Legião Urbana Produções Artísticas Ltda - que continua com a titularidade do registro da marca - não crie obstáculos para que eles exercessem seus direitos como músicos.
Apesar do julgamento definitivo pelo TJRJ, o herdeiro propôs uma ação para rescindir tal sentença. O pedido rescisório foi julgado improcedente pelo TJRJ[2]. O órgão considerou que se tratava de uma mera tentativa indevida de revisão do mérito da causa. Depois, interpôs recurso especial inicialmente inadmitido pelo Tribunal de origem[3], seguindo-se o recurso de agravo[4], recentemente convertido em recurso especial pela exma. mininistra-relatora, Isabel Gallotti, no STJ. Por enquanto não há análise ou pronunciamento referente ao mérito recursal da ação rescisória.
Diferentemente do que foi divulgado, não há o porquê de se falar em violação de direito marcário. A questão se traduz no exercício regular de direito de uso de nome reconhecido judicialmente em favor dos integrantes da extinta banda, que contribuíram em igual proporção a Renato Russo para a criação e consolidação da expressão Legião Urbana e do seu inconfundível legado artístico.
Constitui-se legítimo, de fato e legalmente, o direito autônomo em favor de Dado e Bonfá de uso da expressão, inclusive, como marca, mesmo sem autorização prévia e sem qualquer contrapartida a Manfredini.
Não satisfeito em mover uma ação rescisória, o herdeiro ainda quer cobrar de Dado e Bonfá pelo uso da marca em suas atividades musicais. Isso mesmo depois do legítimo reconhecimento judicial do direito incondicionado que lhes assiste para “tocar Legião Urbana”, como costumavam anunciar, sem dever qualquer pagamento a terceiros.
O pedido da ação de cobrança foi julgado improcedente[5]. No entanto, foi reformado no TJRJ por uma decisão claramente equivocada[6], que ainda está em discussão com recurso pendente de apreciação pelo STJ[7].
Dado e Bonfá nunca afirmaram ou divulgaram que a banda existe ou voltaria a existir após a morte de Renato.
As referências à expressão Legião Urbana se relacionam à identidade artística dos integrantes, a exemplo de “Dado e Bonfá Tocam Legião Urbana”, em comemoração aos 30 anos do primeiro disco.
É evidente que o acórdão que reformou a sentença de improcedência na ação de cobrança partiu de equivocada premissa de que o referido uso se deu indevidamente. A decisão reconhece a absurda pretensão da empresa de Manfredini ao ser indenizada pelo uso da expressão e estabeleceu que Dado e Bonfá deveriam remunerá-la em um terço dos lucros da turnê comemorativa do disco Legião Urbana. A decisão viola o próprio preceito fixado na sentença declaratória transitada em julgado, em flagrante afronta ao princípio da segurança jurídica.
A condenação ao pagamento de indenização ou remuneração dependeria obrigatoriamente da existência de ato ilícito por parte dos integrantes remanescentes. Para isso, os músicos deveriam violar algum preceito legal, além de gerar danos pela relação de causa e efeito com a empresa Legião Urbana Produções Artísticas Ltda. Ou seja, somente nesta hipótese se poderia cogitar uma eventual indenização. E isso nunca ocorreu e sequer foi alegado.
Não há conduta ilícita da parte de Dado e Bonfá. Há um direito reconhecido expressamente por decisão judicial transitada em julgado, que garante a utilização da marca no exercício de seus ofícios, de forma independente e democrática, sem condicioná-lo a uma contrapartida financeira.
O referido acórdão favorece a empresa Legião Urbana Produções Artísticas Ltda., que pretende receber por uma atividade musical que, depois do falecimento de Renato Russo, jamais exerceu, além de não ter arcado com qualquer despesa dos shows realizados. O herdeiro pretende receber pela turnê comemorativa do lançamento do primeiro disco da banda. Ele desconsidera a existência de uma decisão judicial transitada em julgado, que assegura o legítimo exercício das atividades profissionais dos integrantes remanescentes da banda, sem qualquer contrapartida à sua empresa. A postura e a insistência em receber esse dinheiro revelam um comportamento arbitrário, imoral e ultrajante.
Por fim, ressalta-se que não há discussão, nas mencionadas ações, referentes a direitos autorais sobre as obras de Renato Russo e sua imagem.
Obviamente, a memória de Renato Russo e seus legítimos direitos devem ser preservados após sua morte. O que não se pode admitir é que seus antigos parceiros, Dado e Bonfá, sejam privados de forma arbitrária de exercerem seus direitos. É absurdo que eles tenham que lutar para preservar atributos que a própria sociedade lhes reconhece, ou seja, o fato de serem integrantes da lendária banda Legião Urbana, e que isso se estabeleça como uma extensão de suas personalidades.
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça: