Renato Silveira

Os sentimentos refletidos no título do presente artigo parecem ser antagônicos, mas não o são. Representam, em justa medida, o que, subjetivamente, se passa em duas vertentes distintas (que, por vezes, se sobrepõe) dos operadores do Direito Penal brasileiro quanto aos dias que correm. E isso, diga-se, por uma mesma causa: a preocupação acerca do assunto mais candente nesse início de ano no cenário criminal, vale dizer, o emprego que se dá sobre a colaboração premiada.
De um lado, diversos e brilhantes Tribunos têm se batido contra a nova feição assumida pela antiga delação premiada, a hoje chamada colaboração premiada. Acusam-na de ser utilizada como instrumento extorsionário de confissões, pois, junto à ela, seria, agora, agregada a situação de prisão preventiva. Assim, confessada ou inconfessadamente, a alegação seria de que a prisão preventiva seria utilizada para a obtenção de uma colaboração. Para tanto recorda-se desde o caso envolvendo Joaquim Silvério dos Reis, na Inconfidência Mineira; o julgamento dos Távoras, em um Portugal pombalino; e, até mesmo, a utilização de mesma deletéria prática na Alemanha nazista.
Haveria razão para essa revolta e esse inconformismo por parte dos Advogados? A resposta sóbria somente pode ser dada se vista, em conjunto, com a angústia sentida, pela mesma razão, pelo Acadêmico. Diga-se, aqui, que a princípio o instrumental da colaboração premiada tem um certo suporte técnico e é aceita em boa parte do mundo. Em verdade, deve-se ver, e entender, as dificuldades para a sua aceitação em países como o Brasil, que se dão por razões que remontam a própria base de origem do Direito Penal nacional.
Esse assunto não é de nada novo, e, talvez, a velhice, amiga do diabo, explique, em parte, a razão do que hoje se percebe. Vários penalistas do século XVIII já divergiam sobre o tema, ponderando, de um lado, por uma vertente de opção penal, humanista sim, mas a visualizar um castigo justo e necessário, como preconizava Beccaria. Seria a edificação da necessidade do castigo, fincada na sanção e na reprimenda, na pena. De outro, encontrava-se, claramente, uma ideia penal utilitarista de Bentham, que aceitava transigir com o acusado, formatando o que já tinha se definiria, anos depois, por Direito premial, nas palavras de Jhering, em meados do século XIX. Essas ideias rapidamente migraram para universos distintos, de distintas, por sua vez, famílias de Direito, vistas como civil law e common law. A separação, no entanto, não foi eterna, e, depois de algum tempo, em um movimento contra-evolucionário, as famílias começam a se reunir. A chamada expansão do Direito Penal – fenômeno do final do século XX, muito vinculado à globalização – acabou por pregar por uma reunião de momentos penais tão distintos quanto pareceriam o Direito Penal de cunho anglo-saxônico e o chamado Direito Penal continental, no qual o Brasil se inspirou.
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O desenvolvimento separado chegou ao Brasil nos anos 1990. Foi naquele momento, com a Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90) que aportou por estas bandas o instituto da delegação premiada. Ela foi sendo reformulada, até que a Lei nº 12.850/13 redefiniu-a como colaboração premiada. Boa parte do mundo jurídico brasileiro desde sempre repudiou essa construção, mas sua incidência era, a princípio, pequena, não gerando tamanha repercussão. Sua lógica, baseada em um utilitarismo evidente, encanta o leigo, e também ganha espaço, com mitigações, em outras searas jurídicas.
Tenha-se em mente, assim, por exemplo, as leis relativas ao controle de mercado. Estas, acabaram, nos últimos anos, por imaginar situações de abrandamento ou afastamento da sanção administrativa quando uma dada empresa membro de um cartel denunciasse o mesmo. É o que se tinha, inicialmente, por acordo de leniência, previsto na Lei nº 8.884/94. Em sua redação, a normativa do Conselho de Administração e Desenvolvimento Econômico (CADE), acabou por prever, também, certos reflexos penais. Muitos dos advogados oficiantes no Direito Empresarial tiveram vários senões quanto à aplicação dos chamados acordos de leniência. Hoje, principalmente após as previsões da Lei 12.529/11, as coisas significativamente mudaram, e os acordos de leniência, mesmo com efeitos penais, proliferam-se.
Mas, então – perguntará o leitor –, a revolta do Advogado criminalista, destacada ao princípio, não será, em curto prazo, substituída pelo conformismo e aprenderão, todos, a lidar com o novo instituto da colaboração premiada? Para a resposta, invoco, depois destas linhas, novamente a angústia do acadêmico. Não parece que os advogados venham, ou devam, se conformar com esse estado de coisas. Explico.
A colaboração premiada parece ser, sim, um fato inexorável. É um caminho sem volta, sem marcha à ré, como destaca Silva Sánchez, que, embora de forma lamentável, parece assolar a realidade contemporânea. Faz ela parte da construção desse novo Direito Penal. Um Direito Penal mais ligado à uma ideia econômica do Direito e à teoria dos jogos, do que outra coisa qualquer. O criminalista deverá, sim, ter que apreender a utilizar esse novo instrumental, sempre na defesa humanista de seu cliente. E, justamente aqui, começa a se tornar mais palpável a angústia.
O que não parece minimante aceitável, é que o instituto da colaboração premiada ganhe a dimensão que está a tomar sem regras claras, sem que se diga os limites de pressão que venham a ser impostos aos acusados. Não se pode concordar que a aplicação do chamado dilema do prisioneiro sirva para tudo, sempre, mesmo em absoluta violação dos mais inalienáveis direitos do homem. A pressão assim posta não difere, muito, de um ato de pressão tantas vezes visto em prisões arbitrárias. Incomoda, ainda mais, que o instituto da colaboração venha a se mostrar como a institucionalização de um arbítrio, que antes caminhava apenas pelas sombras. O mesmo se passa com os aspectos penais da leniência e, lá, os Advogados e os Acadêmicos têm denunciado sua revolta e sua angústia, pois a insegurança criminal para quem realiza a leniência junto ao CADE é assustadora.
Respondendo, pois, à indagação inicialmente colocada, é de se dizer que essa nova modalidade de direito premial é, sim, realidade mundo afora, e, como tal, deve ser compreendida pelo Advogado. Ela deve ser entendida como um instrumento de trabalho, sem necessariamente o repúdio visceral que se percebe. Entretanto, a revolta e a angústia hão de se firmar no sentido de rejeição, sim, da forma modal como se verifica sua utilização. Como a lei é absolutamente vaga, este sim, seria um momento dos Tribunais aplicarem um certo ativismo para tentar minimizar os estragos à dignidade da pessoa humana, firmando posição que, de nenhum modo, o Estado, ou mesmo o Direito, tudo podem. Até lá, a angústia ombreia-se à revolta, e não é de se aceitar o instituto como ele tem sido, recentemente, posto. Ele deve ser regulamentado para que se inicie a discussão. Até lá, a pecha de ilegítimo deve acompanhar-lhe. Como já pontuou Radbruch, existem limites para tanto, e entre as leis injustas e o Direito correto, há de se ficar com o Direito correto.

JUDGE’S DECISION FOR SETTING FREE 3

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JOTA

O emprego que se dá sobre a colaboração premiada.

A revolta do advogado e a angústia do acadêmico

O emprego que se dá sobre a colaboração premiada.