João Paulo Rodrigues de Castro

Na obra “Paraíso Perdido” (Paradise Lost, 1667), John Milton narra as penas dos anjos caídos após a rebelião no paraíso; o ardil utilizado por Satanás para fazer Adão e Eva comerem o fruto proibido e a subsequente queda do homem.
Interessa-nos particularmente o canto IX. Nesse capítulo, Milton enfatiza que Satã, depois de vagar pela Terra, entra no Paraíso de noite em forma de serpente, e convence Eva a comer o fruto proibido. Os argumentos desenvolvidos por Satã para corromper Eva são tratados, poeticamente, por Milton.
Mas são pouco convincentes para justificar a queda. Assegura a serpente, para persuadir Eva, que comeu do fruto proibido, e não morreu; e que, caso ela comesse, seria como Deus e Satã, conhecedora do bem e do mal (Gn 3; 4-5). Milton simplesmente replica o Gênesis em linguagem poética. E isso é tudo.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
A criatividade e grandiosidade do poema está no proêmio, na fase inaugural do discurso. Ao iniciar a fala com uma insinuação, a serpente teria ganho a causa. Isso mesmo. Na versão de Milton, a serpente falante (Satã) convence Eva à desobediência já no exórdio.
Ora, que todo homem ou mulher sujeitem-se à tentação, vá lá...! No entanto, estando Eva já no paraíso; que argumento poderia levá-la a agir, arriscando-se ao banimento definitivo do Jardim do Éden? Ainda que se aceite a tese da “primeira impressão”; como admitir que a vitória da serpente seja não só adiantada, mas cravada desde logo, já no início do discurso? Seria este o grande segredo de John Milton para a vitória em causas injustas: um início retumbante?
Antes de apresentar o ovo da serpente; releva notar a importância do proêmio na renascença, período impactante para a formação de John Milton. Na retórica clássica, não há consenso entre os oradores sobre a necessidade de apresentação da causa. Eles especificam que todo o discurso pode ser dividido em cinco partes: proêmio, narração, confirmação, refutação e epílogo.
Segundo Aristóteles<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>, o proêmio deve merecer pouca ou nenhuma atenção; chegando a afirmar que, diante de bons juízes, não há necessidade genuína de um. Foram os oradores romanos que enalteceram o proêmio. Um proêmio defeituoso, adverte Quintiliano, é “tão ruim quanto um rosto cheio de cicatrizes”<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>. Em termos náuticos: “o pior piloto é aquele que atraca o navio enquanto deixa o porto”<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>.
Em geral, foi aceito o argumento intermediário de Cícero, para quem um começo formal será indispensável sempre que houver a necessidade de preparar a mente do seu público para estar em condições de ouvir o restante do discurso<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>. Em outros termos, sempre que a causa for injusta, será necessário um proêmio.
Assista ao novo episódio do podcast Sem Precedentes sobre coesão do STF ao manter inquérito das fake news:
https://www.youtube.com/watch?v=T_EybueUsPo&amp;feature=emb_title&amp;utm_source=site&amp;utm_medium=jota%20info&amp;utm_campaign=Youtube%20Sem%20Precedentes%20ep.24%20site%2019/06/20
Como alerta Skinner<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a>, a técnica ciceroniana de valorizar o proêmio impactou sobremaneira Milton, dada a recepção do humanismo pelos teóricos educacionais do renascimento inglês.
Segundo o programa educacional da época, depois da gramática, o estudante era apresentado à poesia clássica e sobretudo a Homero. Após os quatorze anos, está pronto para a dialética e a retórica, sendo nessa última fase direcionado explicitamente às obras dos grandes de Roma (Cicero e Quintiliano).
<blockquote class="jota-article__eye">Desse modo, a importância da retórica, e sobretudo o enfoque dado aos oradores romanos no currículo da época, justifica a importância do proêmio em Milton.</blockquote>
Na prática, a valorização efetiva do proêmio ocorre da seguinte forma. Se o caso for injusto, devemos recorrer a um proêmio insinuativo. Um caso sujo, injusto, é, nas palavras de Cícero, aquele em que a mente do nosso público é hostil em relação à matéria em si.
Assim, se admitimos que nossa causa carece de honestidade, devemos começar implantando uma abordagem insinuativa. Na área criminal, por ex., se, após duas horas de acusação, a palavra é dada à defesa, não é efetivo que se comece o discurso retomando a narrativa do caso. Um proêmio vazio, nesse caso, só serviria para manter a energia canalizada pelo auditório; reverberando o discurso acusatório.
No caso de Milton, em paraíso perdido; a causa defendida pela serpente é notoriamente injusta, desafiando um proêmio insinuante. Satã luta contra uma proibição expressa de Deus: não comer o fruto do conhecimento.
Além disso, é preciso lutar contra o espírito da lei: a teleologia do mandamento proibitivo é obviamente manter Adão e Eva, presos, no paraíso. Se Eva já tem o sexo garantido e vive sem dificuldades, só resta à Serpente – seguindo a técnica retórica – começar o discurso com uma insinuação.
E aqui entra o gênio de Milton: qual argumento poderia ser inventado para que Eva infringisse o mandamento divino, correndo tanto risco? Só um: apelar para o desejo feminino de ser venerada por outros homens, além de Adão. Vejamos o início do discurso da serpente:
“Que todos a sua possessão ostentam
E adoram sua angélica beldade,
À qual se curvaria inteiro o Mundo,
Se inteiro contemplá-la ele pudesse.
Porém, aqui em tão agreste sítio,
Entre animais espectadores, espectadores rudes,
Quem nem metade veem quanto é linda,
Quem contemplá-la pode além de um homem?”<a href="#_edn6" name="_ednref6">[6]</a>
Ainda no exórdio, a serpente desfere o golpe mortal. Abusando da reticência, a serpente insinua a pouca monta de Adão para satisfazê-la no desejo de ser adorada por homens do mundo inteiro:
“E que é um homem só...para admirá-la...
Tu que entre deuses como Deusas deves
Adorada e servida ser por anjos
Em corte sem quantia, em pompa eterna?”<a href="#_edn7" name="_ednref7">[7]</a>
A serpente triunfa, afastando a resistência de Eva, que proclama:
“De muda que era conseguiu a fala,
E como, muito mais que os brutos todos,
Que presenciando estou em cada dia,
Hoje fez minha alegria,
Diga: tal maravilha é bem credora,
Que a mais séria atenção se lhe dirija”<a href="#_edn8" name="_ednref8">[8]</a>
O argumento da serpente é poderoso...tão poderoso que resiste a séculos e mesmo à interdição de uma política de gênero. De fato, o desejo é universal.
Assim, ao apelar para a ampliação do desejo de ser desejado, o que só poderia ocorrer fora do Éden, a serpente convenceria mesmo Adão. Milton muda o sentido do Gênesis sem corromper o texto.
Poderia ser Adão ou Eva o corrompido. Tanto faz. Todo o poder está na serpente, na tentação lançada no proêmio, na força eloquente do exórdio para a prática retórica.
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<hr />
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Edipro, 2019, p. 244.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> QUINTILIANO. Instituição Oratória: tomo II. São Paulo: Unicamp, 2015, p. 379.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> Ibidem.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> CÍCERO. Rhetorica Ad Herennium. Cambridge: Harvard University Press, 1954, p. 132.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[5]</a> A análise de Skinner é diretamente sobre Shakespeare, mas inclui Milton, por serem contemporâneos. SKINNER, Quentin. Forensinc Shakespeare. Cambridge: Harvard University Press, 2014, p. 142.
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[6]</a> MILTON, John. Paraíso Perdido. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 352.
<a href="#_ednref7" name="_edn7">[7]</a> Ibidem, p. 353.
<a href="#_ednref8" name="_edn8">[8]</a> Ibidem, p. 354.

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JOTA

Todo poder está na serpente, na tentação lançada no proêmio. Poeta muda sentido do Gênesis sem corromper o texto

A retórica no 'Paraíso Perdido' de John Milton: como defender uma causa injusta?

Todo poder está na serpente, na tentação lançada no proêmio. Poeta muda sentido do Gênesis sem corromper o texto