Eduardo Miceli

Os direitos autorais estão em constante tensão com direitos e garantias individuais. Admite-se a exclusividade sob a ótica utilitária do desenvolvimento das artes e das ciências, da concretização da personalidade do autor e, em certo grau, por existir um senso moral de recompensar o autor.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> A natureza restritiva dos contratos de direitos de autor protege os interesses do criador, costumeiramente hipossuficiente em relação às grandes companhias distribuidoras de criações do espírito, limitando contratos apenas ao que for necessário para seu cumprimento. Além disso, restringe-se a interpretação para que os direitos autorais não fujam do seu contorno excepcional de exclusividade, e, por conseguinte, crie maiores restrições aos ditames constitucionais do que o estritamente necessário.
Em recente acórdão, a 2ª Câmara Cível do Rio de Janeiro dirimiu a contenda ajuizada por Roberto Carlos e Erasmo Carlos em face da Universal Publishing Ltda.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Buscavam os ícones da Jovem Guarda a revisão de contratos celebrados entre as décadas de 1960 e 1990, alegando que não seriam contratos de cessão de direitos patrimoniais sobre as obras, mas sim de edição. O desembargador relator, em seu voto, distinguiu as duas modalidades contratuais. Aliás, o magistrado definiu a cessão dos direitos autorais como a transferência, a título oneroso ou não, de um ou mais direitos patrimoniais de autor. É a esfera patrimonial dos direitos autorais que permite que o criador de uma obra literária, artística ou científica explore-a economicamente em caráter exclusivo, enquanto perdurar o prazo legal. São estes os direitos que estão sujeitos ao exercício da autonomia do autor para alcançar determinados efeitos jurídicos, constritos, naturalmente, aos limites da fonte normativa<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. O contrato de edição, por sua vez, é aquele no qual o editor obriga-se a reproduzir e divulgar a obra observadas as condições e prazo pactuados com o autor — trata-se de autorização.
O voto deliberou que os pactos entre a apelante e apelados cumprem sua função social, tendo-se a satisfação dos interesses dos contratantes sido “plenamente alcançada”. Não caberia qualquer revisão dos instrumentos, estipulando o magistrado que a causa de pedir é uma inegável confusão de conceitos. Há de se observar, todavia, que mais do que um encaixe sobre o tipo de contrato previsto em lei, é essencial que se contemple a função alcançada pelos termos negociais.
Foi contemplado também pedido subsidiário, no qual alegaram que a apelante teria extrapolado o escopo dos contratos celebrados, uma vez que incluiriam a reprodução das obras em formato digital. Entendeu o desembargador relator que não prospera a alegação de que o contrato não alcança reproduções digitais. Sustentou tal entendimento no leading case do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/superior-tribunal-de-justica">STJ</a> e a decisão da corte em enquadrar reproduções via streaming como exibição pública, ainda que esta traga questões próprias na sua fundamentação<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
De toda monta, deu-se pouca relevância no caráter restritivo dos contratos de direitos autorais. Embora o caso tenha tratado de cláusulas que expressamente mencionam a transferência dos direitos autorais, abre-se uma perigosa interpretação acerca das modalidades de utilização autorizadas. A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-direitos-autorais">Lei de Direitos Autorais</a> (Lei 9.610/98) estipula, em seus artigos 4º e 49, VI, que os negócios jurídicos sobre os direitos autorais são interpretados restritivamente. Ao versar sobre a transferência dos direitos de autor, se não houver especificação quanto à modalidade de utilização, se entenderá que estas estão limitadas àquelas indispensáveis ao cumprimento do contrato. Ou seja, se há modalidades previstas no contrato, não há que se presumir que outras não mencionadas são abarcadas.
Assim, uma cláusula negociada décadas antes do advento da rede mundial de computadores não pode albergar modalidades de utilização em serviços de streaming ou ficheiros digitais. No surgimento dessas tecnologias emergentes, deve-se avaliar se novas modalidades de uso são necessárias para o fiel cumprimento do contrato, mas não devem estas serem presumidas. É demasiado custoso para um autor de uma canção, digamos, criada em 1965, que a interpretação dos contratos então celebrados incluam os direitos sobre mídias digitais e streaming. A finalidade do contrato, no contexto temporal da sua celebração, não pode conceber tecnologias ainda não desenvolvidas. Fazê-lo seria ter uma intepretação aberta sobre contratos de direitos autorais, ao invés da restritiva, preconizada pela lei.
Assim, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre streaming não pode servir como anuência dos cedentes/licenciantes de direito autoral para utilização de suas obras em formato digital. A interpretação do STJ sobre o encaixe da reprodução de músicas em plataformas como Spotify na noção de exibição pública não amplia, por si só, o escopo de uma cláusula contratual. A constrição de novas tecnologias em institutos consolidados do direito autoral não torna a interpretação de um negócio jurídico sobre direito autoral menos restritivo, ainda que traga maior clareza sobre seu encaixe no ordenamento jurídico.
Não se trata de uma iconoclastia do brocardo pacta sunt servanda, mas sim de uma visão holística sobre os direitos exclusivos intelectuais. Ao ceder direitos de exclusividade, cria-se um recorte na liberdade de expressão e na livre iniciativa — opostos à norma constitucional<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Os negócios jurídicos que versam sobre direitos autorais devem ser restritos com o intuito de contê-los nesse contorno de exclusividade. Ainda que se observe um tipo contratual expresso no caso em tela, é necessário aferir qual função os termos contratuais atingem — edição ou cessão. Mais do que isso, é indesejável, sob o prisma restritivo, atribuir modalidades de utilização ao contrato sem que se observe as demais condições contratuais.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “O fato de os primeiros titulares de direitos exclusivos sobre obras literárias terem sido principalmente livreiros, em vez de autores, é citado por alguns estudiosos como uma espécie de “pecado original” do instituto jurídico do direito autoral, em especial no sistema copyright, denominação comumente associada à escola de pensamento anglo-saxã, em oposição à escola francesa do droit d’auteur. Ainda de acordo com essa perspectiva, o copyright teria nascido na Inglaterra, durante o reinado de Maria Tudor (1553-1558), em um acordo de conveniência firmado entre a realeza e uma associação de editores, a Stationers’ Company. O objetivo seria garantir privilégios econômicos a um determinado grupo de empresários, em troca de apoio político e da possibilidade de censura real sobre textos que de qualquer forma ameaçassem a segurança institucional da Coroa  Em especial entre autores latinos, é comum a opinião de que o sistema droit d’auteur, concebido pouco depois na França, teria sido responsável pelo rompimento do paradigma da titularidade originária do investidor (editor), transferindo ao autor os direitos sobre suas obras, na esteira humanista da Revolução de 1789. A partir dessa nova premissa, o autor – e não mais o investidor – assumiria o papel central, tanto no sistema droit d’auteur como no sistema copyright, embora diferenças “filosóficas” originais ainda se façam presentes nas particularidades de cada um.” (VASCONCELOS, Cláudio Lins de. Mídia e propriedade intelectual. A crônica de um modelo em transformação.  Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. p. 29-31.)
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Segunda Câmara Cível. Apelação Cível n. 0321281-04.2018.8.19.0001. Desembargador Relator Paulo Sérgio Prestes do Santos. 27 de abril de 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Os direitos denominados morais de autor, em contrapartida, são inalienáveis e irrenunciáveis, não sendo um objeto lícito para a concretização de um negócio jurídico, ainda que existam e sejam possíveis. (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. 22ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p.  203-206)
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. O STJ e o streaming. Disponível em &lt; <a href="https://www.jota.info/especiais/o-stj-e-o-streaming-07052017?amp=1">https://www.jota.info/especiais/o-stj-e-o-streaming-07052017?amp=1</a>&gt;. Acesso em 5 de maio de 2022.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010. p. 342.

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Entendimento do STJ sobre streaming não pode servir como anuência de cedentes para usar obras em formato digital

A restritividade dos negócios jurídicos no direito autoral

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