Fernanda Gueiros Bernardes

Tema atual e muito debatido no Brasil, a responsabilidade jurídica do agente marítimo há muito foi estabelecida pelos tribunais norte-­americanos. A regra geral está consolidada nos Estados Unidos desde o século retrasado. No Brasil, por outro lado, um país que agora começa a ganhar mais foco no setor marítimo e portuário, as decisões judiciais são em boa parte contraditórias. Assim, há muito da lei americana de que podem se valer os tribunais brasileiros e o Congresso Nacional, a fim de acomodar as nossas ultrapassadas disposições legais à indústria marítima e portuária moderna.
O Agente Marítimo
As primeiras agências marítimas surgiram nos portos há mais de um século. Antes do seu surgimento, o capitão do navio era tido como o representante dos armadores nos portos onde o navio viesse a atracar. Entretanto, ante o avanço do comércio marítimo internacional, os armadores se viram diante da necessidade de contratar representantes nos diferentes portos, para prestar serviços de apoio às embarcações e dar cumprimento aos trâmites burocráticos de cada local. Assim, surgiu a agência como uma empresa portuária local.
O agente marítimo, como o próprio nome indica, é representante de um personagem principal. Tal protagonista é o armador do navio. O armador é a pessoa física ou jurídica que explora a embarcação comercialmente. As atividades da agência variam de acordo com o contrato firmado entre ela e o armador.
A Responsabilidade do Agente Marítimo nos Tribunais Norte­-Americanos
Os Estados Unidos adotam o sistema jurídico do Common Law [1], em que a legislação se forma a partir dos precedentes. Muito embora no mencionado sistema também existam códigos e legislações específicas, a jurisprudência é a base do direito. Assim, a lei é comumente referida pelo nome dos casos. (ex.: Johnson v. Nixon).
A Suprema Corte Americana, ao longo dos anos, definiu regras gerais quanto às responsabilidade dos agentes, aplicáveis de forma ampla e abrangente.
Em 1827, no caso General Interest Ins. Co. v. Ruggles [2], a Suprema Corte dos EUA estabeleceu que “com respeito às apólices de seguros, bem como todos os outros contratos, o principal é responsável pelos atos de seus agentes; e qualquer erro ou ocultação material pelo agente é igualmente fatal ao contrato, como se realizado pelo próprio principal [3]. Mas, tal responsabilidade deve necessariamente estar limitada aos casos em que o agente atua no âmbito da autoridade a ele concedida”[4]. Portanto, a lei americana prevê que o agente não é responsável pelos atos realizados em nome do seu mandante, desde que esteja agindo dentro da esfera contratada.
Em 1943, no caso Brady v. Roosevelt S.S. Co. [5], a corte decidiu que o principal não é responsável por cada ato negligente de seu agente. A negligência do agente pode ser imputada a ele mesmo.
Em síntese, a lei norte-­americana determina, como regra geral, que o agente não é responsável pelos atos realizados em nome de seu mandante. Entretanto, pode o agente ser responsabilizado, sim, nos casos em que ultrapassa o âmbito de suas atribuições, ou quando as exerce de forma negligente. Se age diligentemente e dentro do contratado, a lei o exime de responsabilidade.
Em Pacific Employers Ins. Co. v. M/V Gloria [6], verifica-­se como se dá a aplicação das leis acima referidas pelo tribunal. No caso, uma carga de soja transportada de Nova Orleans, EUA, a Puerto Limón, na Costa Rica, chegou avariada. O agente havia realizado o ensacamento, o registro e a estiva da carga antes do início da viagem. Além disso, havia emitido 7 (sete) documentos de conhecimento de embarque (bill of lading), todos indicando que a carga estava em “bom estado aparente” (apparent good order). Com a finalidade de alocar legalmente a responsabilidade pela avaria da carga, o Tribunal Federal do 5º Circuito dos EUA analisou os fatos detalhadamente para descobrir para qual das partes envolvidas (no caso havia um afretador por tempo e um afretador por viagem) o agente estaria atuando especificamente quando emitiu o conhecimento de embarque, pois, a partir daquela emissão, foi celebrado o contrato de transporte daquela carga específica. Assim, após minuciosa análise, a corte impôs condenação somente ao mandante daquele agente, no caso o afretador da embarcação por tempo. Obedecendo a lei estabelecida pela Suprema Corte, a decisão garante a necessária segurança jurídica.
Casos como esse são raros nos Estados Unidos. Atualmente inexistem novos casos de debate sobre a responsabilidade do agente marítimo, por se tratar de matéria de entendimento pacífico.
A Responsabilidade do Agente Marítimo nos Tribunais Brasileiros
Um dos maiores desafios enfrentados pelos tribunais brasileiros nos casos marítimos está em interpretar as leis marítimas ultrapassadas, ou em aplicar entendimentos analógicos frente às muitas lacunas nas leis. O Brasil adota o sistema romano­ germânico, cuja base se encontra em códigos e leis. Mas, ao contrário do que vemos nos Estados Unidos, o Brasil não possui regra que defina a responsabilidade do agente marítimo de uma forma geral. O Superior Tribunal de Justiça já se posicionou a respeito de algumas situações específicas. Entretanto, sobre o mesmo tema, é possível encontrar entendimentos opostos.
Os agentes ora são condenados, ora inocentados. Os mandantes, gigantes ao lado dos agentes, muitas vezes são empresas estrangeiras sem sede no Brasil. Portanto, não raras vezes, o agente responde isoladamente por demandas milionárias que, muitas vezes, dizem respeito a um contrato celebrado fora do Brasil, antes mesmo de sua contratação.
O conceito de agência está contido artigo 710 do Código Civil Brasileiro: 
“Art. 710. Pelo contrato de agência, uma pessoa assume, em caráter não eventual e sem vínculos de dependência, a obrigação de promover, à conta de outra, mediante retribuição, a realização de certos negócios, em zona determinada, caracterizando-­se a distribuição quando o agente tiver à sua disposição a coisa a ser negociada.”
De acordo com esse dispositivo, o agente age em nome de outrem. Se a lei assim define a agência, não faz sentido que ela seja responsabilizada pessoalmente pelo quanto pratica em nome de outrem, da mesma forma que um advogado que possui procuração para representar os interesses de seu cliente não é parte legítima para responder, em nome próprio, pelos danos causados por seu cliente a terceiros, ainda que sua representação tenha causado o mal ao cliente. Cada contrato só pode alcançar os que se obrigaram pelo pacto.
No julgamento do REsp 246.107/SP7 debatia­-se a responsabilidade do agente quanto à entrega do conhecimento de carga ao comprador estrangeiro. O agente, agindo em nome do transportador, se recusou a entregar o conhecimento de transporte ao comprador no porto de destino. Assim, a empresa que vendeu os produtos não recebeu o valor pactuado em seu contrato com o comprador. Ajuizou, portanto, ação indenizatória contra o transportador e o seu agente. O tribunal de origem entendeu que a responsabilidade do transportador e do agente seria solidária, pois o agente não poderia ser eximido de responsabilidade.
O Ministro Relator inicialmente analisou a natureza jurídica do contrato de agenciamento marítimo. Concluiu ser este equivalente ao mandato mercantil, nos termos do artigo 140 do Código Comercial. Vejamos trechos do voto:
"(...) o que se tem na agência marítima é mandato mercantil. Neste último, o mandatário atua em nome do mandante, vinculando a este seus atos (...) A consequência inarredável de tal conclusão é a de que o mandatário, quando age nos limites do mandato, não tem responsabilidade pelos danos causados a terceiros, pois não atua em seu próprio nome, mas em nome e por conta do mandante. Portanto, o único responsável perante terceiros é o próprio mandante. (grifei)
De acordo com precedente citado, portanto, o agente não seria responsável pelos atos praticados em nome de seu mandante.
Nessa mesma decisão, determinou­-se que, mesmo quando o agente desobedece as instruções de seu mandante, este ainda é o responsável legal pelos atos do agente, desde que tais atos não excedam os limites estabelecidos pelo contrato de agenciamento.
“Assim, resta evidente que o agente marítimo, como mandatário mercantil do armador (mandante), não pode ser responsabilizado pelos atos realizados a mando daquele, quando nos limites do mandato. Permitir tal responsabilização seria desfigurar a própria natureza jurídica do mandato mercantil.”
Esse entendimento é semelhante ao entendimento norte-­americano.
Todavia, após estabelecer o entendimento do STJ, a Terceira Turma decidiu que a decisão não poderia ser revertida, ante o óbice fático­probatório, pois o tribunal de origem entendera que o agente havia extrapolado os limites concedidos pelo mandato.
No julgamento do REsp 404.745/SP8 observa­-se entendimento diverso. No caso, o proprietário da carga apresentou ação indenizatória contra o agente do transportador pela perda de 1.490 garrafas de vinho causada pela inobservância da temperatura adequada dentro do container durante o transporte. O transportador era uma empresa situada na Espanha.
Apesar de o tribunal de origem ter proferido entendimento no sentido de que o agente não seria parte legítima para figurar no pólo passivo da demanda, o STJ reverteu o julgado, em decisão assim fundamentada:
“O agente marítimo, na condição de mandatário e único representante legal no Brasil de transportadora estrangeira, assume, juntamente com esta, a obrigação de transportar a mercadoria, devendo ambos responder pelo cumprimento do contrato do transporte internacional celebrado. Com efeito, tendo o agente o direito de receber todas as quantias devidas ao armador do navio, além do dever de liquidar e de se responsabilizar por todos os encargos referentes ao navio ou à carga, quando não exista ninguém no porto mais credenciado, é justo manter­-se na qualidade de representante do transportador estrangeiro face às ações havidas por avaria ou outras consequências, pelas quais pode ser citado em juízo como mandatário. Legitimidade passiva ad causam reconhecida.” (grifei)
O tribunal aplicou o disposto no artigo 1300 do Código de Civil de 1916, que diz que
“o mandatário é obrigado a aplicar toda a sua diligência habitual na execução do mandato, e a indenizar qualquer prejuízo causado por culpa sua ou daquele a quem substabelecer, sem autorização, poderes que devia exercer pessoalmente”. A decisão anota, ainda, que o artigo 12, VIII do CPC prevê que a pessoa jurídica estrangeira é representada em juízo, ativa e passivamente, "pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil". Sendo assim, o STJ nesse caso considerou que o agente não é mero agente, mas também representante legal do principal apto a responder em juízo pelos danos causados a terceiros.
Assim, não encontrando óbice de natureza fático-­probatória, o STJ reverteu a decisão de origem, e condenou o agente solidariamente com seu principal pela perda da carga. O agente interpôs embargos de declaração, mas a decisão foi mantida. [9]
Ocorre que, no REsp 209.053/RJ [10], analisando fatos praticamente idênticos ao REsp 404.745/SP, a mesma Quarta Turma, poucos anos antes, havia mantido decisão de origem com orientação completamente oposta. Tratou­-se também de ação indenizatória em razão de avarias causadas à carga e, novamente, ante a inobservância da temperatura indicada para a conservação da carga. O transportador era, igualmente, uma empresa estrangeira, e o contrato de transporte havia sido celebrado na França.
Nesse caso, o tribunal de origem também concluiu que o agente marítimo não seria parte legítima a figurar no pólo passivo da demanda, pois não foi ele quem celebrou o contrato de transporte. O STJ, encontrando óbice na análise fático-­probatória, manteve a decisão recorrida em acórdão assim ementado:
“Responsabilidade civil. Indenização por danos causados a mercadoria transportada por navio. ­ Agente marítimo da companhia transportadora não pode responder em nome próprio pelo pedido de indenização – Ilegitimidade passiva da ré ­ Embargos acolhidos para se decretar a extinção do processo por ilegitimidade de parte”.
Por fim, a importadora apresentou embargos declaratórios, que foram rejeitados pelo STJ. Manteve­-se a orientação que eximiu o agente de responsabilidade. [11]
Comparando­-se as decisões acima, torna­-se evidente que não existe uma orientação clara sobre a responsabilidade do agente marítimo no Brasil. Decisões divergentes se intercalaram no STJ nos últimos anos. Certo é que a falta de uma postura firme da legislação ou da jurisprudência é prejudicial às partes que se envolvem nesses litígios e compromete a paz social.
Conclusão
De um lado, temos os Estados Unidos, que definiram a lei de responsabilidade geral das agências em 1827. A ampla experiência do país no comércio marítimo lhes direcionou à consolidação legal: os agentes não tem legitimidade para responder por atos realizados a mando de seus contratantes.
De outro lado, temos as decisões brasileiras aqui datadas entre 2003 a 2013, mas ainda sem direcionamento consolidado. O Superior Tribunal de Justiça ainda pode definir um parâmetro quanto à responsabilidade dos agentes, aplicando analogicamente as leis existentes. Entretanto, o Brasil não se situa dentro do Common Law e, em vista dos entendimentos diversos, faz­-se urgente a elaboração de lei para esclarecer esse assunto pelo Congresso Nacional. E, sendo o Brasil um país de tradição ainda pobre em matéria de direito marítimo, a lei norte-­americana certamente pode lhe servir de orientação.
Do ponto de vista prático, se empresários estrangeiros são responsáveis por tributos e infrações dentro do Brasil, cabe aos agentes públicos agir com rapidez e eficiência, a fim de autuar ou mesmo arrestar navios enquanto no Brasil, de forma a resolver a lide com os legítimos destinatários das autuações. Se a disputa envolve particulares internacionais, como nos casos citados de avaria da carga, importa preestabelecer cláusula de arbitragem, como já é praxe nos contratos marítimos, para solução de eventual controvérsia e garantia de segurança às partes envolvidas.
Enfim, para que o Brasil ganhe tradição na área marítima e portuária, setor em que a carência nacional é sentida e comentada, é válido estudar o desenvolvimento que o direito sofreu em nações em que se faz intensa essa modalidade de comércio, para alcançar amadurecimento, confiança e a real inclusão econômica do país no sistema marítimo internacional.
<hr />
[1]  Com exceção do estado de Louisiana, que aplica o sistema romano­germânico ou Civil Law. 
[2] 25 U.S. (12 Wheat.) 408 (1827) 
[3] Id. at 418 
[4] Tradução livre
[5] 63 S. Ct. 425 (1943) 
[6] 767 F. 2d 229 (5th Cir. 1985) 
[7] REsp 246.107/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJ 07/03/12 
[8] REsp 404.745/SP, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, DJ 06/12/2004 
[9] EDcl no REsp 404.745/SP, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, DJ 19/06/13 
[10] REsp 209.053/RJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, DJ 06/10/03 
[11] EDcl no REsp 209.053/RJ, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, DJ 22/10/07

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A responsabilidade jurídica do agente marítimo no Brasil e nos EUA

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