Análise

A reputação de uma Corte em frangalhos, o Roda Viva e a Nota Técnica nº 24 do CNJ

No Roda Viva, Toffoli realçou a importância de sua gestão na presidência do STF diante da pandemia do Covid-19

Dias Toffoli vota contra a incidência de IRPF sobre pensão alimentícia
Ministro Dias Toffoli no Roda Viva. Crédito: Twitter

Os juízes, como Hamilton anotou no escrito No. 78 dos papéis de “O Federalista”, não gozam da capacidade de controlar quer o dinheiro ou as espadas do país: “pode-se dizer que não têm nem força, nem vontade, mas apenas o juízo; e dependem, em última instância, da ajuda do braço executivo mesmo para a eficácia das suas decisões” [1].

Juízes dependem quase exclusivamente de sua reputação para obter recursos, manter sua autonomia e garantir o cumprimento de suas decisões. A reputação não é apenas uma qualidade essencial do judiciário como um todo, mas também de cada juiz individualmente. À medida que se engajam institucionalmente, alguns juízes conquistam respeito; outros, o desprezo. Bom juiz sabe distar da opinião pública, preservando a reputação do tribunal. Mau juiz busca os holofotes da mídia de massas, prejudicando tal reputação.

Portanto, a reputação de um sistema de justiça varia de acordo com a maneira pela qual seus membros respondem aos incentivos fornecidos pelos diferentes públicos com os quais interagem e como as estruturas institucionais canalizam essas interações [2]. Daí, a importância de se entender o Judiciário em função dos diferentes públicos-alvo com os quais busca interagir.

No último Roda Viva, o Ministro Dias Toffoli realçou a importância de sua gestão na presidência do STF diante da pandemia do Covid-19. Argumentou, à jusante, que se quisermos resgatar a sociedade brasileira, se quisermos viver dentro de padrões aceitáveis de convívio, é preciso que o poder judiciário atue na função de intermediador de conflitos sociais e políticos.

À montante, transpareceu uma sensação de incômodo em seu peito, seguida de um esforço tremendo para exibir intelectualidade naquela noite. Enquanto, nas entrelinhas, víamos um tipo de esgarçamento da Constituição Federal de 1988, isto que vai corroendo as instituições jurídico-políticas, à medida que o magistrado se engajava com os jornalistas comentando a conjuntura política. Aqui, suas falas no Roda Viva serão lidas em conjunto com a Nota Técnica no 24, editada pelo CNJ, no dia seguinte ao da entrevista, em 12 de maio de 2020.

Vivemos uma explosão de conflitualidades latentes no Brasil, o que vem revelando, cada vez mais, a heterogeneidade de nossa sociedade, onde a pobreza é subdividida em segmentos mais pobres, menos pobres, as necessidades de saúde se subdividem em mais insatisfeitas ou menos insatisfeitas, e mesmo as truculências, que grassam em toda parte, podem ser mais ou menos truculentas, enfim, vivemos uma realidade em que os interesses coletivos conflitam entre si o tempo todo. Enfrenta-se novamente um sério risco que parecia haver se dissolvido desde a transição democrática: “o da polarização dos grupos e classes em confronto hegemônico, seguido de uma politização total – e, portanto, não-controlável – dos conflitos [3]”.

O mecanismo adotado pela gestão Toffoli para dissuadir estas conflitualidades latentes, incluindo as que envolvam o consumo de prestações sanitárias, tem sido a criação, pelo CNJ, de “enunciados interpretativos”, de “notas técnicas” e o estímulo a “formas extrajudiciais” de solução de conflitos. Daí, surgem novos foros dentro do CNJ, compostos por membros do judiciário, acompanhados, por vezes, de gestores públicos, tecnocratas e outros burocratas, que começam, então, a elaborar suas próprias “regras” para além dos conceitos de direito sanitário positivados pelo legislador, com o objetivo de arbitrar a conflitualidade em saúde.

A Nota Técnica nº 24 trata de um “plano de ação sobre ocupação dos leitos de UTI público-privados e de uma centralização na sua gestão”. Nela, estão presentes termos como “racionalização do uso” e “acordos de gestão”, justificando-se a fim de “evitar soluções que não deixarão um legado útil para a sociedade, como os hospitais de campanha”.

Este estranho e indefinido objeto, a “Nota Técnica”, aborda não só aspectos de governança institucional, mas a definição de modelos de gestão, plataformas eletrônicas, modalidades de contratação, ou seja, tudo aquilo que cabe institucionalmente ao Poder Executivo, enquanto, ao mesmo tempo, silencia, sobre os princípios da universalidade e da integralidade, que sequer aparecem no texto.

O documento também ignora medidas a serem adotadas junto a públicos prioritários ou em situações excepcionais, i.e., pessoas idosas com deficiência, pacientes crônicos ou doentes raros, para garantir que seja dispensada a estes a mesma qualidade de serviços dispensada às demais pessoas. Mesmo na Europa, como noticiou o especialista Claudio Cordovil, “estamos tomando conhecimento de histórias chocantes de violações de direitos das pessoas que vivem com uma doença rara e discriminação contra elas nas diretrizes de triagem” [4]. Enquanto isso, “desconhece-se a situação no Brasil com relação aos doentes raros e o atendimento que estão recebendo quando buscam socorro em emergências hospitalares por conta da pandemia”.

Na prática, o CNJ apenas “anota técnicas” supostamente eficientes no combate da pandemia, passando a ser um defensor ativo de um tipo particular de gestão da crise, enquanto Toffoli oferece sua reputação pública para a publicidade desse modelo. Logo, parece atuar para salvaguardar o modelo de gestão subsidiado e privatizado, seja através de Organizações Sociais de Saúde (OSS) que, como já dissemos antes, mais parecem “holdings” [5], ou então, através de hospitais privados que praticam algum tipo de filantropia, mas que em alguns casos conforma “pilantropia”, i.e., atos de caridade no intuito de se receber incentivos fiscais, como parte de um jogo de soma positiva cujo resultado final seria a expansão do setor privado.

Da figura tradicional de legislador negativo (restrito a deliberar sobre a compatibilidade de uma determinada regra e a Constituição), o STF passa a regulador positivo (criador de regras, podemos dizer, regras que não são dotadas de eficácia, mas que são, ao menos, politicamente funcionais).

Desse processo, sua legitimidade bem como a sua reputação saem esgarçadas. Por outra parte, através da Nota Técnica no24, Toffoli parece cumprir uma expectativa assumida em “visita” do Governo e alguns empresários ao STF de se fazer algo “pelo direito à vida dos CNPJs”, visto que isto parece ser o que lhe fora solicitado via Ofício por uma série de entidades privadas, como a INTERFARMA, o SINDUSFARMA e a ABRAMGE. Ato contínuo, o CNJ se antecipa a Nelson Teich, sugerindo “chamamentos públicos direcionados a hospitais privados com ofertas de custeio à operação.”

Não é de hoje, no Brasil, que ao perceber uma tendência política juízes buscam se alinhar a esta. Destarte, ruíram “cânones” como de que “do bom juiz não se conhece o nome, mas apenas a justiça realizada nos autos”, ou então, aquele famigerado “V Mandamento” da magistratura, alcunhado por Moura Bittencourt: “Da popularidade fugirás, e da publicidade, igualmente [6]”.

Segundo a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, juízes são proibidos de manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem. Perguntado se a democracia estaria em risco no Brasil, o presidente do Supremo tergiversou, fez todo tipo de malabarismo, chegou a citar Claude Lévi-Strauss, “existem sociedades do passado (sic) que não têm casamento”, ah! se o antropólogo francês ouvisse isso! E, apesar de todo o verniz retórico, as manobras não foram hábeis para afirmar a independência da Corte e, sobretudo, sua reputação institucional como garante de uma democracia constitucional no país.

Como disse Conrado Hübner Mendes, em sua coluna na Folha de S. Paulo da última quarta-feira, Dias Toffoli “frequenta bastidores dos poderes político e econômico e lá faz consultoria de constitucionalidade e promessas em nome do tribunal [7]”. Nestes salões palacianos, “negocia constitucionalidade e até mesmo a história. Se for para acalmar generais vale dizer que em 1964 houve um ‘movimento’, não um golpe ou revolução.”

Ao ensejo, em relação à Nota Técnica no 24, parecemos estar diante de mais um caso de “negociação de constitucionalidade”, por algumas razões, que passo a listar: (i) dono de hospital, laboratório farmacêutico e plano de saúde age nos marcos de uma ética não-procedimental, não-institucional, não-democrática, é dizer, busca interesse privado e não se sujeita aos mesmos tipos de “accountability” que o gestor público; (ii) hospitais privados, planos de saúde, laboratórios farmacêuticos e entidades que celebram contrato de gestão são agentes interessados em causas atuais ou futuras no tribunal; (iii) este tipo de expediente, por parte do presidente do STF, corrói a reputação da corte, lembrando que, como sublinha Raul Eugenio Zaffaroni, “a imparcialidade é a essência da juridicidade e não seu acidente” [8].

Em lugar de preservar a instituição, este tipo de atuação, seja concedendo entrevistas a canais de televisão, servindo como um “intelectual público”, ou então, editando “notas técnicas” que não versam estritamente sobre a organização interna do judiciário, envolvendo-se em questões não-judiciais, afetam a reputação judicial e a imparcialidade, que são garantias e princípios essenciais da democracia.

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[1] Hamilton, Alexander; Madison, James; Jay, John. The Federalist Papers. Lawrence Goldman (Ed.).  Nova Iorque: Oxford University Press, 2008 [1787], p. 380.

[2] Garoupa, Nuno; Ginsburg, Tom. Judicial Reputation: A Comparative Theory. Chicago: University of Chicago Press, 2015, p. 7.

[3] Faria, José Eduardo. A Crise Constitucional e a Restauração da Legitimidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1985, 20.

[4] Cordovil, Cláudio. Urgente: Doentes raros estão sendo discriminados em triagens de emergências! Disponível em: https://academiadepacientes.com.br/2020/04/13/urgente-doentes-raros-estao-sendo-discriminados-em-triagens-de-emergencias/ Acesso em: 18/05/2020.

[5] A emergência de “holdings filantrópicas” no 3º Setor. Sobre recursos destinados ao Sistema Único de Saúde. JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-emergencia-de-holdings-filantropicas-no-3o-setor-12062017 Acesso em: 18/05/2020.

[6] Bittencourt, Edgar de Moura. O Juiz, estudos e notas sôbre a carreira, função e personalidade do magistrado contemporâneo. São Paulo: Editora Jurídica e Universitária, 1966, p. 219.

[7] Mendes, Conrado Hübner. Toffoli dança com Regina no precipício. Poder/Coronavírus, Folha de S. Paulo, 13 de Maio de 2020, A-12. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2020/05/toffoli-danca-com-regina-no-precipicio.shtml Acesso em: 18/05/2020.

[8] Zaffaroni, Eugenio Raúl. Poder judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 1995, p. 86.