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A relação entre mudanças climáticas, saúde e o contexto brasileiro

O efeito perene que a superexploração do meio ambiente tem na saúde pública

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Crédito: Unsplash

A Organização Mundial da Saúde (OMS), desde 1946, indica que a saúde humana é “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”. Em consonância com esse entendimento, com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável[1] e com tratados internacionais vinculantes ao Brasil[2], a Constituição Federal de 1988 positivou o direito à saúde em seus artigos 6º e 196, vinculando o Estado à efetivação concreta desse direito por um conjunto de garantias legais que geram obrigações e consequências jurídicas. É também nesse documento que está assegurado o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, definido como essencial à sadia qualidade de vida.

A pandemia de Covid-19 desperta um importante debate sobre a intersecção entre esses dois direitos a nível local e global, já que as problemáticas que atualmente envolvem a saúde não dizem respeito apenas ao vírus Sars-Cov-2. Os eventos climáticos extremos têm impactos já conhecidos sobre a saúde humana, como, por exemplo, o aumento da transmissão de doenças de veiculação hídrica em casos de inundações. O foco deste artigo, no entanto, é o efeito perene que a superexploração do meio ambiente tem na saúde pública e como o Brasil se prepara para enfrentar esse cenário, através de políticas de mitigação e adaptação e da vigilância em saúde ambiental.

O impacto das mudanças climáticas na saúde humana

Para melhor compreender como as mudanças climáticas afetam a saúde humana, de acordo com o IPCC (AR5, 2014), existem três vias básicas de exposição: as primárias/diretas, relacionadas a eventos climáticos extremos, como calor, seca e chuva forte; as secundárias/indiretas, por meio de mudanças nos sistemas naturais, que afetam os vetores e as vias de transmissão de doenças; e as vias terciárias, com efeitos fortemente mediados por sistemas humanos, como é o caso de impactos ocupacionais, desnutrição e estresse mental.

Os encargos para a saúde, provenientes desses caminhos de exposição, são moderados por fatores como sistemas de saúde pública e condições socioeconômicas. Nesse sentido, vale destacar que os riscos à saúde, decorrentes (ou não) das mudanças climáticas, são distribuídos de forma desigual. Esses riscos, conforme relatório do IPCC (AR5, 2014), surgem de uma combinação entre vulnerabilidade, exposição e perigos; sendo o clima um dos principais determinantes para os perigos, de forma que influencia a exposição e a vulnerabilidade e, consequentemente, o grau de risco.

A título ilustrativo da distribuição desigual dos riscos, citam-se as mulheres, sobretudo as mulheres negras, quilombolas, indígenas, pobres e em outras situações de desigualdade que se sobrepõem a de gênero. Elas são especialmente afetadas por viverem em locais de recursos escassos, infraestruturas frágeis, por enfrentarem serviços de saúde precários e por possuírem uma participação majoritária em serviços associados aos cuidados, tanto na área da saúde quanto na área doméstica, ficando, portanto, mais expostas às situações de contágio e estresse, as quais, inevitavelmente, são agravadas pela crise climática[3].

De modo geral, os impactos ambientais nos determinantes sociais da saúde (alimentação, ar, água, habitação) resultam em falta de disponibilidade de água para consumo humano; inviabilização da produção de alimentos; mortalidade relacionada ao calor; doenças diarreicas; doenças transmitidas por vetores, como a dengue e a malária; conflitos relacionados com o esgotamento de recursos naturais e sobrecarga de serviços essenciais em contextos urbanos[4].

Outro impacto que requer especial atenção é o que se relaciona às queimadas, tal como as circunstâncias da Amazônia Legal e do Pantanal, conforme aponta Relatório (2020) elaborado pelos Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e pela Human Rights Watch, e Nota Técnica do Observatório de Clima e Saúde[5]. As queimadas podem causar diversas comodidades, incluindo inflamação pulmonar, agravamento de doenças pulmonares e exacerbação de doenças cardiovasculares. Portanto, a exposição à má qualidade do ar pode tornar os seres humanos ainda mais vulneráveis a infecções respiratórias, demonstrando que, diante da Covid-19, os esforços de contenção são ainda mais urgentes.

Além disso, as mudanças climáticas também se relacionam com as diversas cepas de patógenos ameaçadoras aos humanos que surgiram neste século, entre elas, as novas variantes do influenza A, como a H1N1, os ebola Majonae Reston, a febre aftosa, a hepatite E, a salmonela, o vírus da peste suína africana e, claro com o novo coronavírus.

A complexidade ambiental com que as florestas podem interromper a transmissão de determinados vírus aos seres humanos se vê reduzida diante de novas geografias, urbanizações, determinadas escolhas de práticas agrícolas e de uso do solo e por uma maior interface entre animais selvagens e humanos, com a migração de indivíduos que carregam patógenos, em decorrência das alterações de seus habitats[6].

Adaptação, mitigação e vigilância em saúde ambiental no Brasil

Como resposta à problemática levantada neste artigo, há diversas ferramentas para incorporar a saúde nas estratégias de mudanças climáticas (e vice-versa), nos termos da Organização Mundial de Saúde: Plano Nacional de Adaptação de Saúde (H-NAP); Avaliações de Vulnerabilidade e Adaptação (V&A) aos riscos das mudanças climáticas à saúde; Avaliação de Impacto na Saúde (HIA) de políticas, programas ou projetos e Sistemas de Alerta Precoce (EWS) para identificar quando as condições ambientais podem levar resultados adversos à saúde.

Quanto às ações brasileiras, a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), instituída pela Lei 12.187, de 19 de dezembro de 2009, define adaptação como “iniciativas e medidas para reduzir a vulnerabilidade dos sistemas naturais e humanos frente aos efeitos atuais e esperados da mudança do clima” e mitigação como “mudanças e substituições tecnológicas que reduzam o uso de recursos e as emissões por unidade de produção, bem como a implementação de medidas que reduzam as emissões de gases de efeito estufa e aumentem os sumidouros”.

A PNMC foi regulamentada pelo Decreto 7.390, de 9 de dezembro de 2010, que previa a formulação de Planos Setoriais de Mitigação e Adaptação à Mudança do Clima. Em 2013 foi publicado o Plano Setorial da Saúde, que apresentou compromissos do setor da saúde nas áreas de vigilância, promoção e educação em saúde e investimentos em pesquisa, todos voltados para o objetivo de mitigar e direcionar as medidas de adaptação dos processos e serviços do SUS frente aos impactos da mudança climática.

Com base no arcabouço legal da PNMC, somando-se às iniciativas de mitigação, foi publicado, em 2016, o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA) que, em dois volumes, prevê uma estratégia geral e onze estratégias setoriais, dentre elas a de saúde, elaboradas para orientar a implementação de políticas de adaptação dos sistemas naturais, humanos, produtivos e de infraestrutura.

A estratégia de Saúde apresenta diretrizes para que o SUS adote medidas de adaptação que ampliem a resiliência dos serviços de saúde, levando em conta as vulnerabilidades individuais e coletivas e a noção de territorialidade, que abarca variáveis como pobreza, acesso a saneamento e urbanização.

Seguindo a tendência dos documentos oficiais anteriores, a estratégia em saúde do PNA frisa a desigualdade na distribuição dos impactos sanitários da mudança climática, enfatizando a importância de se monitorar os riscos para que as ações de adaptação sejam elaboradas de maneira transversal, coordenada e eficiente. Além disso, aponta para a necessidade de se vincular as medidas propostas à gestão de riscos e alertas a desastres naturais, presente na Política Nacional de Proteção e Defesa Civil.

Nesse sentido, as ações de Vigilância em Saúde Ambiental, elaboradas desde 2016 pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), se mostram como peça chave para o desenvolvimento de uma sólida política sanitária de adaptação e mitigação às mudanças climáticas. Esse eixo específico da vigilância em saúde consiste na investigação, identificação e monitoramento de mudanças que afetam os fatores determinantes e condicionantes do meio ambiente que têm influência sobre e podem representar riscos à saúde humana.

Em 2018, foi instituída a Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS), que, seguindo os princípios de universalidade, integralidade e transversalidade do SUS, compreende as práticas de vigilâncias epidemiológica, em saúde do trabalhador, sanitária e saúde ambiental. Dentre suas diretrizes estão a gestão de riscos por meio de estratégias de identificação, planejamento, regulação, comunicação e monitoramento de riscos, doenças e agravos e a articulação das responsabilidades das três esferas de governo, com respeito ao princípio da territorialidade.

A importância dessas diretrizes reside no fato de que os impactos da crise climática, apesar de globais, são sentidos localmente e o estabelecimento de um fluxo de monitoramento e detecção de mudanças nas condicionantes ambientais que implicam em alterações no processo saúde-doença permite a elaboração de medidas de mitigação e adaptação mais efetivas e apropriadas à realidade daqueles que enfrentarão esses fenômenos.

Além disso, a PNVS promove a articulação de todas as práticas de vigilância, em todas as instâncias da Rede de Atenção à Saúde, ressaltando a noção de transversalidade que norteia as atividades do SUS. Para tanto, as responsabilidades de cada esfera de gestão e as orientações sobre seu financiamento são explicitadas na resolução que institui a política nacional em questão.

A educação em saúde ambiental também é um dos pontos defendidos tanto pela PNVS quanto pelo Plano Nacional de Saúde 2020-2023, que tem como uma de suas metas a promoção de educação em saúde ambiental em municípios com populações rurais em situação de risco e vulnerabilidade socioambiental e sanitária.

Essa breve análise dos instrumentos jurídicos e de políticas públicas que tratam da relação entre Saúde e Meio Ambiente indica que o Estado brasileiro, em consonância com as normativas internacionais, reconhece a desigualdade da incidência dos efeitos da mudança climática sobre a saúde humana.

Mas ainda se apresentam muitas carências de investimentos e desenvolvimento. Nesse sentido se percebem questões como a ausência de uma rede nacional de monitoramento da qualidade do ar ou de prazos peremptórios para que os estados implementem o “Vigilância em Saúde de Populações Expostas à Poluição Atmosférica – VIGIAR”, programa que se encontra praticamente parado desde 2016[7]. Assim como ocorre com o Plano Setorial da Saúde para Mitigação e Adaptação às Mudanças do Clima (PSMC-Saúde), previsto para 2016-2019 pelo PNA, mas que ainda não foi desenvolvido.

E os desafios se intensificam diante do processo epidemiológico em curso, que tem exigido não só do Brasil, mas de todos os países, reforço nas ações de vigilância, com prevenção que agregue os contextos sociais, econômicos e culturais das populações, bem como maior envolvimento entre políticas de mudanças climáticas e de saúde.


[1] Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que se relacionam à saúde: ODS 4 – “reduzir a mortalidade infantil”, ODS 5 – “melhorar a saúde materna”, ODS 6 – “combater o HIV, malária e outras doenças”, e ODS 7 – “sustentabilidade ambiental”.

[2] Alguns tratados internacionais vinculantes ao Brasil e que consagram o direito universal à saúde: Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e seu Protocolo Adicional em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) 131.

[3] Olivera, M. G. Podcameni, M. C. Lustosa e L. Graça, “A dimensão de gênero no Big Push para a Sustentabilidade no Brasil: as mulheres no contexto da transformação social e ecológica da economia brasileira”, Documentos de Projetos (LC/TS.2021/6; LC/BRS/TS.2021/1), Santiago e São Paulo, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe e Fundação Friedrich Ebert Stiftung, 2021.

[4] De Jesus, Ana; Silva, Bruno Oliveira e. “Ambiente e saúde global”, Forum Sociológico [Online], 26 | 2015, Disponível em: https://journals.openedition.org/sociologico/1216. Acesso em: 28.05.2021.

[5] O Observatório Nacional de Clima e Saúde foi criado pelo Ministério da Saúde e a Fiocruz, em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), com o intuito de estudar e avaliar as influências da mudança do clima na saúde humana. Vale destacar também, nessa parceria, a criação do Sistema de Informações Ambientais Integrado à Saúde Ambiental (SISAM), que fornece acesso a indicadores ambientais interativos e georreferenciados.

[6] Wallace, Rob. Pandemia e agronegócio. Brasil, Editora Elefante, 2020, págs. 527-547.

[7] HRW, IEPS e IPAM. “O Ar é Insuportável” Os impactos das queimadas associadas ao desmatamento da Amazônia brasileira na saúde. 2020. Disponível em: https://ipam.org.br/wp-content/uploads/2020/08/brazil0820pt_web.pdf. Acesso em: 28.05.2021.logo-jota