O uso de mercados de carbono para enfrentar a crise climática vem sendo amplamente discutido há décadas. As discussões são muitas vezes guiadas por antagonismos políticos, alinhando partidários com concepções econômicas mais liberais, inclinados a aceitarem mecanismos de mercado elegantes, e outros agentes que simplesmente consideram que créditos de carbono não são parte da solução no combate às mudanças climáticas.

Implementado em diversos formatos ao redor do mundo, há inúmeras reflexões sobre como, quando e por que se estruturar mercados de carbono. Há formatos de mercados totalmente regulados por governos nacionais, subnacionais e regionais, como os sistemas de comércio de emissões – a exemplo do implementado na Europa (EU-ETS) —, ou em configurações híbridas, a exemplo da taxação das emissões de carbono com possibilidade de abatimento via créditos de carbono – exemplo da Colômbia [1].

E há também os mercados estabelecidos de forma totalmente voluntária, estruturas criadas e movidas por oferta e demanda livre de qualquer obrigação legal, ensejando transações nacionais e transnacionais de créditos de carbono entre partes privadas, muitas vezes similares aos mercados de balcão.

Com o aumento do apetite e volume de circulação desses mercados voluntários [2], somado à criação de um ambiente de controle dos orçamentos de carbono dos países membros do Acordo de Paris, tem surgido dúvidas sobre a extensão das possibilidades de funcionamento desses mercados. Nesse contexto, questiona-se sobre a necessidade e conveniência de haver algum tipo de intervenção dos governos na busca de promover um ambiente regulatório favorável para o desenvolvimento desses mercados, ainda que sejam mercados estabelecidos a partir de demanda voluntária pela compra de créditos de carbono.

Esta discussão chegou ao Brasil, já com algumas normas esparsas regulando setores específicos e introduzindo novos instrumentos de gestão de ativos ambientais, mas uma visão mais macro da regulação de um mercado de carbono está sendo concentrada no âmbito do PL 528/2021, em tramitação na Câmara dos Deputados. Para além do Brasil, há experiências internacionais recentes com a regulamentação do mercado voluntário de carbono que merecem ser estudadas e acompanhadas de perto. Neste artigo, vamos tratar da importância do mercado voluntário de carbono, e as vantagens e desvantagens de se estabelecer regramentos governamentais para o mercado voluntário no contexto brasileiro, bem como as lições aprendidas com os exemplos de tentativas de regulamentação observadas internacionalmente.

Panorama brasileiro

No Brasil, essas discussões vêm evoluindo significativamente nos últimos anos, impulsionados por um zeitgeist mundial que colocou as mudanças climáticas e a crise ecológica no palco principal da nossa era. Os marcos regulatórios e o consequente desenvolvimento do saber jurídico vêm acompanhando essas tendências, na tentativa de produzir importantes atos normativos que sirvam para trilhar os caminhos de uma economia de baixo carbono.

O Brasil tem inúmeras particularidades em relação às suas fontes emissoras, muito atreladas à nossa configuração socioecológica e todas suas dimensões econômicas; afinal, somos um país florestal, uma potência agrícola com uma vastidão territorial com poucos paralelos no mundo. Como pode se inferir do gráfico [3] abaixo, o setor Afolu (do corriqueiro acrônimo em inglês Agriculture, Forestry and other Land Use Change) responde por mais de 70% das emissões de gases do efeito estufa no Brasil.

Notem o discrepante protagonismo da “mudança de uso da terra” como vetor de emissões, respondendo no ano de 2020 por 46% do total nacional, aproximadamente 998 milhões de toneladas de CO₂. Em outras palavras, o termo designa basicamente o desmatamento de vegetação nativa em áreas para conversão ao uso agrícola, pecuário e – menos relevantemente – para fins de infraestrutura.

Isso demonstra a talvez auspiciosa mensagem do caminho que o Brasil deve trilhar para se tornar uma economia de baixo carbono: devemos nos tornar antes de mais nada uma potência ecológica, zerando o desmatamento e alinhando nossa produção agrícola com práticas regenerativas e restaurativas.

Mercados voluntários: Catalisador de oportunidades

Há hoje uma míriade de leis e iniciativas regulatórias setoriais e regionais relacionadas a instrumentos de mercado de carbono ou ativos ambientais, que produzem uma verdadeira colcha de retalhos jurídica sobre o tema. Podemos citar, por exemplo, a valorosa iniciativa do Renovabio [4], ou por exemplo, a Lei de Pagamentos por Serviços Ambientais [5] (Lei 14.119/2021). Ambos são bem-vindos progressos na regulamentação de setores (no caso do setor sucroalcooleiro contemplado pelo Renovabio) e institutos jurídicos (como a normatização dos serviços ambientais, que incluem sequestro de carbono e redução de emissões).

Pairando sobre todos esses exemplos, está o mercado voluntário de carbono, que tem sido considerada uma ferramenta para auxiliar nossa sociedade ao caminho do net-zero. O mercado voluntário de carbono permite que investidores, governos, organizações não governamentais e empresas comprem voluntariamente créditos de carbono, seja para compensação residual de suas emissões dentro de uma política net zero, seja para financiamento de atividades de descarbonização.

Esses créditos são certificados por standards (Verra, Gold Standard, Climate Action Reserve, American Carbon Registry etc.) com reputadas metodologias validadas internacionalmente, e auditados por empresas terceirizadas, especializadas no tipo de projeto auditado. O mercado voluntário é uma ferramenta crucial para liberar todo o potencial das soluções baseadas na natureza (SBN) e pagamentos por serviços ambientais, que tradicionalmente tem sido subvalorizadas, impedindo o crescimento dessa espécie de financiamento climático.

O mercado voluntário é especialmente importante para o Brasil, considerando nossa matriz de emissões. Conforme as conclusões do importante estudo setorial do Projeto PMR Brasil[6], o setor agropecuário e de mudança de uso da terra é extremamente pulverizado, tornando impossível e indesejável a implementação de um tradicional sistema de comércio de emissões, ou seja, um mercado regulado. Nesse formato, os setores contemplados compram “permissões” (em inglês, “allowances”) que são negociadas entre si, conforme um ente regulado consegue reduzir suas próprias emissões. Com o passar dos anos, o governo vai diminuindo a oferta de permissões concedidas, obrigando os entes regulados a reduzirem sua pegada de carbono ou buscar comprar cada vez mais permissões de outras empresas e/ou créditos de carbono (embora o uso desses é extremamente limitado nessas estruturas).

Como pode se inferir, é uma estratégia inviável tentar tropicalizar esse tipo de ferramenta para o nosso setor Afolu, sendo assim essencialmente impraticável ter um sistema de cap and trade contemplando latifúndios e pequenas e médias propriedades. Nesse sentido, o mercado voluntário de carbono proporciona uma solução tangível, uma vez que esse mercado tem visto um crescimento exponencial da demanda por créditos de carbono florestais e de soluções baseadas na natureza, oferecendo aos proprietários e produtores rurais a devida compensação financeira por atividades como conservação e restauração florestal, agricultura de baixo carbono e manejo sustentável de florestas. Igualmente importante, o mercado voluntário é a ferramenta que endereça diretamente os setores necessários pra o Brasil atingir suas metas climáticas do Acordo de Paris, as famosas NDCs (Nationally Determined Contributions).

Marcos regulatórios recentes

Adequadamente, o mercado voluntário foi objeto de importantes avanços normativos recentes. Conforme mencionado, com a Lei de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA), foram instituídos importantes parâmetros que deverão ter efeito também sobre os créditos de carbono como modalidade de PSA. Em especial, há de se mencionar estratégicas disposições da lei que reconhecem o contrato de pagamentos por serviços ambientais como uma obrigação propter rem, uma obrigação que “segue o bem imóvel”, portanto garantindo a perenidade das atividades do projeto, fator extremamente relevante para créditos florestais.

Além disso, a Resolução nº 3, de 22 de Julho de 2020 [7] do CONAREDD+ reconhece o mercado voluntário de carbono como mecanismo para combate ao desmatamento, uma sinalização de que projetos privados são também parte da solução. Esses exemplos são pequenos movimentos do regulador que podem ajudar a estabelecer um ambiente de negócios estável envolvendo ativos ambientais, convidando a iniciativa privada e o terceiro setor a se tornarem agentes de transformação, atraindo bilhões de reais para atividades de conservação e restauração de ecossistemas.

Não obstante, desde o ano passado estamos acompanhando a tramitação do PL 528/2021, agora apensado ao PL 2148/2015. O objetivo inicial do PL 528/2021 era de regulamentar o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), conforme os ditames da Política Nacional de Mudança do Clima (Lei 12.187/2009). Depois de inúmeros substitutivos e emendas, resta claro que há uma oscilação do legislador entre o foco de regulamentar a demanda ou oferta dos mercados de carbono. Nas mais recentes versões, propõe-se a criação de um sistema de comércio de emissões integrada a um registro nacional de projetos de reduções de emissões (offsets).

Para todos os efeitos, um tema que permeia até agora todas as discussões sobre o PL acima é se os mercados voluntários devem ou não integrar o registro nacional de reduções de emissões que se pretende criar. Por natureza, os projetos do mercado voluntário já são listados nos registros das certificadoras mencionadas anteriormente, garantindo a integridade e transparência dos projetos, bem como assegurando que não há dupla contagem. É razoável crer que um registro nacional que se propusesse a dar ainda mais transparência aos projetos poderia trazer mais segurança jurídica para investidores e empresas, satisfazendo tanto oferta como a demanda do mercado. Contudo, como sempre, o diabo mora nos detalhes.

Projetos de créditos de carbono, em especial os de conservação ou restauração florestal, tem cronogramas complexos e costumam ter períodos de validação e verificação iniciais longos, algo que ainda é um gargalo em desenvolvimento nesse setor, com muitas partes interessadas e empresas tentando trazer celeridade e inovação para simplificar o pipeline dos projetos. Independentemente disso, na maioria das vezes, tais linhas do tempo são consequência da complexidade natural de tal classe de projetos, envolvendo implementação de atividades que simplesmente demandam tempo, planejamento e dedicação.

É importante que o legislador considere esse fator, uma vez que um registro nacional deve funcionar como um catalisador para as finanças climáticas, e não como mais uma camada burocrática, em um país já tão assolado pelas labirínticas exigências estatais.

Indonésia: Prenúncio evitável

Nesse sentido, a experiência internacional nos traz importantes insights. Na Indonésia, desde o final do ano passado, foi publicada a Portaria Presidencial nº 98/2021, dispondo sobre implementação de uma precificação nacional do carbono para o alcance das metas da NDC do país [8]. A portaria foi aprovada pelo presidente Joko Widodo pouco antes da Conferência COP 26 em Glasgow, quando finalmente foram delineadas as bases estruturais do Artigo 6.2 e 6.4 do Acordo de Paris e os chamados “ajustes correspondentes”, importante pilares para criação de um mercado de carbono transnacional de grandes proporções.

Contudo, o efeito prático da implementação de tal portaria no mercado tem sido nefasto. No cerne das disposições de tal regulamentação, o governo indonésio está requerendo o alistamento dos projetos no registro nacional (uma listagem que parece similar aos nossos desenhos brasileiros). Além disso, o governo enviou comunicação aos citados standards (notadamente, a Verra e o Gold Standard) informando que uma expressa carta de autorização do governo seria necessária para a emissão de créditos de 2021 em diante. Os participantes do mercado voluntário de carbono da Indonésia seguem sem clareza sobre como tal regulamentos serão implementados e os prazos de adequação.

Tal caso demonstra os riscos a que estão sujeitos os projetos de créditos de carbono do mercado voluntário – seja aqueles em andamento seja os que estão em fase inicial – quando uma regulação estatal é feita de forma desorganizada e sem mecanismos de transição adequados, impedindo o desenvolvimento de projetos e reduzindo a confiança de investidores.

Os horizontes do mercado voluntário

No cerne dos questionamentos acima, há a pergunta fundamental sobre os limites e necessidade da regulamentação do mercado voluntário de carbono. Há quem entenda que os mercados voluntários apresentam contabilidades paralelas, que não afetam o cumprimento das metas brasileiras perante o Acordo de Paris, de modo que entre jurisdição nacional e inventários de emissões privados não haveria sobreposição intercorrente [9].

Contudo, considerando que, no âmbito do Acordo de Paris, os governos nacionais possuem a obrigação de contabilizar suas emissões e reduções de emissão, e demonstrar o cumprimento de suas metas climáticas, é importante que não haja qualquer sombra de dúvida de que a redução de emissões certificada pelo mercado voluntário não está sendo utilizada em duplicidade pelo mercado voluntário e para cumprimento de obrigações de NDC de terceiros. Essa certeza só é assegurada quando o governo do país hospedeiro identifica claramente as atividades e projetos que serão usados para cumprimento de suas próprias metas. Em outras palavras, é oportuno que o governo brasileiro tenha conhecimento sobre os créditos de carbono gerados em seu território e se manifeste sobre as possibilidades de uso dele, desde que, é claro, faça isso com o menor nível de intervenção e interrupção possível sobre as iniciativas voluntárias em andamento.

A regulamentação do mercado voluntário deve ocorrer para trazer maior eficiência e segurança jurídica, e não o contrário. Especialmente considerando projetos de SBN e nossa vocação nacional como gerador de créditos florestais, é salutar que tenhamos marcos regulatórios que potencializem aspectos dos projetos como permanência e adicionalidade.

Um registro nacional, por exemplo, pode funcionar como um importante ponto focal governamental que congregue informações sobre matrículas de imóveis, cadastro ambiental rural, regularização fundiária (Incra), bem como informações inerentes ao projeto, como quantidade de créditos emitidas e linha de base (refletindo adequadamente tudo que já é compartilhado nos standards previamente citados). O cruzamento de todos esses dados em um sólido registro nacional eletrônico com alto potencial interministerial, cruzando inúmeras bases de dados, pode agregar muito valor aos créditos, mostrando a integridade dos projetos brasileiros.

Tais aspirações só se materializarão se essas políticas forem implementadas com responsabilidade e ampla participação da sociedade e agentes do mercado. O potencial da iniciativa privada em auxiliar a agenda ambiental brasileira é gigantesco, sendo complementar ao papel do Estado; uma sinergia rica e oportuna. Os projetos de créditos de carbono privados representam uma significante porção desse potencial, contribuindo para redução de emissão de milhões de toneladas de dióxido de carbono, bem como em outros casos, a remoção. Em um futuro breve, esses números representarão um percentual considerável do total de desmatamento evitado no país, demonstrando toda a potência do mercado de carbono voluntário.

[1] Para mais informações sobre as tipologias de mercado de carbono, ver: Prolo, C.D., Penido, G., Santos, I.T., & La Hoz Theuer, S. (2021). Explicando os mercados de carbono na era do Acordo de Paris. Rio de Janeiro: Instituto Clima e Sociedade.

[2]Acessado em: Voluntary Carbon Markets Top $1 Billion in 2021 with Newly Reported Trades,a Special Ecosystem Marketplace COP26 Bulletin - Ecosystem Marketplace

[3] Relatório SEEG 2021, Observatório do Clima, página 7. Acessado em: OC_03_relatorio_2021_FINAL.pdf (seeg-br.s3.amazonaws.com)

[4] Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio). Acessado em: L13576 (planalto.gov.br)

[5] Lei de Pagamentos por Serviços Ambientais. Acessado em: LEI Nº 14.119, DE 13 DE JANEIRO DE 2021 - LEI Nº 14.119, DE 13 DE JANEIRO DE 2021 - DOU - Imprensa Nacional

[6] ELABORAÇÃO DE ESTUDOS SETORIAIS (ENERGIA ELÉTRICA, COMBUSTÍVEIS, INDÚSTRIA E AGROPECUÁRIA) E PROPOSIÇÃO DE OPÇÕES DE DESENHO DE INSTRUMENTOS DE PRECIFICAÇÃO DE CARBONO. Produto 1: Diagnóstico de Agropecuária. Acessado em: Produto 2 - SumEx Diagnóstico setorial (agropecuária).pdf — Português (Brasil) (www.gov.br)

[7] Resolução nº 3 de 22 de Julho de 2020 do CONAREDD+. Acessado em: Resolução nº 3 de 22 de Julho de 2020 - Mercado Voluntario de Carbono Florestal.pdf (mma.gov.br)

[8] Indonesia: New carbon emission regulations - Green shoots? Acessado em: attachment_dw.action (bakermckenzie.com)

[9] Moura, Pedro. Corresponding Adjustments and their Impact on NDCs and Additionality. Acessado em: OpinionCorresponding Adjustments and their Impact on NDCs and Additionality - Ecosystem Marketplace

A regulamentação dos mercados de carbono voluntários no Brasil

Potencial da iniciativa privada em auxiliar agenda ambiental brasileira é gigantesco e complementar ao do Estado