Mais do que sobre a carne suína salgada e defumada, de textura crocante e suculenta que afaga as papilas gustativas e é uma unanimidade na cozinha do brasileiro, estas divagações são sobre o abuso no poder regulatório do Estado e o (des)serviço da regulação na evolução do consumidor nacional. Espero sinceramente que você, leitor ou leitora, não tenha ficado frustrado com esta constatação e deseje abandonar este texto. Construamos juntos um raciocínio sobre bacon, consumo e Estado.
Que os consumidores estão em franco amadurecimento, é um fato, seja por discernimento próprio, seja por uma crescente de normatizações que escancaram problemas, veja o exemplo do lixo e a lei de resíduos sólidos, ao mesmo tempo que exaltam qualidades, veja o exemplo das Indicações Geográficas[1].
A ideia jurídica e filosófica de consumo consciente é baseada na noção de que os consumidores têm responsabilidade em relação aos impactos ambientais, sociais e econômicos de suas escolhas de consumo. Isso significa que os consumidores devem ser informados e ativamente informarem-se sobre os produtos que estão comprando, bem como sobre as condições em que eles são produzidos, a fim de tomar decisões conscientes e éticas.
As legislações relacionadas ao consumo consciente – no Brasil podemos citar, por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei 13.186/2015 – geralmente se concentram em garantir que os consumidores tenham acesso a informações claras e precisas sobre os produtos, incluindo dados sobre ingredientes, origem, impacto ambiental e social, e segurança. Além disso, também exigem que os fabricantes e varejistas assumam responsabilidade pelos impactos de seus produtos ao longo de toda a cadeia de produção.
Em resumo, a ideia jurídica de consumo consciente é baseada na premissa de que os consumidores têm um papel importante a desempenhar na promoção de práticas de produção e consumo mais sustentáveis e responsáveis, e que legislações podem desempenhar um papel fundamental em garantir que isso aconteça.
Para que se evolua nos temas propostos, estas breves divagações ainda precisam: definir regulação estatal e quando o Estado comete abuso em regular; pontuar sobre regulações e o consumo e; trazer à baila a recente sobre o bacon, como um exemplo a ser discutido.
A função do Estado em regular talvez seja a finalidade mais importante e mais complexa do Estado moderno. Essa função refere-se ao papel que o Estado exerce em controlar, limitar e direcionar o comportamento das pessoas e das organizações em uma sociedade, abrangendo, assim, desde questões econômicas, como regulação do mercado e proteção dos consumidores, até questões sociais, como preservação do meio ambiente, direitos trabalhistas e proteção aos direitos humanos.
A regulação do Estado pode ser vista como uma tentativa de equilibrar as forças do mercado com o interesse público, garantindo que os indivíduos e organizações se comportem de forma responsável e ética. Essa regulação pode incluir a criação de leis, normas administrativas e políticas públicas que definem o que é permitido e o que é proibido em uma determinada seara ou atuação. Mas regular – em prol de interesses públicos primários e secundários – gera impactos maléficos e benéficos a parcela dos seus subordinados.
A preocupação sobre impactos regulatórios não é novidade do hoje, não obstante ter alçado novos níveis de importância com o intento de desenvolver e desburocratizar a economia nacional[2]. Preocupação maior quando os impactos regulatórios geram ou são gerados por abuso do Estado em regular.
O abuso de poder regulatório ocorre quando a Administração Pública excede os limites de sua autoridade, age de forma arbitrária ou discriminatória em suas decisões e/ou normatiza prejudicando a livre iniciativa e a ampla concorrência. O abuso do poder suscita consequências negativas para a economia, para o livre mercado, para a inovação e os direitos dos indivíduos e empresas afetados.
O ordenamento jurídico positiva a norma contida no art. 4ª da Lei da Liberdade Econômica, e impõe à Administração Pública o dever de evitar o abuso regulatório e consequentemente situações como: a criação de reserva de mercado e o favorecimento de grupo econômico; a barreira a novos concorrentes; restringir o uso de publicidade e propaganda sobre um setor; aumentar custos de transação sem demonstrar benefícios; dentre outros exemplos.[3]
Segundo a melhor e mais tradicional doutrina das Ciências Econômicas[4] a regulação do mercado se justifica – e logo não há que se falar em abuso – quando esse apresenta falhas. Relevante para essa reflexão é válido apontar a informação assimétrica ou incompleta como falha de mercado. É, portanto, a diferença de acesso à informação entre duas partes de uma relação negocial, como produtores e compradores acerca dos ingredientes de um produto, dificultando assim no julgamento final sobre qualidade desse.
Ainda que não esteja abarcado na definição de abuso do poder regulatório ou de falha de mercado pode-se falar em excesso da função de regular do Estado se uma norma é editada sem razão de ser. Em um país com mais de 5 milhões de normas legislativas[5] há que se repensar se as normas de fato geram efeitos ou meramente o caos. E aí você pode estar, finalmente, se perguntando: uma norma sobre o bacon se faz necessária? Legislar sobre o bacon pode ser abuso do poder regulatório? E se não pode, ao menos induz o consumo consciente? Vejamos.
A Portaria 748/2023 oriunda do Ministério da Agricultura e Pecuária[6] regulou nacionalmente o que de fato é o bacon, revogando a normativa até então vigente (que por analogia versava sobre presunto cozido ou defumado). A nova regra solidificou a ideia tradicionalista de que a peça deva ser feita da barriga do suíno, ainda que, estranhamente tenha permitido expressões como “bacon de paleta” ou “bacon de pernil”, quando originada de outros grupos musculares. Outra inovação reside nos ingredientes permitidos, uma lista de novos aditivos e conservantes foi adicionado, em comparação ao regramento anterior.[7]
É possível afirmar que a portaria, ainda que tenha clareado pontos costumeiros, como bacon não ter osso, legitima a peça como um item alimentar ultraprocessado, não inova em criar obrigações para melhor informar o consumidor e nem incentiva a produção artesanal e o uso de métodos tradicionais. Mesmo que não se possa advogar categoricamente por um abuso do poder regulatório, a norma administrativa em nada auxiliou na consecução de um consumidor mais bem informado e consciente.
BRASIL. Lei 13.874 de 20 de setembro de 2019. Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.
BRASIL. Ministério da Agricultura e Pecuária. Portaria 748 de 8 de fevereiro de 2023. Aprova o Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade do bacon.
PINDYCK, Robert S.; RUBINFELD, Daniel L. Microeconomics. 8th. New Jersey: Pearson Prentice Hall, 2013.
[1] Vide o artigo “Concorrência desleal em indicações geográficas no Brasil: do uso irregular em rótulos e peças publicitárias” publicado no portal Jota. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/concorrencia-desleal-em-indicacoes-geograficas-no-brasil-14122022
[2] Mais referências em: RAMOS, André Santa Cruz; MURRER, Carlos Augusto Motta. O abuso de poder regulatório sob a édige da lei de liberdade econômica: as inovações e aprimoramentos em registro empresarial. In: OLIVEIRA, Amanda; ROLIM, Maria [org]. Abuso de poder regulatório.1 ed. Rio de Janeiro: Synergia, 2021.
[3] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm
[4] PINDYCK, Robert S.; RUBINFELD, Daniel L. Microeconomics. 8th. New Jersey: Pearson Prentice Hall, 2013.
[5] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2020/10/brasil-tem-mais-de-5-milhoes-de-normas-legislativas-exagero-causa-confusao
[6] Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-sda-n-748-de-8-de-fevereiro-de-2023-463362936
[7] A portaria anterior permitia o uso de proteína somado a açúcares, maltodextrina e condimentos, aromas e especiarias. Já a atualização permite a elaboração do bacon com carboidratos mono e dissacarídeos; maltodextrina; condimentos e especiarias; água; aditivos alimentares e coadjuvantes de tecnologia, previstos em legislação específica do órgão regulador da saúde e autorizados pelo Ministério da Agricultura; além de sais hipossódicos.