Maíra Villela Almeida

Julia Brand

No início deste ano, o Brasil vivenciou uma das maiores tragédias ambientais humanitárias já denunciadas por entidades indigenistas. O território yanomami foi palco de disputas advindas do avanço do garimpo ilegal ou, em linguagem jurídica, da ausência de concretude dos mecanismos regulatórios e constitucionais já existentes que possuem, sim, todo o fundamento político, social e legal para que todo o cenário de catástrofe simplesmente não tivesse existido.
Em artigos anteriores para o JOTA<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, procuramos desenhar a existência da democracia regulada nos campos de atuação das agências reguladoras selecionadas, de acordo com o objeto regulado de cada uma. Agora, apesar da tragédia yanomami parecer, em uma primeira análise, muito distante do que já fora defendido nessas ocasiões anteriores, vejamos como esse fato poderia não ter ocorrido, mas, dessa vez, sob a ótica da Agência Nacional de Mineração (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anm">ANM</a>).
A Constituição Federal de 1988 dispõe que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são bens da União, das quais a sua posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes caberiam aos indígenas (artigo 231, §2). No entanto, o aproveitamento dos recursos hídricos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais nessas terras dependem da “autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei” (§3). É pelo “ouvidas” que a tese da democracia regulada vai encontrar um fundamento legítimo para a própria responsabilização da ANM no fato ocorrido, vejamos.
De modo claro, o diálogo que a Constituição procurou travar foi entre o Congresso Nacional e as comunidades indígenas que residem nas terras alvo de aproveitamento econômico. Apesar disso, não existe qualquer diploma legal que balize de que forma essa conversa se dará; dito de outra forma, não há “na forma da lei” (§3, art. 231), moldura normativa que disponha em que grau o Poder Legislativo federal terá, ou não, que acatar os anseios das comunidades indígenas que serão o principal alvo das consequências de uma exploração, por exemplo, de um garimpo ilegal em suas terras.
Na forma da Constituição, sem lei que assegure a participação nos resultados da lavra, não há como ter qualquer segurança jurídica de que, até mesmo, serão ouvidas as comunidades afetadas, a não ser a letra fria do texto constitucional que, tirando a tragédia yanomami como exemplo, não tem sido claramente seguida. Mas, em um cenário em que essa Lei exista, seria uma possibilidade que a norma pudesse esclarecer o grau de vinculação do diálogo entre o Congresso Nacional e as populações indígenas afetadas, em um claro comprometimento de estabelecer uma verdadeira democracia que pudesse, posteriormente, ser regulada por quem tem competência, no caso, a ANM.
A recente Agência Nacional de Mineração, criada pela <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13575.htm">Lei 13.575/2017</a>, substitui o antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) que, no decorrer da década de 1960, foi incorporado ao Ministério de Minas e Energia com natureza de autarquia simples. Dentre as competências da ANM, destaca-se, principalmente, a necessidade de estabelecer os requisitos técnicos, jurídicos, financeiros e econômicos a serem atendidos pelos interessados na obtenção de títulos minerários e a fiscalização de atividades de mineração e aplicação de sanções (artigo 2, VII e VIII).
Hoje, a estrutura da ANM é como toda e qualquer outra agência reguladora federal, autarquia de natureza especial que possui suas balizas também na Lei 13.848/2019.
No contexto constitucional apresentado, quando a ANM exerce as suas competências legais, a Agência deve funcionar como um elo regulatório entre o diálogo do Congresso Nacional e as comunidades afetadas. Isso porque, conforme a sua Lei criadora, o estabelecimento dos requisitos técnicos, jurídicos, financeiros e econômicos a serem atendidos pelos interessados na obtenção de títulos minerários não poderiam estar descolados do comando constitucional, ou seja, não poderiam deixar de “ouvir” as manifestações indígenas apresentadas no Poder Legislativo federal. No final, o diálogo constitucional do artigo 231, §3 serviria como um importante instrumento regulatório de legitimidade de outorga de títulos minerários pela própria Agência, daí se extrai a importância da tese da democracia regulada já anteriormente defendida.
Se antes defendíamos que a democracia regulada acontecia quando da interação entre o regulador e o setor regulado, aqui também não é diferente. Apenas se coloca mais um fator legitimador, mas também democrático, que a Agência deverá seguir quando regular o setor de recursos minerários. Assim, a regulação voltada do e para o próprio setor regulado, no caso yanomami, poderia ainda ter sido mais fortemente evitada porque as informações que a ANM teria não seriam exclusivamente advindas dos agentes regulados, mas, sobretudo, daqueles que não são objeto da regulação da ANM, mas são possuidores e usufrutuários das terras em questão.
Sem dúvidas, o ordenamento jurídico brasileiro é apto a evitar uma tragédia como a descrita, ainda mais quando conta com fundamentos de carga normativa constitucional elevada em “ouvidos” (artigo 231, §3) e, sobretudo, o modelo de Agências Reguladoras adotado no Brasil. Por fim, parece-nos que a Constituição Federal de 1988 previamente desenhou um modelo em que a insuficiência informacional não pode figurar como justificativa para a ausência de instrumentos regulatórios na matéria em questão, bastando, contudo, que se adote o que já existe.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-democracia-regulada-existe-31122022">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-democracia-regulada-existe-31122022</a>; <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/rol-da-ans-e-possivel-falar-em-quarto-poder-22032023">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/rol-da-ans-e-possivel-falar-em-quarto-poder-22032023</a>; <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/antt-limites-legais-e-regulacao-20042023">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/antt-limites-legais-e-regulacao-20042023</a>

Yanomami

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JOTA

Como a tragédia poderia não ter ocorrido, sob a ótica da Agência Nacional de Mineração

A regulação do caso yanomami

Como a tragédia yanomami poderia não ter ocorrido, agora sob a ótica da Agência Nacional de Mineração (ANM)