Larissa Laks

A garantia da plena não cumulatividade é um dos pilares da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/reforma-tributaria">reforma tributária</a> em discussão no Brasil, consubstanciada nas propostas de emenda constitucional 45 e 110. Embora apresentem algumas diferenças, ambas as PECs e o recente relatório final do Grupo de Trabalho da Reforma Tributária na Câmara dos Deputados se baseiam no objetivo comum de implementar um modelo de tributação sobre bens e serviços que elimine por completo a cumulatividade do sistema tributário, em todas as suas formas de manifestação concreta. 
Nesse contexto, o presente artigo buscará analisar como as propostas em debate podem contribuir para essa meta, garantindo que o princípio perseguido seja efetivamente atingido e não seja desvirtuado, como ocorreu na história brasileira das últimas décadas. Como ponto de partida, para aqueles não tão familiarizados com o termo, apresentamos o significado da não cumulatividade. 
A não cumulatividade é um princípio segundo o qual a tributação incide apenas sobre o valor acrescentado em cada etapa do processo de produção ou comercialização, de modo que sua origem está intrinsecamente relacionada a dos modernos impostos sobre o valor adicionado. A tributação não cumulativa é caracterizada pela incidência plurifásica, o que significa que em cada etapa da cadeia de produção deve-se cobrar e recolher apenas o imposto correspondente ao valor agregado naquela etapa.  
Sua operacionalidade, por sua vez, está ligada a um sistema em que o imposto pago em qualquer fase intermediária da cadeia produtiva se transforma em crédito a ser deduzido ou devolvido na fase subsequente, de modo que, na prática, a soma dos impostos recolhidos equivalha a um imposto incidente exclusivamente sobre o consumidor final. Essa sistemática de cobrança plurifásica do IVA tende a mitigar os riscos de inadimplência ou sonegação no imposto, em função da sua incidência fragmentada. 
Outra possível vantagem da sistemática não cumulativa estaria expressa pelo estímulo a uma espécie de autoregulação da fiscalização no caso em que o reconhecimento do crédito estivesse condicionado ao efetivo pagamento do imposto. Isso porque o adquirente de um insumo ou produto naturalmente tenderia a exigir a comprovação do pagamento do imposto devido na etapa anterior, de forma a assegurar seu direito ao crédito. Contudo, essa hipótese parece ter sido descartada no relatório final do Grupo de Trabalho, ao garantir o creditamento independentemente da verificação de pagamento.  
Por fim, cabe salientar que a não cumulatividade é uma técnica fundamental para não onerar excessivamente ou inviabilizar economicamente as cadeias produtivas mais longas e complexas, bem como para a plena desoneração das exportações e dos investimentos. 
Na teoria moderna de tributação, a plena não cumulatividade é instrumento essencial para garantir a observância de outro princípio valioso, o da neutralidade, considerado uma diretriz fundamental da economia de mercado pela OCDE.  
A neutralidade tributária preconiza que a tributação não gere distorções na formação de preços e evite estímulos que desviem as ações dos agentes econômicos para caminhos diferentes daqueles que seriam seguidos na ausência de referidas regras, independentemente do número de operações envolvidas na cadeia produtiva  
Um exemplo de não-neutralidade gerado pela cumulatividade é o estímulo para verticalização de determinadas etapas do processo produtivo, o que se traduz pelo estímulo a que as empresas produzam parte de seus próprios insumos internamente, ao invés de encomendar insumos de terceiros, a fim de minimizar o custo tributário produzido pela cobrança em cascata do imposto sobre os insumos eventualmente adquiridos. Além disso, a cumulatividade gera distorções de preços, fazendo com que bens e serviços produzidos em cadeias longas se tornem mais caros, se comparados àqueles provenientes de cadeias curtas.  
Embora o princípio da não cumulatividade tenha constado expressamente no texto da Constituição Federal de 1988 e norteado a criação do ICMS, do IPI e, mais recentemente, a reforma do PIS/Cofins, ele não foi plenamente operacionalizado, devido a uma série de razões. Isso decorre não apenas da explícita exclusão ou restrição ao creditamento sobre insumos, que caracteriza parte dos tributos sobre bens e serviços no Brasil, mas também de outros contornos, reflexos ou defeitos do atual modelo tributário, que acabam por produzir cumulatividade, mesmo quando ela, em princípio, não faz parte da gênese de determinados tributos.  
Dessa forma, buscando sistematizar as fontes de cumulatividade, convém dividi-las em quatro categorias distintas, quais sejam: a cumulatividade explícita, residual, operacional e cruzada.  
A cumulatividade explícita seria aquela que se verifica em função da gênese do tributo, caracterizado pela incidência plurifásica, que não gera créditos, como regra geral. Este é o caso do Imposto sobre Serviços (ISS), instituído pelo Decreto-Lei 406/1968, e do PIS/Cofins original, criado pela Lei 9718/1998.  
A cumulatividade residual, a seu turno, seria decorrente de falhas do sistema tributário em propiciar o pleno creditamento sobre insumos em tributos concebidos sob a égide da não cumulatividade. Este é o caso da cumulatividade verificada no ICMS e no PIS/Cofins não cumulativo em função de restrições ao creditamento de determinados insumos e da incidência de alguns tributos sobre os outros (ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins e vice-versa).  
Já a cumulatividade operacional se caracterizaria nas situações de obstruções práticas que o sistema tributário cria e que dificultam o recebimento de créditos, como ocorre devido à aplicação do princípio da origem nas operações interestaduais no âmbito do ICMS. Nesse caso, o estado que recebe o imposto não é o mesmo que deve devolver o crédito, situação que pode se tornar um obstáculo quando o contribuinte que titular de crédito não possua débitos, como ocorre no caso de exportadores puros. 
Por fim, a cumulatividade cruzada seria aquela que decorre da divisão de bases tributárias e da sobreposição de regimes cumulativos e não cumulativos, o que impede de insumos onerados por um tributo gerem crédito para outro tributo, como ocorre tanto nas transações entre contribuintes do ISS e do ICMS, como entre contribuintes do PIS/Cofins de diferentes regimes. 
Apresentadas essas categorias, pode-se perceber que a implementação da plena não cumulatividade depende da aplicabilidade desse princípio a todos os tributos, tanto os já existentes como os que venham a ser criados, mas também, da eliminação da maior parte das restrições ao creditamento, da unificação das bases de bens e serviços (ou seja, do ISS e do ICMS) e da adoção do princípio do destino nas transações entre estados e entre municípios. 
Por outro lado, a manutenção de um modelo tributário em que coexistam o ISS e o ICMS e no qual parte das transações sejam tributadas na origem representa um impeditivo concreto para a plena não cumulatividade, mesmo que se avance na garantia de devolução de créditos independentemente do pagamento do imposto, como apontado no GT da Reforma Tributária. 
Dessa forma, garantia da plena não cumulatividade depende de a reforma tributária ser bem-sucedida na eliminação de todos os fatores, explícitos ou não, que hoje restringem a observância desse princípio ou impedem sua viabilidade na prática. Depende, portanto, da implementação de um autêntico modelo do tipo IVA.

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Manter modelo com ISS e ICMS e transações tributadas na origem é impeditivo concreto para um sistema não cumulativo

A reforma tributária e o princípio da não cumulatividade

Garantia da plena não cumulatividade depende de a reforma tributária ser bem-sucedida na eliminação dos fatores que hoje a restringem