Cláudio Damasceno

No dia 4 de novembro, os jornais O Estado de S.Paulo e O Globo publicaram artigo dos economistas Armínio Fraga, Ana Carla Abrão Costa e do advogado Carlos Ari Sundfeld <a href="https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,hora-de-reformar-o-rh-do-estado,70002583603" target="_blank" rel="noopener">propondo uma profunda reforma administrativa</a> que, na visão dos autores, abriria caminho para que o Estado brasileiro atenda as demandas de uma quase totalidade de cidadãos insatisfeitos e prejudicados pela desqualificação das instituições que os atendem. Intitulado “Hora de reformar o RH do Estado”, oferece quatro vetores que pretendem atingir a pulverização das carreiras no serviço público, seus vícios, ineficiências e corporativismos. Cava um imenso e profundo poço, no qual todo o funcionalismo é despejado. Chegando-se ao final do texto, tem-se como conclusão óbvia que o redesenho da gestão injetará o combustível de que precisam as reformas que farão o País ultrapassar o patamar da paralisia e do gigantismo que o ancora há décadas.
Generalizações somente reduzem o arco do pensamento. Assim, por melhor que seja a intenção do artigo que ora comento, é um perigoso reducionismo deixar subentendido que nada presta e tudo tem que recomeçar do zero na administração pública. Para os autores, 1) meritocracia e funcionalismo devem estar inseridos num ambiente que os torne compatíveis; 2) sistemas de metas entre os servidores simplesmente não existem e devem ser instituídos, sob pena de dispensa sumária por incapacidade funcional; 3) o excesso de benefícios, segundo a visão exposta no texto impensável para as atuais realidades do mercado de trabalho e situação fiscal do País, é algo inédito em qualquer atividade profissional que se conheça; e 4) os salários dos agentes públicos devem estar equalizados com os da iniciativa privada.
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Aquilo que propõem simplesmente não é verdadeiro. Falando pelos Auditores-Fiscais da Receita Federal, é preciso registrar que o órgão estabelece, todo começo de ano, metas de arrecadação a serem atingidas. Tudo seguindo estritamente o Código Tributário Nacional (CTN), leis, resoluções e normas estabelecidas em favor exclusivamente do Estado. Não existe “canetaço” ou multa na base do “fiz porque quis”. Ao contribuinte que discordar de uma autuação, é facultada contestação nas delegacias de Recursos e Julgamentos (DRJs), no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e, finalmente, na Justiça comum de primeira instância.
Da mesma forma, importante esclarecer aos autores que, na RFB, não se avança na carreira por gravitação. Fazendo analogia com o futebol, o Auditor-Fiscal não joga parado. A ascensão se dá pela via do mérito funcional e pela graduação profissional. Hoje, na Receita, há uma boa quantidade de mestres e doutores, com o estímulo da própria instituição. Tais especializações são a prova cabal de que, no serviço público, cada vez mais se exige conhecimento e formação não para benefício pessoal, e sim da sociedade.
Muito se fala também das “benesses” concedidas pelo Estado ao servidor, e os autores do texto não fugiram desse lugar-comum. Quais seriam? Não dizem. Quem está no Poder Executivo não tem 14º e 15º salários, 40 dias de férias, 4 h/dia de trabalho, plano academia de ginástica, R$ 150 de auxilio alimentação/dia, auxílio moradia mesmo atuando na praça onde já tem imóvel próprio... E, como de hábito, não escrutinam o Legislativo e o Judiciário, que frequentemente protagonizam episódios de concessão de autobenefícios, amplificados pela imprensa como escárnio e desprezo pelo contribuinte. Me intriga a omissão desses dois outros poderes da República nas críticas feitas por todos aqueles que propõem reformas da gestão pública.
Outro fator que não consegui detectar se é desconhecimento ou má-fé, pois que solenemente ignorados pelos ditos especialistas em recursos humanos no funcionalismo: se o servidor que entrou até 2003 tem aposentadoria integral, ninguém explica que é porque contribui com 11% do seu rendimento bruto, enquanto que o trabalhador da iniciativa privada desconta de 8 a 11% do limite do teto do regime geral (R$ 5 mil).
Sobre os militares, também não se lê coisa alguma da lavra dos três e de outros articulistas. Trata-se de um estamento que com nada contribui (os 7,5% são para a pensão) e se aposenta na média de idade de 50 anos – os civis do serviço público se retiram, atualmente, com aproximadamente mais de 40 anos de contribuição.
E qual a razão para a inexistência de menção aos comissionados e aos terceirizados? Por quê não incluí-los na reforma que os autores sugerem? Todos sabemos a que se destinam tais cargos e isso nada tem a ver com a gestão pública eficiente. Uma das provas mais eloquentes de que a ocupação da máquina tem objetivos político-partidários – que habitualmente escondem o reles enriquecimento ilícito – foi o de um jovem de 19 anos que ocupava função de confiança no Ministério do Trabalho, e por cuja mesa passava a ordenação de despesas da Pasta. Competência? Mérito? Conhecimento? <a href="https://oglobo.globo.com/brasil/ministro-coloca-jovem-de-19-anos-apadrinhado-do-ptb-para-fazer-pagamentos-de-473-milhoes-22470321" target="_blank" rel="noopener">Relembrem aqui caso não lhes ocorra tal episódio</a>. A denúncia é de março passado. E semelhantes a esta, houve várias.
Não existe uma única categoria profissional, por mais modesta que seja, que funcione a contento sem estímulo à produtividade e reconhecimento pelo desempenho. Inclusive, nos manuais da boa gestão do mercado privado de trabalho, reza a prática da bonificação pelo sucesso – que vai da divisão de lucros e dividendos a bens de consumo, incluindo-se aí viagens de lazer.
Tomemos como exemplo a Petrobras, que ficou no centro de um dos maiores escândalos de corrupção dos últimos tempos. Pertencente ao Estado brasileiro, mas com um modelo híbrido de gestão, em fevereiro deste ano <a href="https://veja.abril.com.br/economia/petrobras-quer-pagar-bonus-a-funcionarios-por-meritocracia/" target="_blank" rel="noopener">anunciou o pagamento de bônus por meritocracia e ascensão profissional</a>. Ora, se uma empresa que flertou com a ruína pode premiar seus funcionários a fim de que a afastem o mais rapidamente possível do abismo, restaurando-lhe a pujança abalada, por quê no serviço público a concessão de algo semelhante é considerado pecado mortal? A explicação é uma só: preconceito.
Que nada mais é que uma extensão da desinformação a respeito dos salários do funcionalismo. Os autores do artigo são enfáticos quando dizem, em conclusão de raciocínio a certo trecho, que “isso é capaz de corrigir as distorções de remunerações no serviço público, alinhando aos salários iniciais do setor privado e ampliando as distancias entre estes e os vencimentos finais da carreira”. Certamente ignoram o <a href="http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&amp;view=article&amp;id=1761" target="_blank" rel="noopener">Comunicado do Ipea nº 37, intitulado Salários no setor público versus salários no setor privado no Brasil</a>. Está na página 3: “(b) A diferença de salário em favor do setor público se explica principalmente pelo fato de que, no setor público brasileiro, o perfil dos ocupados segundo o grau de instrução é muito melhor que no setor privado; portanto, o salário médio do setor público fica acima do salário médio do setor privado, pois este concentra uma parcela muito grande de empregados com apenas o ensino fundamental incompleto (27,7% em 2008) e mais 17,8% com apenas até o fundamental completo – justamente os graus de instrução aos quais se relacionam os salários mais baixos; (...) (g) A diferença de salário em favor do setor público, no Brasil, não se diferencia da dos demais países de forma muito destacada”.
Mas se os três autores não se satisfizerem com o que reproduzi acima, segue o <a href="http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&amp;view=article&amp;id=1730" target="_blank" rel="noopener">Comunicado do Ipea nº 19</a>, intitulado Emprego Público no Brasil: comparação internacional e evolução. Na página 6 se lê: “Pode-se afirmar que os dados apontados nesta comparação internacional revelam que a participação do emprego público no Brasil é pequena, tanto se comparada com os países desenvolvidos, como também se comparada a países latino-americanos. Portanto, não há razão para se afirmar que o Estado brasileiro seja um Estado ‘inchado’ por um suposto excesso de funcionários públicos”.
Percebo que o texto publicado no Estadão e no Globo é um rol de soluções que não leva em conta várias particularidades do serviço público. Os autores deveriam, nos mesmos espaços e em tamanho semelhante, explicar por que tantas omissões.
Aproveito para alertar o governo eleito: o déficit de Auditores-Fiscais sobe perigosamente. Em 2007, quando da criação da Super-Receita, éramos 14 mil; hoje somos aproximadamente 9,2 mil ativos, à razão média de 600 aposentadorias anuais. Estima-se que, fechado 2018, o número se reduza para algo como 8,6 mil. E é com esse quantitativo que se terá que fiscalizar empresas, aduanas de portos, aeroportos e zonas de fronteiras; cruzar dados de investigações sobre lavagem de dinheiro e sonegação, como nas operações Lava Jato, Zelotes e Acrônimo; julgar ações dos contribuintes nas DRJs e no Carf; participar de operações contra o tráfico de drogas e armas nos 17 mil km de fronteira seca; e fiscalizar e cuidar da arrecadação das contribuições previdenciárias, motor econômico de uma parcela expressiva dos municípios. Para um país reconhecidamente inseguro e desigual, que figura em má posição nos rankings internacionais de combate à corrupção, não será pela diminuição do efetivo especializado que daremos início à construção da gestão pública preconizada pelos articulistas.
Um dos autores do texto que analiso, o economista Armínio Fraga, esteve dentro do Estado quando foi presidente do Banco Central, no governo Fernando Henrique Cardoso. Ainda que a autoridade monetária seja uma autarquia, espelha um expressivo setor da administração pública, formado por profissionais de alta capacidade técnica e absolutamente voltado para melhoria das instituições. Portanto, sabe perfeitamente que não é justo nem correto embrulhar os servidores num único pacote e lhes atribuir grande parcela dos males da máquina federal.
Não nego que há muitos problemas no funcionalismo. O ideal seria que as ilhas de excelência tivessem o poder de se converter em continentes de competência. Mas não é assim, e nem será com maniqueísmo que vamos adiante. Quase 30 anos atrás, durante um governo que se dizia reformista e intolerante com as velhas práticas políticas e de gestão, se tentou o avanço desconsiderando as nuances que o compõem. Inúmeras vozes propuseram o rompimento, mas em troca ofereceram apenas voluntarismo. Muitos seres iluminados pregaram o progresso, mas alicerçados somente no empirismo.
O resultado foi o primeiro e traumático impeachment.

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JOTA

Texto publicado nos jornais Estadão e O Globo é um rol de soluções que não leva em conta particularidades do serviço público

A reforma do RH do Estado virá ao entender o Estado, e não ao descartá-lo

Texto publicado nos jornais Estadão e O Globo é um rol de soluções que não leva em conta particularidades do serviço público