Antonio Augusto Figueiredo Basto

Tomás Chinasso Kubrusly

A Câmara dos Deputados se movimenta para a criação de um novo Código de Processo Penal. Há muito a doutrina clama pela refundação do processo penal brasileiro<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Afinal, como é sabido, o código sob vigência foi concebido durante a ditadura civil da era Vargas e possui traços claros daquela época sombria da história nacional, v.g. a repulsa à forma do ato processual<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
O projeto de novo Código de Processo Penal possui aspectos louváveis, tais como a confirmação de uma estrutura acusatória (art. 4) e a implementação do juiz das garantias (Capítulo II), restringindo ao máximo as áreas de eventuais excessos judiciais que levam à parcialidade do julgador.
No entanto, o projeto não é perfeito, possuindo distorções graves do ponto de vista da moderna teoria processual penal, dentre as quais, o retrocesso no tratamento do habeas corpus, amplamente denunciado em artigo publicado pelo eminente advogado <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-questao-do-habeas-corpus-no-substitutivo-do-deputado-joao-campos-27052021">Alberto Zacharias Toron no sítio eletrônico JOTA</a><a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Outro ponto que carece de maior discussão é o Capítulo IV do Projeto, que trata sobre as invalidades processuais.
<h3>Nulidades na Reforma do CPP</h3>
O tratamento das nulidades no projeto inicia bem, prevendo que o descumprimento de disposições constitucionais ou legais, referentes ao processo ou à investigação preliminar, determinará a invalidade dos respectivos atos (art. 186). Essa disposição avança em muito na temática, rechaçando qualquer discussão acerca da existência de um rol taxativo ou exemplificativo das nulidades, como ocorre com o ultrapassado art. 564 do atual CPP<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Ademais, estende a possibilidade de controle de validade àqueles atos formados durante a investigação preliminar, algo que a doutrina vem há tempos defendendo<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>e que a jurisprudência<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> ainda claudica em reconhecer.
Ocorre que, já no artigo 187 do projeto, o avanço inicial desanda e requenta a ultrapassada aproximação entre o processo civil e o processo penal, como ocorre com o atual codex. A fim de compreendermos a profundidade do problema, cabe transcrever trecho do relatório contido no substitutivo apresentado pelo Deputado João Campos:
“no que se refere às nulidades, foram feitas alterações no texto para aproximar o seu tratamento ao adotado pelo novo Código de Processo Civil, preservando-se o princípio de que a decretação de nulidade depende da ocorrência de prejuízo (pas de nullité sans grief) e da instrumentalidade das formas e termos do processo. Assim, evita-se o culto do formalismo estéril, prestigiando a busca da verdade real”.
Essa colocação possui sérias impropriedades e demonstra que, ao menos nesse aspecto do projeto, se reciclou aquela lógica amorfista prevista no código sob vigência e explicitada na Exposição de Motivos subscrita por Francisco Campos.
Primeiramente, devemos destacar que, como percebido por Carnelutti já em 1946, qualquer equiparação entre o processo civil com o processo penal, a pretexto de se ter uma teoria geral do processo, é falha, pois naquele se discute eminentemente o ter, enquanto nesse se discute o ser<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Dessa forma, na seara cível, estão sob proteção interesses meramente privados, diferente do âmbito criminal, no qual estão em jogo garantias públicas irrevogáveis àquele indivíduo acusado de um delito, a fim de proteger a sua liberdade de um castigo estatal<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Já a categoria do prejuízo<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, própria da área cível, segundo a qual declarar-se-á o defeito apenas se este “impedir que a finalidade do ato seja atingida”<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, consiste em algo tão poroso e subjetivo que, até hoje, passados quase 80 anos da promulgação do Código de Processo Penal da era Vargas, não se tem uma definição firme acerca de seu significado.
Importa destacar que nem mesmo a condenação no processo penal preenche o requisito do prejuízo, de acordo com a jurisprudência<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>, razão pela qual os Tribunais demandam que o investigado/acusado demonstre que, se o ato fosse realizado conforme determina o ordenamento legal, poder-se-ia ter uma situação diferente da qual se chegou.
<blockquote class="jota-article__eye">Ora, se nem mesmo a condenação, consequência mais gravosa do processo penal, serve para demonstrar o prejuízo suportado pelo sujeito passivo da dinâmica processual penal, essa condicionante imposta pela lei e pelos Tribunais constitui verdadeira prova diabólica, de impossível constatação!</blockquote>
Nessa toada, jamais podemos nos esquecer que a forma, no processo penal, é garantia e limite de poder<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a> e não um fim em si mesmo. É através dela que ter-se-á a consecução do princípio constitucional insculpido no tipo processual<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>. Afinal, nas palavras de Gloeckner, a forma “corresponde à garantia de que o processo penal seguirá um rumo previsto normativamente, independentemente das paixões e demais irracionalidades que afloram no campo do jogo processual”<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
Assim, o “acoplamento estrutural entre a forma prescrita e o ato processual praticado”<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a> é condição absoluta de validade deste e consequência lógica do princípio da legalidade, de modo que não há como defender uma falaciosa compreensão de instrumentalidade das formas. Vejam que, se a finalidade do processo é impor limites ao poder estatal, como se um escudo ao acusado fosse, demandar que se demonstre o prejuízo por ele suportado em razão do desvio do texto legal serve apenas como um permissivo para que os julgadores possam pinçar aquelas nulidades que os convêm decretar, como se fosse possível escolhê-las à la carte<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>.
Já passou do momento de se perceber que o processo penal não é um instrumento a serviço de fins punitivistas.
Por fim, o substitutivo do deputado João Campos, no tratamento das nulidades, atinge o ápice no momento em que, somadas todas as impropriedades aqui apontadas, afirma que a intenção é prestigiar a busca da verdade real, como se fosse possível alcançá-la através do processo. A verdade real, ao bem da verdade, é um mito<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a>, uma reminiscência dos períodos inquisitoriais, através da qual poder-se-ia até torturar pessoas a fim de descobrir quem cometeu um suposto delito.
A verdade real é uma falácia sem tamanho, pois desconsidera totalmente a falibilidade humana<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a>. No processo, a verdade é sempre aproximativa – e nunca real –, pois, no ensinamento de Ferrajoli, a única constatação que se pode fazer na seara processual é a de que uma ou mais proposições são verdadeiras “pelo que sabemos sobre elas, ou seja, em relação ao conjunto dos conhecimentos confirmados que delas possuímos”<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn19" name="_ftnref19">[19]</a>.
Assim sendo, a fim de otimizar a sistemática processual penal, o Congresso Nacional deveria extirpar a categoria do prejuízo, da verdade real e as heranças advindas do processo civil, das quais o Projeto está prenhe, adotando, em substituição, um modelo de respeito à legalidade estrita do tipo processual. A partir dessa lógica, uma vez constatada a atipicidade do ato, presumir-se-ia o seu defeito e a sua consequente invalidade, a não ser que, em uma inversão de sinais, o juiz demonstre que o ato atípico atingiu ou, até mesmo, ultrapassou o escopo de garantia mínimo – ou seja, a sua finalidade – insculpido no tipo processual<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftn20" name="_ftnref20">[20]</a>.
Concluindo o raciocínio, é de se louvar o advento de um potencial novo Código de Processo Penal, haja vista o descolamento constitucional do diploma sob vigência. Todavia, ressaltamos que uma reforma desse tamanho deve prezar pela independência do processo penal em relação ao processo civil, extinguindo categorias que são próprias daquela matéria – e não dessa. Assim, a sistematização de um novo Código de Processo Penal deveria dialogar com os avanços trazidos pela moderna doutrina, razão pela qual não basta estabelecer uma “estrutura acusatória” se isso não atuar como um fio condutor, irradiando as características desse modelo para todo o corpo do diploma legal.
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<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> CHOUKR, Fauzi Hassan. Iniciação ao processo penal. 2. Ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Segundo a Exposição de Motivos, subscrita por Francisco Campos, o Código de Processo Penal de 1941 “é infenso ao excessivo rigorismo formal, que dá ensejo (…) à infindável série das nulidades processuais”.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> TORON, Alberto Zacharias. A questão do Habeas Corpus no substitutivo do deputado João Campos. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-questao-do-habeas-corpus-no-substitutivo-do-deputado-joao-campos-27052021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-questao-do-habeas-corpus-no-substitutivo-do-deputado-joao-campos-27052021</a>, acesso em 16.07.2021, às 15h44m.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Sobre o tema, ver ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Teoria das nulidades no processo penal. São Paulo: Noeses, 2016. P. 402-403.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2017. P. 420-428.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Cabe salientar que o Superior Tribunal de Justiça possui entendimentos conflitantes a esse respeito. Em julgado proferido pela Sexta Turma, decidiu-se que “As garantias do processo penal albergadas na Constituição Federal não toleram o vício da ilegalidade mesmo que produzido em fase embrionária da persecução penal” – HC 137.349/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 05/04/2011, DJe 30/05/2011. Em sentido contrário, a Quinta Turma recentemente afirmou que “eventual irregularidade ocorrida durante o inquérito não acarreta a nulidade da ação penal superveniente, pois a fase policial consiste em procedimento meramente preparatório para a ação penal” – HC 664.005/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 25/05/2021, DJe 01/06/2021.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> CARNELUTTI, Francesco. Cuestiones sobre el proceso penal. Buenos Aires: Libraria el Foro. P. 19.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. 6. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015. P. 65.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Prevista também no art. 563 do Código de Processo Penal vigente.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: teoria geral do processo. Vol. 1. 18. Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. P. 603.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> “Destaque-se que a condenação, por si só, não pode ser considerada como prejuízo, pois, para tanto, caberia ao recorrente demonstrar que a nulidade apontada, acaso não tivesse ocorrido, ensejaria sua absolvição, situação que não se verifica os autos” – AgRg no AREsp 1637411/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 26/05/2020, DJe 03/06/2020.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal. 6. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. P. 69.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> BINDER, Alberto M. El incumplimiento de las formas procesales. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2009. P. 72.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2017. P. 316
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. op. cit. P. 429.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> LOPES JR., Aury. Sistema de nulidades “a la carte” precisa ser superado no processo penal. In: Revista Consultor Jurídico, 05.09.2014. Disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2014-set-05/limite-penal-sistema-nulidades-la-carte-superado-processo-penal" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.conjur.com.br/2014-set-05/limite-penal-sistema-nulidades-la-carte-superado-processo-penal</a>. Acesso em: 16.11.2019, às 15h25m.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a> CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015. P. 177.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> TARUFFO, Michele. La prueba. Madrid: Marcial Pons, 2008. P. 234.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref19" name="_ftn19">[19]</a> FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. P. 42.
<a href="applewebdata://CEB8364D-C4BA-410B-AEE6-67537FB6251E#_ftnref20" name="_ftn20">[20]</a> BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8. Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. P. 907.

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JOTA

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A Reforma do Processo Penal, o tratamento de nulidades e o substitutivo de Campos

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