Jéssica Fernandes Veloso

Nos últimos dois anos, o mundo sofreu impactos e transformações significativos causados pela pandemia da Covid-19. Esses efeitos mudaram a simetria política global, colocando em segundo plano as políticas públicas e a agenda de desenvolvimento sustentável 2030.
De acordo com o relatório de janeiro de 2022 da Cepal, os países da América Latina e do Caribe tiveram problemas estruturais, políticos e econômicos durante a pandemia. Segundo o documento, os problemas sociais tornaram-se proeminentes. Problemas em setores como transporte público, saúde, aumento da pobreza, assentamentos informais demonstraram a real necessidade de se repensar uma recuperação verde e estratégica, principalmente nesses países menos favorecidos.
Outro ponto muito importante, e objeto de estudo deste artigo, foi o crescente impacto das mudanças climáticas e do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/desmatamento">desmatamento ilegal</a>. De acordo com os dados da UNPD (2020), durante o período de pandemia houve um aumento de 64% da área desmatada no Brasil.
Certamente, o desmatamento nessas áreas não é em vão. À medida que a mídia e a maioria dos brasileiros se concentraram nas notícias diárias da pandemia, as questões ambientais foram esquecidas e, com o auxílio de decisões perversas do governo, tais como o desmonte das políticas de proteção ambiental, flexibilização do licenciamento, desmonte de instituições como Ibama e ICMBio, levaram à expansão do agronegócio a áreas e terras de preservação ambiental.
As áreas e terras de preservação ambiental são importantes para a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/mudancas-climaticas">mudança climática</a>, sejam elas terras de comunidades étnicas ou áreas designadas para proteção de biomas essenciais.
Com a estagnação da pandemia e o seu possível fim, o desenvolvimento sustentável e a aplicação da Agenda 2030 tem um papel vital na definição de políticas governamentais para a recuperação dos países, principalmente no que se refere ao Brasil. E nesse momento temos que a reforma agrária tem um papel central, buscando um equilíbrio entre a humanidade e o planeta.
Darcy Ribeiro (2006) relata que a questão fundiária no Brasil é fruto antes mesmo do “achamento” do Brasil. Com normas que buscavam regulamentar as ações colonizadoras, o Vaticano estabeleceu que as terras, hereges ou pagãos que fossem encontrados durante as jornadas eram propriedades de Portugal ou Espanha.
Com este início, surge o Brasil colonial sujeito ao regime sesmarial, terras eram concedidas a indivíduos privilegiados portugueses, os quais se apossaram irregularmente de terras dos povos originários que aqui já habitavam. Esse período é marcado pela devastação ambiental de madeira nobre que se arrasta até os dias atuais.
A agricultura brasileira manteve as características do período colonial, produzindo produtos de monoculturas, desmatando a Mata Atlântica e outros biomas. Contudo, foi com a Revolução Verde implementada entre as décadas de 1960 e 1970 que a agricultura começa a ser tratada como um <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/agronegocio">agronegócio</a> propriamente dito, com a ampliação de fronteiras agrícolas, concentração de terras, a utilização de insumos e a mecanização de monoculturas.
De acordo com os dados coletados pela IMAFLORA (2020), temos que um quarto (25%) de toda a terra agrícola é ocupada pelos 15.686 maiores imóveis do país, o que significa que um quarto de toda a terra é possuída por somente 0,3% do total de imóveis, concentrando-se especialmente em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e na região conhecida como Matopiba (áreas dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).
Os outros 3.847.937 menores produtores de terra do Brasil possuem somente 77% do total dos imóveis – somando esse total conseguimos igualar os outros 25% da área total. No mais, no índice de Gini a distribuição da propriedade da terra no Brasil foi de 0,73, confirmando a alta desigualdade.
A julgar pelos dados acima, a concentração de terras é desigual. O fortalecimento do vínculo do capital ao acesso da terra faz com que haja a expulsão da população rural para áreas urbanas, dificuldade de obtenção de crédito rural, precariedade das relações de trabalho e degradações ambientais por conta dos insumos, pois a maioria dessas imensas propriedades desconsidera a capacidade ambiental da terra.
Temos, portanto, que o modelo empresarial subsidiado pelo Estado tem se mostrado cada vez mais em xeque diante dos problemas socioambientais, incapaz e acomodar a justiça social e equilíbrio ambiental. E é nesse vácuo que a reforma agrária e a função social da propriedade precisam ser discutidas e implementadas.
O termo função social da propriedade é utilizado pela primeira vez na carta de 1934, a qual afirmou que o direito da propriedade não poderia ser exercido contra o interesse social e coletivo. Já em 1946, estabelece-se a desapropriação por interesse social e a justa distribuição da propriedade, ganhando, assim, a reforma agrária respaldo legal.
Em 1962, João Goulart sancionou o <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4132.htm">Decreto nº 4132</a>, definindo os casos de desapropriação por interesse social, permitindo a realização da reforma agrária no Brasil. Durante o período militar, embora o Estatuto da Terra tenha sido aprovado, muito pouco foi realizado no que tange à desapropriação e reforma agrária.
Com a redemocratização, ressurgiu a questão da desapropriação, configurando o artigo 184 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">Constituição Federal</a>, tendo como base principal a função, a satisfação dos interesses sociais.
De acordo com o artigo 186 da Constituição, a função social da propriedade é cumprida, e todos os requisitos precisam ser preenchidos simultaneamente, quando: há o aproveitamento racional e adequado; utilização dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Não atendidos os requisitos do artigo anterior, o imóvel pode e deve ser destinado à reforma agrária. Na prática, porém, não é assim. Se a propriedade é considerada produtiva, os aspectos ambientais e sociais não são considerados e passíveis de desapropriação.
Há uma necessidade urgente de revisão neste sentido. Embora a propriedade seja produtiva, precisamos levar em consideração se a propriedade utiliza da exploração predatória, a qual desgasta o solo, diminui os recursos naturais, compromete o potencial de alimentos e a qualidade de vida social para as próximas gerações (DOSSO, 2008).
E é nesse sentido que a agenda de desenvolvimento sustentável encontra seu lugar. A reforma agrária precisa ser entendida como uma política pública de redistribuição de terras, que exige profundas mudanças nos sistemas de produção, diferenciando-se da agricultura atual predatória.
É preciso considerar a inclusão social, a agricultura ambientalmente viável e o desenvolvimento econômico do país. Principalmente o incentivo da agricultura familiar. Em contraposição ao sistema atual, a propriedade familiar desempenha um papel fundamental para o alcance das metas dos objetivos sustentáveis. Com ele temos uma solução muito ágil para crises econômicas, pois a propriedade familiar absorve muita de mão de obra; também constitui estabilidade e oferta de produtos alimentares básicos e de ótima qualidade como a produção de arroz orgânico do MST (LEMOS 2022); para o mercado interno produz produtos de menor custo; traz segurança à terra e a proteção do meio ambiente.
Dessa forma, entende-se que a reforma agrária é uma necessidade. Com o fim da pandemia, precisamos reconstruir o equilíbrio entre as pessoas e o planeta. É preciso transformar a agricultura em aliado do meio ambiente, repensar seus padrões econômicos, sociais e políticos, proteger os escassos recursos naturais, fazer o uso racional da terra e transformar a reforma agrária sustentável em uma agenda necessária e urgente para o Brasil.
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CEPAL, United Nations 2022. How to finance sustainable devolopment. Recovery from the effects of COVID-9 in Latin America and the Caribbean, Santiago, Chile: ECLAC.
DOSSO, Taisa Cintra. Reforma agrária e desenvolvimento sustentável: aspectos obrigacionais e instrumentos legais de proteção. 2008. 145 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de História, Direito e Serviço Social, 2008. Disponível em: &lt;http://hdl.handle.net/11449/89863&gt;. Acesso em: 09 set 2022.
DUARTE, Bianca Andrade. Aspectos legais do licenciamento ambiental em face da reforma agrária como garantia da preservação ambiental e desenvolvimento socioeconômico. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov 2021,04:24. Disponivel: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/57679/aspecto s-legais-do-licenciamento-ambiental-em-face-da-reforma-agrria-como-garantia-da-preservao-ambiental-e-desenvolvimento-socioeconmico. Acesso em: 09 set 2022.
FAGGIN, Joana Mattei. Reforma Agrária, Sustentabilidade e Participação: o caso do Projeto de Desenvolvimento Sustentável São Luiz, Cajamar – SP. Brasília, 2009. 103 p.: il.
LEMOS, Vinicius., 2022. MST: maior produtor de arroz orgânico do Brasil, movimento vive dificuldades para comercializar o grão. [Online]. Available at: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62746336. Acesso em 21 setembro 2022.
PINTO, Luís Fernando Guedes. et al., 2020. Quem são os poucos donos das terras: O Mapa da desiguldade, Piracicaba, São Paulo: IMAFLORA. Disponível em:https://www.imaflora.org/public/media/biblioteca/1588006460-sustentabilidade_terras_agricolas.pdf. Acesso em 21 setembro de 2022.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 1 edição Companhia de Bolso ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
United Nations Development Programme (UNDP), 2020. Lessons from COVID-19 for a Sustainability Agenda in Latin America &amp; the Caribbean, New York, USA: United Nations Development Programme.

reforma agrária

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JOTA

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