Nina Pencak

Victor Marcel Pinheiro

No último dia 12 de setembro, foi publicada a Recomendação nº 134, de 9 de setembro de 2022, do Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/conselho-nacional-de-justica">CNJ</a>), que dispõe sobre o tratamento dos precedentes no direito brasileiro. A medida é fruto do Grupo de Trabalho instituído pela Portaria nº 240/2020 do Presidente do CNJ e aprovada pelo colegiado do Conselho. 
Nos termos do art. 103-B, § 4º, inciso I, da Constituição Federal, cabe ao CNJ recomendar providências ao Poder Judiciário, função que tem sido cumprida com notoriedade. Especialmente no que se refere à Recomendação CNJ nº 134/2022, entendemos que, apesar de não ser vinculante ao Poder Judiciário, mas apenas persuasiva, a iniciativa é muito positiva e deve ser celebrada pela sociedade brasileira. 
Desse modo, este breve artigo se dividirá em duas partes principais: na primeira, apontaremos os pontos positivos da Recomendação que merecem ser destacados; na segunda, abordaremos a questão que consideramos sensível e apresentaremos sugestões de interpretação e possíveis aprimoramentos. Em ambas, proporemos reflexões acerca do conteúdo do ato normativo do CNJ e de nosso sistema de precedentes. 
A criação e sedimentação da teoria de precedentes no Brasil percorre, há décadas, uma trajetória, que – apenas para mencionar alguns dos marcos normativos relevantes – passa pela criação, em 1963, da Súmula da Jurisprudência Dominante do STF, a Constituição Federal de 1988, a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc45.htm">Emenda Constitucional nº 45/2004</a> e o <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm">Código de Processo Civil de 2015</a>. 
Nessa linha, ao zelar pela efetiva implementação de uma cultura de respeito a precedentes no direito brasileiro, o CNJ dá um passo importante na direção de que nosso sistema de justiça apresente maior segurança jurídica e isonomia. A Recomendação estabelece diversas diretrizes importantes que evidenciam que o Grupo de Trabalho está atento às práticas assistemáticas ocorridas no cotidiano das decisões proferidas nas instâncias do Poder Judiciário, do que não escapam os Tribunais Superiores.  
A primeira questão que merece destaque é a previsão contida no art. 39: “A aplicação do precedente envolve operação cognitiva e deve ser sempre devidamente fundamentada”. 
Apesar da aparente obviedade, tal enunciado tem a importante função de expressar que a interpretação e aplicação de precedentes não é uma tarefa em que ao intérprete restaria uma função automatizada de aplicação de enunciados jurisprudenciais. De modo diverso, a interpretação e aplicação de precedentes é tarefa muito mais rica e complexa, pois exige a interpretação de uma decisão judicial em seu contexto fático, processual e argumentativo – o que vai muito além de uma tarefa pretensamente mecânica de subsunção. 
Também são muito positivas as orientações constantes de dispositivos que identificam (i) a necessidade de observância horizontal e vertical dos precedentes, hipóteses expressamente previstas nos art. 926 e 927 do CPC/2015[1] e (ii) o dever de fundamentação das decisões judiciais (em observância ao devido processo legal)[2]. Nesses artigos, sugere-se que os magistrados e tribunais estejam atentos à identificação de possíveis questões que venham se multiplicar e, assim, busquem estabelecer a uniformidade de entendimentos judiciais mediante os mecanismos processuais pertinentes (por exemplo, o incidente de resolução de demandas repetitivas, o sistema dos recursos repetitivos, o incidente de assunção de competência, a suspensão de processos, entre outros). Na mesma linha, o art. 5º da Recomendação indica que os Tribunais Superiores, Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça devem uniformizar sua jurisprudência utilizando-se dos precedentes citados no art. 927 do CPC/2015.
Outro ponto positivo da Recomendação diz respeito ao afastamento da utilização inadequada da figura do distinguishing. Em seu art. 14, §§3º e 4º, orienta-se “que o distinguishing não seja confundido e não seja utilizado como simples mecanismo de recusa à aplicação de tese consolidada” e que se considere “imprópria a utilização do distinguishing como via indireta de superação de precedentes (overruling)”. 
O distinguishing (ou distinção) é a redução do suporte fático de uma ratio decidendi para que ela não incida sobre determinada situação que, preliminarmente, estaria por ela abarcada com base em fatos relevantes não apreciados pela corte que fixou o precedente.[3]
Não são raras as vezes em que a redução da ratio é feita para disfarçar uma discordância em relação às razões de decidir de um precedente, sendo utilizada de forma inadequada para superá-lo. Esse fenômeno é verificado tanto nas instâncias ordinárias quanto no âmbito dos Tribunais Superiores que prolataram o precedente e deveriam mantê-lo “íntegro, estável e coerente”.[4]
Para finalizar a primeira parte do artigo, ressaltamos as orientações da Recomendação do CNJ referentes à modulação de efeitos, que tornam evidente a preocupação do Conselho com a demora na apreciação desse pedido. Nessa linha, o art. 44 recomenda que eventuais embargos de declaração que contenham pedido de modulação de um julgado sejam recebidos com efeito suspensivo. Isso porque não é incomum que, por exemplo, o <a href="https://www.jota.info/stf">STF</a> altere seus entendimentos ou entendimentos do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a> acerca da mesma matéria e aguarde os embargos de declaração para se manifestar sobre o momento da produção de efeitos da nova orientação jurisprudencial. 
Enquanto não houver decisão expressa sobre a partir de que momento será aplicada a decisão que alterou jurisprudência, ela acaba por produzir efeitos imediatos, inclusive vinculando juízes e tribunais por força do art. 927, do CPC/2015. Contudo, não é raro que meses ou anos após o julgamento principal, os tribunais modulem os efeitos de sua decisão em sede de embargos de declaração – em prejuízo da isonomia e segurança jurídica que se espera do sistema de precedentes.[5]
Para evitar essa situação, o CNJ sugere – além do efeito suspensivo aos embargos de declaração – que a modulação seja decidida no mesmo julgamento em que houver a alteração de jurisprudência (art. 46) e que “o tribunal leve em consideração preferencialmente o momento da conduta da parte e a orientação jurisprudencial firme existente à época, para fixar parâmetros da eficácia temporal do novo precedente” (art. 47). 
Além dos pontos positivos acima destacados, com a intenção de contribuir para o debate, abordamos tema sensível da Recomendação que demanda maior reflexão para aperfeiçoamento da prática de precedentes no direito brasileiro: a indevida aproximação conceitual entre “ratio decidendi” e “tese”.  
Os dois conceitos, embora próximos, são substancialmente distintos com importantes impactos na prática com os precedentes judiciais. As rationes decidendi são as razões de decidir que embasam o julgamento de uma questão posta em juízo. A ratio decidendi é uma regra jurídica que resolve essa questão colocada para apreciação do(s) magistrado(s). Não se trata de adotar uma versão caricatural do positivismo normativista de que as regras jurídicas existiriam antes do processo de intepretação e aplicação do direito: pelo contrário, à luz da complexidade fática e normativa inerente às questões jurídicas, o intérprete e aplicador do direito, após examinar e apresentar justificadamente seus argumentos, identifica qual regra jurídica é determinada pelo direito vigente para solucionar a questão posta em juízo.
Já a “tese” nada mais é do que um enunciado textual que visa facilitar a identificação da ratio decidendi. Nesse sentido, do ponto de vista de sua função na construção textual de uma decisão judicial, a “tese” está mais próxima da ementa de um julgado do que da ratio decidendi. Como já exposto, a “sumulização” dos precedentes mediante a adoção de teses é uma prática que tem ganhado corpo no Brasil e não é necessariamente negativa[6]. Ela é um expediente legítimo para facilitar, de um lado, a tomada de decisão por órgãos judiciais colegiados que podem se debruçar sobre a principal razão justificante do precedente e, de outro lado, a identificação de qual foi essa razão no momento de decisão de um caso futuro.
Contudo, as teses não são enunciados de regras jurídicas legislativas, mas apenas apontam para as razões de decidir utilizadas em um precedente. Isso significa que as teses não devem ser interpretadas de modo semelhante aos textos legislativos. 
A razão para tanto é que a interpretação de enunciados normativos legislativos ou regulatórios administrativos é feita de modo substancialmente distinto da intepretação de precedentes judiciais. Legislação e regulação administrativa são atividades criadoras do direito com base em argumentos de inovação da ordem jurídica, em ambiente discursivo não vinculado a determinadas situações concretas da vida e com base em valores morais, sociais e econômicos albergados pelo nosso sistema constitucional.
Já a jurisdição é atividade de interpretação e aplicação do direito em contextos altamente dependentes dos fatos e argumentos jurídicos trazidos pelas partes em determinado processo judicial. A argumentação desenvolvida em sede de processos judiciais, ainda que em alguma medida possa ser também entendida como criadora de direito, não comporta os argumentos morais, sociais e econômicos na mesma extensão da legislação. Isso faz com que argumentos típicos da hermenêutica jurídica sobre textos legislativos (por exemplo, a interpretação a contrario sensu ou interpretação do elemento histórico ou literal do dispositivo normativo) não possam ser utilizados da mesma maneira na interpretação de precedentes judiciais.
Desse modo, como proposta para auxiliar na interpretação da Recomendação nº 134, de 2022, deixa-se registrado que:
<ol>
<li style="font-weight: 400;" aria-level="1">Os arts. 11, 12 inciso III, e art. 13, disciplinam as teses, ou seja, os enunciados que identificam as rationes decidendi dos precedentes judiciais;</li>
<li style="font-weight: 400;" aria-level="1">Os arts. 4º, 12, inciso I, e art. 14, 19, 33, 37, 40, 41, 42, 45 e 48, disciplinam as rationes decidendi em si. </li>
</ol>
Considerando o curto espaço de que dispomos e a relevância dos temas abordados pela Recomendação – os quais não temos pretensão de esgotar no presente artigo –, para finalizar, apenas ressaltamos que deve ser louvada a iniciativa do CNJ de editar a Recomendação nº 134, de 2022. Trata-se de mais um passo na consolidação do sistema brasileiro de precedentes que, se por um lado apresenta complexidade processual considerável, por outro, tem o mérito de oferecer bases dogmáticas mais sólidas para a tomada de decisões judiciais em ambiente democraticamente aberto e que propicie mais segurança jurídica e isonomia na prestação jurisdicional.
<hr />
[1] Resolução nº 134/2022/CNJ, art. 2º, art. 5º e art. 33.
[2] Resolução nº 134/2022/CNJ, art. 12, art. 40, art. 42.
[3] 5 Cf. Victor Marcel Pinheiro, Decisões vinculantes do STF: a cultura de precedentes, Almedina, 2021, p. 218 e ss.
[4] Art. 926, do CPC/2015.
[5] Em matéria tributária, essa situação causa gravíssimos prejuízos aos jurisdicionados, por exemplo: a modulação de efeitos no RE 574.706 (Tema 69 da RG) ocorreu 4 anos após o julgamento da matéria de fundo. Outro exemplo, são os pedidos de modulação formulados nos embargos de declaração no RE 1.072.485 (Tema 985 da RG), que aguardam mais de 2 anos para serem apreciados pelo STF.
Sobre o tema ver: “Modulação de efeitos: proposta de sistematização de julgamentos tributários”, de Nina Pencak, Pedro Júlio Sales D’Araújo e Raquel de Andrade Vieira Alves, Consultor Jurídico, 18/04/2022, disponível em https://www.conjur.com.br/2022-abr-18/opiniao-propostas-sistematizacao-julgamentos-tributarios .
[6] Victor Marcel Pinheiro, A fixação de teses pelo STF e a ''sumulização'' dos precedentes constitucionais, Consultor Jurídico, 01/08/2020, disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-01/observatorio-constitucional-fixacao- 
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