Mari Any de Souza Portilho

Corriam os anos sessenta, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos proferiu uma das suas decisões históricas, que seria responsável por ampliar a proteção de suspeitos desde o momento de sua detenção e em todo curso da fase inquisitorial. Consagrava-se, nessa ocasião, o Miranda Rights ou Miranda Warning, conhecido na dogmática jurídica brasileira como Avisos de Miranda.
A Corte constitucional americana implementou um padrão nas abordagens e detenções realizadas pelo Estado, na figura da polícia, minimizando as violações de direito que poderiam decorrer dessa atuação ao indivíduo. Nos filmes policiais norte-americanos há a célebre declaração no momento de uma prisão, que se originou desse precedente:
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“You have the right to remain silent. Anything you say can and will be used against you in a court of law. You have the right to an attorney. If you cannot afford an attorney, one will be appointed for you.”
O caso tem início em março de 1963, quando Ernesto Miranda foi preso sob acusação de um crime de sequestro e estupro contra uma jovem, que o reconheceu após sua prisão. Levado para uma delegacia em Phoenix, Arizona, foi submetido a interrogatório, que resultou em sua confissão expressa, na qual constava inclusive declaração de voluntariedade na ação de confessar, sem coação dos policiais, e consciência dos seus direitos e da utilização daquela confissão contra si.
Posteriormente, ao ser julgado por júri, a confissão constou como conteúdo probatório, mesmo diante da contestação do advogado de Ernesto quanto a inconstitucionalidade da sua produção, visto a ausência da defesa técnica no ato. O réu foi condenado.
A decisão foi mantida pela Suprema Corte do Arizona, entendendo que a fase inquisitorial deveria ser acompanhada por advogado apenas mediante pedido do investigado, o que não teria ocorrido no caso do réu. Miranda, enquanto cumpria a pena, recorreu à Suprema Corte através de seus advogados, pedindo revisão do seu caso.
Em 1966, a Corte julgou o processo, que ficou conhecido como Miranda v. Arizona<a href="#_edn1" name="_ednref1">[i]</a>, no qual foi declarada a nulidade do julgamento. A corte constitucional americana fixou o que viria a ser conhecido como Miranda Warnings ou Avisos de Miranda.
Trata-se de um conjunto de breves advertências sobre as garantias dos detidos, estabelecendo que o Estado, como detentor do poder de punir, representado pela polícia neste contexto, tem a obrigação de fornecer a informação ao suspeito sobre seu direito de ficar calado e de ser assistido por um advogado, além de esclarecer sobre a possibilidade de que suas falas sejam usadas contra ele. Assim, a confissão produzida sem a devida observância pelos agentes estatais, implica em nulidade e ocasiona a sua exclusão do conteúdo probatório que será apresentado na fase processual.
O posicionamento da Corte norte-americana evidencia-se como um respeito ao princípio do devido processo legal, amparando o sujeito primariamente a condição de suspeito. Além disso, há uma atuação do Poder Judiciário no âmbito extrajudicial, reconhecendo a hostilidade de um ambiente policial e a violência que dele poderia decorrer.
Quando um suspeito confessa, sem a consciência de que pode calar-se sem isso ser uma presunção da culpabilidade, como alegar sua voluntariedade sem coação ou pressão externa? É difícil conferir confiabilidade a um ambiente cuja finalidade é indiciar o indivíduo. Desse modo, a assistência de um advogado aproxima o suspeito de seus direitos e da garantia de seu cumprimento.
Ademais, em um julgamento, o ônus de provar a culpabilidade do suspeito, para então exercer o direito de punir, é do Estado. E, nesse contexto, a inatividade do indivíduo interrogado não funciona como auxiliar do poder estatal, e não configura uma autoincriminação. Partindo do princípio da presunção de inocência, o suspeito é inocente até que o Estado, reunindo conteúdo probatório lícito, prove o contrário. Isso não obsta ao investigado, na garantia de seus direitos e com efetiva consciência da possibilidade de agir em contrário, dispor de seu direito de calar e confessar o crime, permitindo ao Estado incluir suas declarações nas provas utilizadas posteriormente no processo.
É importante salientar também que a Corte dos EUA atribuiu ao Estado o ônus de provar a violação ao Miranda Rights, quando alegado pelo réu. Conforme afirma Fernando Capez, “cabe provar a quem tem interesse em afirmar. A quem apresenta uma pretensão cumpre provar os fatos constitutivos; a quem fornece a exceção cumpre provar os fatos extintivos ou as condições impeditivas ou modificativas”<a href="#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a>.
Seguindo essa lógica, caberia ao suspeito comprovar violações como, por exemplo, o uso de coação pela polícia para conseguir uma confissão, diante da formulação de uma ação contra o Estado. Entretanto, a Corte opera uma inversão no ônus da prova, atribuindo ao detentor do monopólio da força o ônus de comprovar que não recorreu a ela para exercer seu direito punitivo.
Percebe-se que, em um contexto de disputa de poder entre o Estado buscando manter sua autoridade e o indivíduo buscando reservar seus espaços de liberdade, a Corte profere uma decisão limitadora da força do Estado frente ao indivíduo. Uma importante atuação do Poder Judiciário no combate à violência policial, não se atendo apenas a fase judicial, porém declarando a incidência dos direitos fundamentais para além das fronteiras do processo. Há extrema importância dessa atuação para a saúde processual, visto que comprometer o início da persecução criminal com o vício da confissão poderá comprometer todo trâmite subsequente, cerceando a possibilidade de um julgamento justo.
Ademais, Miranda, mesmo alcançando uma decisão favorável da Corte, ao ser submetido a novo julgamento, com a exclusão da confissão como prova, foi condenado a mesma pena do primeiro julgamento, devido a novas provas lícitas utilizadas no processo.
A semelhança da pena cominada aos crimes cometidos não evidencia uma ineficácia da decisão da Corte dos EUA, pois as novas provas apresentaram-se como suficientes para comprovar a autoria dos crimes. Entretanto, no segundo julgamento não havia vícios que poderiam comprometer o processo, e Ernesto foi condenado de forma justa pelo que cometeu, sem violações. Os fins, nesse contexto, não justificam os meios. O mesmo fim, porém, com a gritante diferença de um processo viciado e um processo justo.
No Brasil, nossa tradição jurídica adotou os Avisos de Miranda, sem desenvolver o instituto de forma fidedigna à tradição norte-americana. A Constituição Federal de 1988 preconiza, no art. 5°, inciso LXIII, que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”<a href="#_edn3" name="_ednref3">[iii]</a>. Em 1999, o ministro, do Supremo Tribunal Federal (STF), Sepúlveda Pertence, declarou brilhantemente, em voto no Habeas Corpus n. 78.708, que:
O direito à informação da faculdade de manter-se silente ganhou dignidade constitucional – a partir de sua mais eloquente afirmação contemporânea em Miranda v. Arizona (384 US 436 1966), transparente fonte histórica de sua consagração na Constituição brasileira – porque instrumento insubstituível da eficácia real da vetusta garantia contra a auto-incriminação - nemo tenetur prodere se ipsum, quia nemo tenere detegere turpitudinem suam -, que a persistência planetária dos abusos policiais não deixa perder atualidade.<a href="#_edn4" name="_ednref4">[iv]</a>
Como se depreende do trecho do voto, a efetiva vedação ao suspeito produzindo prova contra si mesmo, objetiva submeter a fase policial ao escrutínio da Constituição, assegurando os direitos dela decorrentes. Logo, recepcionava-se no âmbito judicial a decisão da Corte norte-americana, reconhecendo a violência institucional presente no país.
Diante dessa adoção, houve reforma do Código de Processo Penal (CPP), em 2003. Até o mencionado ano, o dispositivo autorizava, no artigo 186, a interpretação do silêncio em desfavor do réu. Entretanto, o STF declarou a inconstitucionalidade do artigo, entendendo que não fora recepcionado pela CRFB/1988, culminando na reforma do CPP.
Recentemente, o STF fez menção ao Aviso de Miranda, em agravo regimental no recurso ordinário em habeas corpus 192.798<a href="#_edn5" name="_ednref5">[v]</a>, declarando nulidade da condenação de associação ao tráfico, fundamentada em uma confissão informal, ouvida pelos agentes da polícia, sem a diligência de informa os direitos dos suspeitos. Ao excluir a confissão das provas verificou-se a impossibilidade de condenar o sujeito a conduta, permanecendo apenas a condenação por tráfico de drogas, cujas provas eram concretas e lícitas.
Ainda que se verifique a atuação da Corte nesse sentido, de ampliar a proteção constitucional ao suspeito, percebe-se a valorização dada a confissão como prova. Isso porque, contrariamente à tradição da Corte dos EUA, quanto a comprovação da violação dos Avisos de Miranda do indivíduo custodiado, no Brasil não se aplicou a inversão do ônus da prova.
Dessa forma, cabe a defesa do suspeito reunir provas que confiram veracidade aos fatos apontados, e há decisões dos magistrados que ratificam a utilização de uma confissão que possa está comprometida pela sua produção. Nesse sentido decidiu a Corte no HC 73 565:
“Habeas Corpus”: Fragilidade de provas da autoria: alegação de tortura: falta de prova. Depoimento de testemunha prestado na audiência sem a prestação do réu. Deficiência do patrocínio da causa: inexistência para configurarem a anulação da decisão. Confissão do delito na fase do inquérito policial: se seguida da confissão, apura-se que na instrução da ação há elementos suficientes para a formação do convencimento do Juiz acerca da materialidade do delito, é desse e nesse conjunto probatório que se completa a prova. Alegação de tortura que em nenhum momento se provou não há como poder ser considerada: “o que não está nos autos, não está no mundo”. (...) “Habeas Corpus” conhecido, mas indeferida a ordem. <a href="#_edn6" name="_ednref6">[vi]</a>
É notável no trecho citado a desconsideração da alegação de tortura pelo réu sob justificativa da ausência de prova, que o próprio réu, na posição de vulnerabilidade perante o poder estatal, deveria produzir. Uma decisão que parece ignorar não só o réu, mas também a violência institucional vivenciada no Brasil. Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direito Humanos, em 2019, foram registradas mensalmente uma média de 1486 denúncias de violência policial.
Além disso, o relatório apresenta que 5,16% das violações ocorreram nas delegacias policiais, 23,46% nas ruas e 0,20% na casa do suspeito. Nesse cenário de incontestável abuso da posição de autoridade, o Poder Judiciário deveria percorrer o caminho de proteção do ser humano. É evidente, diante da realidade, que houve a atuação incluindo os Avisos de Miranda nas abordagens e interrogatórios; entretanto, como atribuir ao suspeito o ônus de provar que o Estado usou da força, violando suas garantias, poderia assegurar essa proteção?
Ainda que, posteriormente, na fase processual, o réu tenha a garantia de permanecer em silêncio e ter assistência do advogado, a prova produzida mediante tortura ou coação, sem se lhe reconhecer a possibilidade do sujeito de comprovar a violação, compromete o andamento justo do processo.
Desse modo, o STF como guardião da Constituição, legitima a violação ao rol de direitos consagrados na Carta Magna, dado que a realidade brasileira não permite inferir que um custodiado esteja apenas querendo enganar o magistrado com suas alegações de violação. Apegar-se a isso é fechar os olhos para a clara violência institucionalizada e cercear os direitos fundamentais a todos os cidadãos, independentemente de sua condição como suspeito de um crime.
Além disso, o alto valor conferido as informações produzidas na fase de inquérito, pelos magistrados, deveria ser acompanhado da segurança de produção dessas informações sob as mesmas condições, determinadas pela Constituição, para a fase processuais. Isso porque a confissão é utilizada posteriormente para delimitação da culpa do réu. Partindo-se da presunção de inocência, a condenação deve ser realizada dentro de um garantismo processual. A falta dessas garantias na fase de inquérito deveria culminar na desconsideração dessas informações como prova.
Lamentavelmente, o posicionamento jurisprudencial da Suprema Corte brasileira não demonstra mudanças nesse sentido, evidenciando a necessidade de maior consideração da importância do judiciário no dia-a-dia dos indivíduos que podem ser submetidos a autoridade policial. Além disso, esse cenário permite a existência de sentenças condenatórias proferidas e validadas que tenham sido construídas por intermédio de ações violadoras de garantias.  Sendo assim, não se deve olvidar que a extensão das garantias constitucionais à fase de inquérito policial, no Brasil, mostra-se com a necessidade de amadurecimento e maior desenvolvimento.
A jurisdição constitucional é um importante instrumento de aplicação da Constituição, logo sua utilização de maneira mais efetiva pela STF na fase de inquérito poderia provocar uma alteração significativa no padrão de atuação da polícia. Atribuir o ônus da prova a violação ao Estado, ao invés do indivíduo, poderia denunciar e escancarar agentes que se utilizam do exercício da função e da autoridade conferida a eles para suprimir liberdades e direitos, operando em favor do que é lícito. A tradição norte-americana funciona com exemplo da possibilidade de adotar essa solução.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> MIRANDA V. ARIZONA, 384 U.S. 436, 1966. Disponível em: &lt; https://supreme.justia.com/cases/federal/us/384/436/#tab-opinion-1946133&gt;. Acesso em set. 2021.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[iii]</a> BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[iv]</a> BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. Acordão 09 mar. 1999.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[v]</a> BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no recurso ordinário em habeas corpus. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Acordão 24 fev. 2021.
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[vi]</a> BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus. Relator: Ministro Mauricio Correa. Acordão 10 jun. 1996.

A recepção do caso Miranda Vs. Arizona no Brasil

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JOTA

Extensão das garantias constitucionais ao investigado no inquérito policial