Thúlio Guilherme Nogueira

Luiz Augusto Rutis

O desvio de função dos órgãos de controle tornou-se recorrente sob o pretexto do pragmatismo. Um exemplo recente é a decisão do STF que permitiu às guardas municipais exercerem policiamento preventivo e comunitário, rompendo a divisão tradicional com a Polícia Militar<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. A justificativa? Dificuldades na segurança pública. Mas delegar funções sem preparo técnico só gera novas distorções.
Na persecução penal, um movimento semelhante avança silenciosamente. A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/receita-federal">Receita Federal</a>, cuja competência deveria se restringir à administração e fiscalização de tributos, tem assumido atribuições típicas de uma polícia judiciária, extrapolando sua atuação para além dos crimes contra a ordem tributária.
<h3><a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=cta-site&amp;utm_medium=site&amp;utm_campaign=campanha_tributos_q2&amp;utm_id=cta_texto_tributos_q2_2023&amp;utm_term=cta_texto_tributos&amp;utm_term=cta_texto_tributos_meio_materias">Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF</a></h3>
A Portaria 514, de 2025<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, formaliza essa distorção ao impor aos auditores fiscais o dever de reunir provas para embasar denúncias criminais, inclusive em delitos não tributários. Trata-se de uma subversão da lógica da justiça penal e uma fragilização de garantias fundamentais.
Duas alterações da portaria são especialmente alarmantes:
<ul>
<li>A Receita Federal passa a ter o dever de angariar provas suficientes para a formulação imediata de denúncias nos “casos mais relevantes”.</li>
<li>Sua atuação investigativa não se restringe mais aos crimes tributários, mas se estende a delitos contra a Administração Pública Federal e crimes de ação penal pública incondicionada.</li>
</ul>
Com isso, a Receita Federal se afasta de suas funções institucionais, previstas no artigo 194 do Código Tributário Nacional (CTN), que delimitam sua competência ao âmbito administrativo e à fiscalização da legislação tributária.
Mais do que isso, assume um poder investigativo maior que o conferido pela Constituição às polícias judiciárias (art. 144, §1º, IV, e §4º da CF). E aqui reside a verdadeira distorção: o órgão, que já detém acesso irrestrito a dados fiscais de todos nós, passa a ser o responsável pela investigação.
A Receita já acessa dados sigilosos sem autorização judicial, consolidando-se como um atalho para driblar controles e fragilizar garantias processuais. As consequências são previsíveis: o órgão se consolida como um atalho institucional para investigações criminais que buscam driblar o controle judicial, operando fora dos limites constitucionais e minando garantias processuais.
<h3>Um problema que não começou agora</h3>
Mesmo antes dessa ampliação de poderes, a chancela automática das conclusões fiscais já era alvo de críticas. Como já destacamos anteriormente<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, nos inquéritos que tratam de crimes contra a ordem tributária (Lei nº 8.137/1990), há um caminho administrativo esperado e automático, onde as agências penais simplesmente validam as conclusões do fisco, sem qualquer análise independente.
E isso quando a Receita Federal ainda estava restrita ao seu papel tradicional, voltado exclusivamente para delitos tributários. Ou seja, dentro do seu campo legítimo de atuação.
O sistema penal brasileiro foi estruturado para que a autoridade fiscal atuasse como um primeiro filtro, indicando a relevância administrativa da conduta como um possível indício de relevância penal. Até porque, se não há relevância administrativa, não pode haver relevância penal.
Mas essa filtragem deveria ser reexaminada pela Polícia e pelo Ministério Público. O que não ocorre na prática.
O resultado? Indiciamentos, denúncias e até condenações temerárias, baseadas em análises de natureza penal feitas por um órgão concebido para exercer uma função meramente administrativa.
Se o modelo tradicional já era distorcido, o que esperar agora que a Receita atua em crimes sem relação direta com tributos?
A expansão do poder investigativo da Receita Federal é a gasolina jogada nas chamas.
<h3>O que fazer diante desse cenário?</h3>
A ampliação do poder investigativo da Receita compromete a justiça penal e deve ser contida.  Algumas medidas precisam ser adotadas de forma imediata:
Primeiro, como já sinalizado<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, é essencial reafirmar que a Receita só pode atuar em investigações criminais quando houver i) pertinência temática e ii) finalidade fiscal<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Fora dessas hipóteses, o máximo que a RFB pode fazer é encaminhar o que tiver sido encontrado de forma fortuita ao órgão ministerial. Nessa esteira, a Portaria nº 514 já nos parece ilegal e deve ser revogada. Outrossim, o STJ já ressaltou que “... a Receita Federal do Brasil não é órgão incumbido da realização de investigação criminal (...).” (AgRg no RHC nº 167.539/SP, Rel. MIn. Messod Azulay Neto, julgamento em 12.12.23).
Segundo, deve-se questionar as implicações penais das conclusões administrativas da Receita Federal. O simples reporte de uma infração pelo órgão não equivale à existência de uma conduta penalmente relevante.
Cabe ao Ministério Público e à Polícia Judiciária realizar uma filtragem das conclusões fiscais antes do oferecimento de denúncias. Igualmente, o Judiciário não pode tomar como definitivas as interpretações do fisco, seja para fundamentar medidas cautelares ou embasar decisões de mérito.
Terceiro, é fundamental coibir manobras das agências penais que utilizam a autoridade fiscal como meio de contornar a necessidade de chancela judicial na coleta de dados sigilosos. Ao contrário da Polícia e do Ministério Público, a Receita Federal não precisa de autorização judicial para apreender documentos e acessar determinadas informações. Essa prerrogativa torna tentadora a instrumentalização do órgão para obter provas que, em um procedimento investigativo regular, dependeriam de autorização judicial.
Um exemplo foi analisado pelo STJ no AgRg no HC nº 676.091/PA, onde a polícia, em vez de solicitar a devida autorização judicial para busca e apreensão, acionou a Receita Federal para conduzir uma suposta fiscalização administrativa. O STJ anulou a persecução, reconhecendo que a manobra violava garantias processuais ao contornar a autorização judicial.
Quarto, o STF precisa especificar os limites da atuação da Receita Federal em crimes não tributários. A tese fixada no Tema 990/STF validou o compartilhamento de informações pela Receita em delitos tributários, mas não tratou da extensão desse poder em crimes comuns. O STJ já reconheceu essa distinção, ao decidir que o Tema não pode ser aplicado indistintamente a qualquer comunicação feita pela Receita Federal: “Esta Corte procedeu ao distinguishing para não aplicar a tese de repercussão geral nº 990 a casos em que não há investigação de crimes tributários.” (EDcl no AgRg no HC n. 234.857/RS, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Quinta Turma, julgado em 22/2/2022, DJe de 25/2/2022.
Enfim, se a Receita caminha para se tornar um "superórgão" investigativo, é essencial frear essa distorção antes que se normalize. O desrespeito aos limites institucionais não fortalece a justiça penal, apenas fragiliza garantias fundamentais.
O combate ao crime exige instituições fortes e delimitadas, não improvisos que comprometem garantias e distorcem a justiça penal.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/03/07/apos-stf-permitir-funcoes-de-policia-prefeituras-pelo-brasil-se-movimentam-para-ampliar-o-papel-das-guardas-municipais.ghtml">https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/03/07/apos-stf-permitir-funcoes-de-policia-prefeituras-pelo-brasil-se-movimentam-para-ampliar-o-papel-das-guardas-municipais.ghtml</a>. Acesso em 12/03/2025.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Link portaria: <a href="http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=142967">http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=142967</a>. Acesso em 12/03/2025.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2023-jul-03/chagase-rutis-intersecao-entre-direito-penal-tributario/">https://www.conjur.com.br/2023-jul-03/chagase-rutis-intersecao-entre-direito-penal-tributario/</a> Acesso em 13/03/2025.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2025-fev-05/quando-a-receita-se-torna-policia-lacunas-deixadas-pelo-stf-no-julgamento-do-tema-990/">https://www.conjur.com.br/2025-fev-05/quando-a-receita-se-torna-policia-lacunas-deixadas-pelo-stf-no-julgamento-do-tema-990/</a>. Acesso em: 12/03/2025.<a href="#_ftnref5" name="_ftn5"></a>

35492010245_8eb1f66038_k

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Por que se insiste em colocar a Receita Federal em um lugar que não é o dela?

A Receita Federal não é polícia, mas querem que seja

Por que se insiste em colocar a Receita Federal em um lugar que não é o dela?