Direito Penal

A questão do ato de ofício

Diálogo dogmático que propomos enfrenta um tortuoso cenário, movido por aspirações de corporações punitivistas

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A desnecessidade do “ato de ofício” no tocante à imputação de corrupção passiva ilustra o ativismo punitivista que se tenta implantar no Brasil. A tese remete a uma acentuada tensão, cuja expressão se encontra à margem da legislação.

O Supremo Tribunal Federal firmou, no bojo da Ação Penal n. 470, entendimento majoritário1 de que o ato de ofício é elementar para realização do injusto de corrupção passiva. A doutrina segue o mesmo lado, destoante, notadamente, quando à necessidade de determinação ou não do ato de ofício.

Sem grandes percalços, todavia, o Ministério Público e a polícia judiciária ativaram – indistintamente – uma estratégia midialógica cujo interesse era reverter o entendimento da Corte Constitucional, aduzindo ter havido entendimento no sentido de ser prescindível o ato de ofício para consumação do crime. Trata-se de fundar uma hermenêutica programática que atende, unicamente, seus interesses corporativos. Costurava-se, assim, uma empreitada midiática, utilizando-se dinâmicas interativas e comunicacionais nos vários planos da vida pública, cujo interesse é expandir o tipo penal inscrito no Art. 317 do Código Penal, sob pena de não haver combate efetivo à impunidade.

O que se tem, em verdade, é uma tentativa de ampliar o escopo do injusto de corrupção passiva, aduzindo se tratar de crime de perigo abstrato. Ora, não podemos concordar, pois não há na conduta típica uma transposição de barreiras de proteção, fulcral para um estado de perigo, mas uma efetiva lesão do bem jurídico. Cabe alertar que o injusto penal, nos dizeres do mestre Juarez Tavares2, serve para delimitar o poder punitivo estatal e não o contrário.

O certo é que o injusto penal deve preencher todos os elementos típicos apontados na lei, numa intelecção conjuntiva. O caput do dispositivo preconiza: “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.

Explico, a expressão “em razão da função” vincula o sujeito ativo do delito ao exercício dos seus poderes funcionais. Também, que o exercício desse poder tenha sido motivado por uma vantagem indevida solicitada, recebida ou prometida.

O ato de ofício, portanto, advém das específicas atribuições da função pública, legalmente determinadas. Caso contrário, estaremos diante de uma lei penal em branco3, carente de preenchimento normativo.

Outro ponto crítico é a expressão “em razão da função, mesmo que antes de assumi-la”. O que a lei alcança, todavia, é a permissão de se operar a dilatação temporal da conduta, registrando, exclusivamente, o marco inicial do iter criminis, o que equivale dizer que o injusto penal se perfectibiliza, somente, após a negociação da vantagem indevida, mediante definição clara do ato de ofício vinculado. Mais claro, é necessário ocupar função pública, ou ter certeza de que ocupará em um futuro breve, e deter poderes relativos a ela para haver incidência da corrupção passiva.

Sem embargos, outra manobra hermenêutica deve ser evitada. Sustentou, o Ministério Público Federal, na ação penal nº. 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, que tramitou na 13º Vara Federal de Curitiba: “h) que a consumação dos crimes de corrupção independe da efetiva prática de ato de ofício pelo agente público; i) que não é necessário que a vantagem indevida esteja relacionada a um ato de ofício determinado”. Igualmente, contem na sentença o seguinte trecho: “A efetiva prática de ato de ofício ilegal é causa de aumento de pena, não é exigido para a tipificação dos crimes dos arts. 317 e 333 do CP”. Ora, o texto legal é autoexplicativo e autossuficiente, logo, não permite abstração.

Prescreve o §1º do art. 317 do Código Penal que a pena deverá ser aumentada em 1/3 se a vantagem indevida promover o retardo, a omissão ou a prática ato de ofício infringindo dever funcional. É evidente, o crime de corrupção passiva simples (caput) e a corrupção passiva qualificada se diferenciam pela infração de dever legal e não pela inexistência do ato de ofício, que é prevalente nas duas formas. A capitulação penal prescreve, apenas, causa de aumento para os atos de ofício eivados de desvio ou abuso.

O conteúdo do injusto da corrupção passiva condiz com a existência da vantagem indevida4 vinculada ao ato de ofício, numa relação simbiótica. Ao contrário, se admitirmos que o ato de ofício é apenas uma causa de aumento, estamos atestando haver uma posição entremeada pelo resultado, o que resultaria classificar o crime como material.

O ato de ofício deve ser vinculado às atribuições do agente público, ao exercício dos poderes administrativos inerentes à função. O ato de oficio requer, portanto, ação específica e focal, o que impede a absorção do ato de ofício indeterminado ao injusto.

O preenchimento do injusto deve considerar a natureza da conduta, cuja ação pertence a uma classe de atos vinculados. O ato de ofício, ainda, deve restar pendente5, para que a vantagem indevida acrescente risco ao bem jurídico protegido.

A investigação persecutória deve mirar a vocação do ato de ofício, o que ultrapassa a subjetividade do autor, evitando-se, doravante, a inaceitável imputação objetiva. É nesse sentido o importante precedente da Suprema Corte Americana, no caso Robert F. Macdonnel x USA, de 2015. Naquela ocasião, o tribunal entendeu não haver ato de ofício capaz de preencher o ilícito penal. Assentou que o ato de ofício deveria consistir em algo específico, que traduz uma “questão, matéria, causa, processo, procedimento ou controvérsia6“, inseridas dentre as atribuições do poder governamental exercido.

Solução semelhante se encontra no art. 439 do Código Penal Espanhol, que prescreve a vinculação da conduta típica a um “contrato, assunto, operação ou atividade o qual deve intervir em razão do seu cargo7“.

É nesse sentido que a taxatividade legal devem ir, determinar quais condutas traduzem o ato de ofício típico. Cumulativamente, que haja um esforço legislativo para dispor na lei, claramente, quais as condutas proibidas. Antes disso, a interpretação deve ser restrita.

Para as notas finais, cabe salientar que o diálogo dogmático que propomos enfrenta um tortuoso cenário, movido por aspirações de corporações punitivistas, que almejam a expansão do direito penal. Precisamente, é contra esse movimento autoritário que devemos remar.

 

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1 Filiamo-nos à pesquisa do professor Gustavo Quandt, introduzidos na obra “Algumas Considerações sobre os crimes de corrupção ativa e passiva” (2014).

2 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal / Juarez Tavares. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. Pág. 161.

3 Horta, Frederico. Elementos normativos das leis penais e conteúdo intelectual do dolo: da natureza do erro sobre o dever extrapenal em branco / Frederico Horta. 1 ed. São Paulo: Marcial Pons, 2016, pág. 84.

4 Crime e Política: Corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito / Organização Alaor Leite, Adriano Teixeira. – Rio de Janeiro : FGV Editora, 2017. pág. 19.

5 O ato de ofício deve ser futuro e determinado, o que permite a vinculação com a vantagem indevida prévia.

6 Foi aplicada ao caso a 18 U.S.C. § 201 – U.S. Code – Unannotated Title 18. Crimes and Criminal Procedure § 201. Bribery of public officials and witnesses.

7 Art. 439 do Código Penal Espanhol: “La autoridade o funcionário público que, debiendo intervenir por razón de su cargo en cualquier classe de contrato, asunto, operación o actividad, se aproveche de tal circunstancia para forzar o facilitarse cualquier forma de participación…”