Rony Vainzof

Primeiramente, manifesto o mais absoluto e sincero respeito às opiniões favoráveis à publicação do livro Minha Luta no Brasil, tanto dentro da comunidade judaica, como fora dela, pois a sua vedação é de extrema complexidade jurídica, diante de colisões de princípios constitucionais.
Ainda, por mais que o assunto seja extremamente passional para as vítimas do nazismo, apesar da difícil tarefa, busquei ao máximo refletir sobre o tema de forma racional, visando alcançar conclusões sóbrias.
O primeiro ponto de reflexão para a discussão é a liberdade de expressão. Sobre este aspecto, ao longo de suas 600 páginas, o livro incita um ódio visceral, não só contra os judeus, mas também contra ciganos, negros, homossexuais, entre outras minorias. Sustenta a existência de uma raça superior às demais, pregando, portanto, o extermínio de outros seres, que não os de “raça pura”. Isso é ilegal e inadmissível, diante do fundamento da nossa constituição prezar pela dignidade da pessoa humana, assim como de lei infraconstitucional definir como sendo ilícito conteúdos resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. No mesmo sentido, conteúdos envolvendo pornografia infantil, instigação ao suicídio, entre outros, também são ilícitos e, como tais, vedados.
No paradigmático caso Ellwanger, julgado em 2003 pelo nosso Supremo Tribunal Federal, que também discutia a publicação de livro preconceituoso, tivemos a seguinte lição extraída da ementa do acórdão: “Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País.” (HC 82424 RS).
Superada esta questão, por ser considerado um livro histórico, a vedação da sua publicação feriria o direito de acesso à informação. Diante do princípio da proporcionalidade, necessário avaliar a adequação e a necessidade de certa medida, bem como, se outras menos gravosas aos interesses sociais não poderiam ser praticadas.  Assim, se de um lado nós temos o direito à informação, por outro não podemos esquecer que a publicação do repugnante livro fere frontalmente à memória das vítimas do Holocausto, que foi fundamentado nas doutrinas lá estabelecidas por seu autor, assim como o sentimento dos sobreviventes de tais atrocidades.
Ainda, não podemos ignorar e menosprezar o conteúdo da “bíblia nazista” e o que ele motivou, pois assim como foi utilizado como doutrinação do ódio há menos de 90 anos, poderá se tornar novamente um manual da intolerância, ainda mais em um momento de polarização radical tão grande no Brasil e no mundo. Infelizmente, presenciamos no Brasil ataques físicos e morais à negros, homossexuais, judeus, entre outros seres humanos. Até mesmo uma pequena garota foi apedrejada simplesmente por estar saindo de uma cerimônia de candomblé.
A permissão legal da publicação da obra poderá facilitar a expansão da ideologia nazista, o que representa um perigo muito grande, mesmo no Brasil. Como vivemos em sociedade, temos direitos e deveres. Na busca do convívio harmônico, muitas vezes o Estado precisa agir preventivamente diante do potencial lesivo de determinada conduta em sociedade, mesmo à contragosto de muitos. As estradas têm limites de velocidade, impedindo os cidadãos de dirigirem na velocidade que quiserem. Somos obrigados a utilizar cintos de segurança, por mais que estejamos lidando com a nossa própria vida. Portar ilegalmente uma arma é crime, independentemente do seu resultado, pois há um perigo eminente, de alguém que não tenha condições psicológicas ou técnicas, de causar um dano maior em detrimento da possível liberdade que um cidadão devesse ter de portá-la para se defender. Dirigir embriagado é crime, independentemente do seu resultado, também diante do potencial lesivo da referida conduta. Assim, 600 páginas de um livro pregando o preconceito e a soberania de uma raça superior em detrimento de outras, também representa um potencial lesivo enorme, passível de vedação pelo Estado.
Por fim, por mais que a livre circulação do livro possa servir, para alguns, de base pedagógica para evitar que o Holocausto ocorra novamente, o seu conteúdo já foi e felizmente ainda é exaustivamente estudado pela academia, motivo pelo qual diversas outras obras sobre ele podem ser avaliadas pelos pesquisadores. Ainda, penso que a melhor pedagogia para se entender o que ocorreu em razão do nazismo é avaliar os seus aterrorizantes resultados e não as suas promessas, constantes no livro. Para se estudar a patologia da pedofilia, não precisa ser praticado o crime de pornografia infantil, que tipifica a publicação de tais conteúdos. Assim, para se entender o Holocausto, que jamais pode ser esquecido, também não seria necessária a circulação e a comercialização da “bíblia nazista”, salvo melhor juízo.
Hitler foi o responsável pelo assassinato de milhões de seres humanos, entre judeus, negros, ciganos, homossexuais e deficientes físicos. Há 71 anos, tropas soviéticas entraram no campo de extermínio nazista de Auschwitz, na Polônia, para liberar os poucos sobreviventes, pois os nazistas vinham esvaziando o campo no qual mais de 1 milhão de pessoas foram exterminadas. O mundo e o Brasil não devem esquecer o que aconteceu (e ainda acontece) na Europa para que tudo aquilo não se repita. A intolerância não pode ser tolerada, seja contra os judeus ou contra qualquer outro grupo, e o livro “Minha Luta” poderá fazer com que o ódio nasça, se inexistente, cresça, se existente, e se exteriorize, se já impregnado, além de desrespeitar à memória das vítimas e dos sobreviventes do Holocausto.
Espero que em um futuro próximo, mais harmônico e menos intolerante, não seja necessária a intervenção do Estado para questões como esta, entre outras tantas, e que possamos conviver pacificamente, independentemente da nossa etnia, cor, origem, religião, gênero ou opção sexual, pois raça só existe uma, a raça humana.

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JOTA

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