Roger Stiefelmann Leal

Paulo Fernando Mohn e Souza

<blockquote class="jota-article__citation">CONSIDERANDO que, no exercício da auto-organização e independência do Poder Legislativo, o art. 10 da Resolução do Congresso Nacional nº 1/2002 estabeleceu a prorrogação do prazo da eficácia das Medidas Provisórias sem necessidade de deliberação a respeito, não afastando, contudo, os poderes e a competência desta Casa Legislativa para o exercício da denegação da prorrogação deste período.</blockquote>
Este considerando, entre diversos outros, serviu de fundamento à <a href="https://static.poder360.com.br/2024/04/decisa-pacheco-desoneracao-municipios-pacheco.pdf">Decisão do Presidente do Congresso Nacional publicada no último dia 1º</a>, que prorrogou apenas parte da <a href="https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/161853">MP 1202</a>, de 28 de dezembro de 2023. Tal decisão implica significativa reorientação sobre aspecto essencial da tramitação das medidas provisórias, propondo novo equilíbrio entre os atores políticos envolvidos. Seu teor reforça o papel do presidente do Congresso ao lhe conferir o poder de decidir monocraticamente sobre a prorrogação do prazo de vigência de parte da medida provisória.
O texto constitucional, ao dispor sobre a questão, declara ser a medida provisória “prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período” (art. 62, § 3º). Mais adiante, determina que “prorrogar-se-á uma única vez por igual período a vigência de medida provisória que, no prazo de sessenta dias, contado de sua publicação, não tiver a sua votação encerrada nas duas Casas do Congresso Nacional” (art. 62, § 7º).
Por seu turno, a disciplina regimental sobre o tema (art. 10 da <a href="https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescon/2002/resolucao-1-8-maio-2002-497942-normaatualizada-pl.pdf">Resolução CN 1/2002</a>) estipula que, se a medida provisória não tiver sido votada nas duas Casas no prazo de 60 dias de sua publicação no Diário Oficial da União, “estará automaticamente prorrogada uma única vez a sua vigência por igual período”. Tal prorrogação automática, ainda segundo as mesmas regras, “será comunicada em Ato do Presidente da Mesa do Congresso Nacional publicado no Diário Oficial da União”.
Desde a vigência da Emenda Constitucional 32, de 11 de setembro de 2001, o transcurso do prazo inicial de 60 dias sem que tenha sido concluída a votação da medida provisória nas duas Casas do Poder Legislativo constituía o pressuposto de fato que fazia incidir a prorrogação automática. O transcurso do primeiro período de 60 dias ensejava a publicação de ato voltado a comunicar a prorrogação. O exame do conteúdo de tais atos corrobora a estrita observância dessa orientação. Limitavam-se a anunciar que o presidente do Congresso Nacional “<a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Congresso/apn-013-mpv521.htm">faz saber</a>” que a medida provisória “tem sua vigência prorrogada pelo período de sessenta dias”.
A prorrogação automática, assim, era meramente comunicada mediante ato de caráter declaratório, destituído, portanto, de teor decisório. A falta de sua publicação consistiria em mera irregularidade interna que não infirmaria a continuidade de sua vigência e tramitação. Seria, portanto, incabível que “o conteúdo da medida provisória” fosse “alterado quando do prolongamento do período de sua vigência”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Em face do estado de calamidade pública decorrente da Covid-19, em 2020 foi adotado o Ato Conjunto das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal nº 1, de modo a definir regime especial de tramitação para medidas provisórias. Ao dispor sobre a prorrogação dos prazos de vigência, tal Ato Conjunto determinou que, “havendo necessidade”, caberia “à Presidência do Congresso Nacional avaliar sua pertinência”. Muito embora fosse possível, nesse particular, cogitar de alguma mudança de orientação quanto ao caráter do ato que comunica a prorrogação, a prática sugere a manutenção do mesmo entendimento quanto à sua índole declaratória.
Com a decisão de 1º de abril, sinaliza-se reorientação sobre a concepção que vinha presidindo as prorrogações de medidas provisórias. São invocados pelo presidente da Mesa do Congresso Nacional “os poderes e a competência desta Casa Legislativa para o exercício da denegação da prorrogação deste período”. Trata-se de inovação em relação à prática legislativa de mais de 20 anos sob o regime da Emenda Constitucional 32/2001 e da Resolução CN 1/2002.
Para isso, vinculou-se a decisão sobre a extensão da prorrogação a uma espécie de poder de autotutela congressual de modo a evitar “uma etapa adicional e não prevista do processo legislativo, de verdadeira revisão da rejeição do veto”. No caso, a medida provisória teria, na parte não prorrogada, afastado disposições relacionadas à desoneração da folha de pagamentos de municípios com até 156.216 habitantes.
Tal desoneração havia sido aprovada em projeto de lei integralmente vetado pelo presidente da República. Esse veto, contudo, foi rejeitado pelo Congresso Nacional, dando origem à <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14784.htm">Lei 14.784</a>, de 27 de dezembro de 2023. No dia seguinte, o Executivo editou a MP 1202, que revogou partes dessa lei e voltou a onerar, inclusive, a folha daqueles municípios, do que resultou forte reação do Legislativo.
Em <a href="https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/01/pacheco-prorroga-mp-mas-exclui-reoneracao-de-municipios">nota divulgada</a> sobre a decisão de 1º de abril, o presidente do Senado afirma que não caberia à MP revogar tais disposições legais, “como se fosse mais um turno do processo legislativo”. Em outro considerando da decisão, reafirma que “o poder de editar medidas provisórias não pode ter o condão de frustrar prontamente uma decisão tomada pelo Poder Legislativo”.
Sustentou-se, ainda, haver similitude material entre o novo poder de denegar a prorrogação e a prerrogativa de devolver medidas provisórias ao Poder Executivo. Dois considerandos da decisão adotada trilham, na verdade, esse caminho. Num deles, afirma-se que o juízo da constitucionalidade sobre os dispositivos da MP não teria sido efetivado anteriormente em razão do prazo decorrente do princípio da anterioridade nonagesimal aplicável a alguns de seus dispositivos.
Em sequência, o outro argumenta que não há prazo para o exercício da competência da Presidência para impugnar proposições contrárias à Constituição, conforme o inciso XI do art. 48 do Regimento Interno do Senado.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Desse modo, aparentemente, a não prorrogação ocorreu como sucedânea da devolução, atribuindo-se ao presidente da Mesa do Congresso Nacional a competência de decidir monocraticamente sobre ela.
A prorrogação seletiva promovida, tomando como justificativa a prática de juízo de constitucionalidade acerca da MP, enseja diversos questionamentos. Propõe nova compreensão sobre a noção de “prorrogação automática”, ainda que o texto constitucional use a expressão “prorrogar-se-á”. Amplia, certamente, o espaço decisório do presidente do Congresso Nacional.
Tal provimento decisório, ademais, suscita dúvidas sobre seu alcance. No plano da tramitação legislativa, cumpre cogitar, naturalmente, se caberá à Comissão Mista que examina a MP apreciar, em seu parecer, o texto integral ou somente as disposições prorrogadas. Indagação semelhante há de se ventilar a propósito da deliberação no plenário de ambas as Casas Legislativas.
Na esfera normativa, cumpre saber se a não prorrogação equivale à rejeição da parte da MP. Decisão nesse sentido, afirmando-se a equivalência, acabaria por fazer cessar a vigência da parte não prorrogada, bem como impedir a reedição da medida na mesma sessão legislativa e eventual manutenção das relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência, caso não seja editado decreto legislativo. Nesse caso, estar-se-ia estabelecendo procedimento que permite ao presidente do Congresso Nacional decidir em substituição aos órgãos plenários de ambas as Casas Legislativas.
A decisão de 1º de abril de 2024, na prática, converte o ato de mera comunicação da prorrogação automática das medidas provisórias em forma de substantivo controle parlamentar sobre suas disposições. Mais arrojada que a prática de devolver medidas provisórias, é fórmula que pretende conferir ao presidente do Congresso Nacional poderes para — em meio à tramitação legislativa — restringir o âmbito de apreciação das demais instâncias parlamentares e atuar no plano normativo como órgão competente para rejeitar parte da medida provisória já vigente há 60 dias, restaurando, assim, disposições por ela revogadas. Resta saber, contudo, o alcance que se reconhecerá a tais atos decisórios pelas demais esferas de poder, sobretudo em sede legislativa e judicial.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2016, 11ª ed, p. 951.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Esse é o embasamento recorrente das devoluções de medidas provisórias, que se vale do dispositivo do Regimento Interno do Senado, aplicado subsidiariamente nos termos do art. 151 do Regimento Comum do Congresso Nacional, na falta de previsão expressa.

Fachada do Congresso Nacional

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JOTA

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