Ana Carolina Cagnoni

A propriedade intelectual é área do direito que abarca inúmeros temas e questões altamente pertinentes da sociedade do século 21<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Softwares, marcas, patentes de todas as áreas tecnológicas, segredos de negócio, franquias, NFTs, direitos de autor e intérpretes, formatos de programa de televisão, direitos sob peças de design, expressões de publicidade, trade-dress, algoritmos... Todos estes temas encontram-se em maior ou menor medida regulamentados por diferentes leis e normativas vigentes no país, além de alguns tratados internacionais ratificados pelo Brasil que, portanto, incorporam adicionais disposições ao sistema jurídico em vigor.
Os direitos de propriedade intelectual, desta forma, não se limitam à Lei de Propriedade Industrial (Lei <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm">9.270/96</a>), que trata apenas de marcas, desenhos industriais, indicações geográficas, patentes e da concorrência desleal (incluindo desvio fraudulento de clientela ou violação de informações confidenciais).
Somam-se a estes as disposições da Lei de Direitos Autorais (Lei <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm">9.610/98</a>), que regulamenta boa parte da chamada “economia criativa” (pensemos no mercado audiovisual, editorial, fotográfico e cultural e nos setores econômicos relacionados); da Lei de Proteção ao Software (Lei <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9609.htm">9.609/98</a>), sobre proteção de programas de computador; da Lei de Proteção aos Cultivares (Lei <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9456.htm">9.456/97</a>), que define diretrizes para a proteção de variedade vegetal melhorada; da Lei de Biodiversidade (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13123.htm">Lei 13.123/15</a>), que define proteção sobre conhecimentos tradicionais; da Lei de Proteção à Topografia de Circuitos Integrados (Lei <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11484.htm">11.484/07</a>), dentre outras. Até as recentes <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lgpd-e-anpd-saiba-o-que-sao-e-entenda-as-diferencas-entre-a-lei-e-o-orgao-13042022">LGPD</a> (Lei <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm">13.709/18</a>) e o Marco Civil da Internet (Lei <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm">12.965/14</a>) tangenciam discussões sobre temas de propriedade intelectual.
No âmbito dos tratados multilaterais<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, constituem norma vigente a Convenção da União de Paris de 1883 (que dispõe sobre direitos relacionados a marcas, nomes comerciais patentes e concorrência desleal), a Convenção de Berna de 1886 (que dispõe de direitos de autor) e o TRIPS (tratado da Organização Mundial do Comércio sobre propriedade intelectual), dentre outros que lidam com matérias mais específicas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Trata-se, portanto, de vasta gama de normas jurídicas consolidadas na área de propriedade intelectual, cuja complexidade deve aumentar dada a importância do sistema para o desenvolvimento econômico e social do país. Comprovadamente, o crescimento econômico cada vez mais depende da inovação e do aprimoramento do conhecimento humano (knowledge-based economy) e setores que têm sua base protegida por direitos de propriedade intelectual (IP-intensive industries) são capazes de empregar pessoas com melhores empregos e gerar mais receita para suas economias<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Por isso, sistemas robustos de propriedade intelectual têm sido construídos por países em diferentes níveis de desenvolvimento para agir como ferramenta de atração e direcionamento de investimentos em inovação e no fomento da economia criativa<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. O Brasil, com a adoção da Estratégia Nacional de Propriedade Intelectual, está certamente rumando nesta mesma direção.
Contudo, quando se reflete sobre como se estrutura um sistema de propriedade intelectual robusto e eficiente, é necessário não apenas olhar para os marcos normativos estabelecidos (e sua adequação à realidade do país no tempo e no espaço), mas também para a forma como tais normas poderão ser postas à prova. Ou seja, é fundamental avaliar se o Poder Judiciário está adequadamente construído para responder às demandas e garantir segurança aos envolvidos no sistema de propriedade intelectual (titulares, concorrentes, órgãos do Estado) e previsibilidade à sociedade em geral.
Neste ponto, algumas reflexões se fazem necessárias.
Em primeiro lugar, o estudo da propriedade intelectual não faz parte do currículo básico das faculdades de direito brasileiras<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> e os exames aplicados aos futuros magistrados não contemplam, com raras exceções, leis que integram o regime de proteção à propriedade intelectual. Sem acesso à educação no curso de graduação e sem o incentivo de dominar tal matéria para alçar a magistratura, não é descabida a conclusão que, à maioria dos magistrados brasileiros, as normas sobre propriedade intelectual são desconhecidas.
Em segundo lugar, considerada a organização do Judiciário, demandas relacionadas à propriedade intelectual poderão ser propostas em três esferas distintas. A Justiça Federal tem competência, em especial, para deliberar processos que envolvam o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e suas decisões sobre direitos que lhe cabe avaliar e registrar. A Justiça do Trabalho (24 Cortes Regionais) tem competência para dirimir controvérsias relacionadas à propriedade intelectual no âmbito das relações de emprego<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
E, finalmente, a Justiça Estadual (27 entes federativos) tem competência para julgar casos “residuais” de propriedade intelectual, incluindo as alegações de infração de direitos. Para além desta complexa construção judiciária, há ainda competência da Justiça criminal para os crimes de propriedade intelectual e concorrência desleal tipificados em nossa legislação.
Em terceiro lugar, cada uma destas Cortes possui sistema próprio de organização de processos e jurisprudência e não há repertório unificado daqueles processos em que a discussão sobre propriedade intelectual é indispensável para sua resolução. Portanto, resta praticamente impossível aos magistrados construir conhecimento a partir de casos julgados e à sociedade compreender quais são os precedentes consolidados. Mesmo considerados os julgados das Cortes Superiores, a questão se mantém dificultosa dada a previsão constitucional que permite, em última instância e após longuíssimo caminho, ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>).
Consideradas, de um lado, a complexidade e variedade de direitos de propriedade intelectual e sua importância (crescente) para o desenvolvimento brasileiro e, de outro, as ponderações feitas sobre o Judiciário, é de se questionar se não há maneiras de melhor aproximar estes mundos.
Afinal, parece inegável que a confiança que se quer depositar no sistema de propriedade intelectual passa pela capacidade do país de adequadamente fazer cumprir a legislação (através de decisões judiciais bem fundamentadas, consistentes e céleres) e fazer conhecer qual interpretação é dada aos marcos normativos por aqueles que utilizam o sistema de propriedade intelectual. Tal previsibilidade atua positivamente no sistema, pois potenciais litigantes, sabendo das chances de sucesso perante as Cortes, estariam mais inclinados a buscar soluções consensuadas.
Avaliando experiências e discussões nacionais e internacionais, algumas possibilidades se abrem para enfrentar a questão. Quanto à necessidade de dar conhecimento à jurisprudência de propriedade intelectual, visando a construir conhecimento sobre precedentes de diferentes instâncias e facilitar a compreensão da interpretação judicial, existem iniciativas que propõem criar repertório unificado de precedentes.
Um exemplo é a plataforma WIPO Lex Judgements, criada em 2020<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, que tem por objetivo conferir acesso simplificado a decisões paradigmáticas de propriedade intelectual nos 23 países participantes, incluindo o Brasil. Da mesma forma, seria possível construir um sistema nestes moldes em que as decisões sobre propriedade intelectual fossem incluídas e organizadas conforme o direito de propriedade intelectual ou o dispositivo normativo aplicado<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Outra alternativa seria a possibilidade de implementação de instâncias jurisdicionais especializadas e exclusivas em propriedade intelectual. Diversos países (EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Holanda, China, Croácia, República Tcheca, Hungria, Lituânia, Polônia, Rússia) têm adotado, ao longo dos últimos anos cortes ou câmaras especializadas na matéria e devidamente estruturadas para tanto, muitas vezes com competência exclusiva de atuação e conselho de técnicos e especialistas para assistir os magistrados em suas decisões. Há também critérios específicos para seleção dos juízes, como comprovação de conhecimento e experiência em propriedade intelectual.
A ideia não é absolutamente original, dado que desde 2005 existe na Justiça Federal da 2ª Região varas e turmas (1ª e 2ª instância) que atuam na matéria. Contudo, sua competência não é exclusiva: tanto podem os litigantes, por diferentes razões, propor processos em outras Justiças Federais, quanto a dedicação dos magistrados do Rio de Janeiro concorre com outros temas (por exemplo, os desembargadores dividem a competência de propriedade intelectual com direito criminal e previdenciário).
Por fim, essa estrutura não alcança, como colocado, litígios que correm perante a Justiça Estadual e do Trabalho e, diante de todo o exposto, não se poderia supor que apenas estas varas e turmas da Justiça Federal fluminense seriam capazes de adequadamente responder aos processos sobre propriedade intelectual em curso no Brasil.
Esta possibilidade, diante das dificuldades estruturais claramente postas, precederia debates profundos sobre sua estruturação, alcance, localização, financiamento de recursos e capacitação, em especial. Recentemente, porém, estudo detalhado de elementos a serem considerados pelos países na implementação de cortes especializadas em propriedade intelectual foi concluído pelo Centro de Estudos em Direito Comercial da Queen Mary University de Londres, conforme publicação na Revista GRUR International da Universidade de Oxford<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
No estudo, foram traçados os elementos chave a serem considerados no contexto da implementação de cortes especializadas em propriedade intelectual, que se propõe a trazer eficiência ao sistema. Tal trabalho com certeza poderá auxiliar no debate brasileiro sobre os benefícios de especializar o Judiciário para os temas de propriedade intelectual do nosso século.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Pela definição da Organização Mundial da Propriedade Intelectual: “Propriedade intelectual é a soma dos direitos relativos às obras literárias, artísticas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico".
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disposições sobre propriedade intelectual são sempre parte substancial de tratados de livre comércio. No caso do tratado estabelecido entre Mercosul e União Europeia, a discussão sobre indicações geográficas foi substancialmente relevante.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Em especial o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (<a href="https://www.gov.br/inpi/pt-br/servicos/patentes/Como-proteger-patente-no-exterior/pct/tratado-de-cooperacao-em-materia-de-patentes-pct">PCT</a>) e o <a href="https://www.gov.br/inpi/pt-br/servicos/marcas/protocolo-de-madri">Protocolo de Madri</a> que estabelece cooperação entre países para registro internacional de marcas.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Conforme relatório ‘IPR-intensive industries and economic performance in the European Union Industry-Level Analysis Report’ do Escritório Europeu de Propriedade Intelectual (2019), indústrias sedimentadas em direitos de PI criaram quase 30% dos empregos da União Europeia dentre 2014-2016 e empregaram 63 milhões de pessoas, refletindo em 45% do PIB do bloco.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Conforme o relatório “Intellectual Property: Powerhouse for Innovation and Economic Growth” elaborado pela International Chamber of Commerce (2011).
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> O currículo básico para a graduação em Direito inclui matérias de Direito Administrativo, Direito Civil e Direito de Processo Civil, Direito Comercial, Direito Constitucional, Direito Internacional, Direito Penal e Direito de Processo Penal, Direito Trabalhista e Direito Tributário, conforme diretrizes do MEC (<a href="http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/dir_dire.pdf">http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/dir_dire.pdf</a>. Recentemente houve aprovação de novos cursos mandatórios que incluem Direito Digital e Financeiro <a href="http://www.tce.ms.gov.br/noticias/detalhes/6128/mec-inclui-duas-novas-disciplinas-na-grade-curricular-das-faculdades-de-direito">http://www.tce.ms.gov.br/noticias/detalhes/6128/mec-inclui-duas-novas-disciplinas-na-grade-curricular-das-faculdades-de-direito</a>.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Como discussões sobre autoria e titularidade de direitos de propriedade intelectual sobre invenções e obras desenvolvidas no curso da relação de emprego. Exemplo recorrente é a discussão sobre autoria de desenvolvedores de software que teve julgamento recente do TST (<a href="https://www.tst.jus.br/-/banco-n%C3%A3o-ter%C3%A1-de-pagar-por-software-desenvolvido-por-empregado">https://www.tst.jus.br/-/banco-n%C3%A3o-ter%C3%A1-de-pagar-por-software-desenvolvido-por-empregado</a>).
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Mais informações sobre a plataforma disponíveis através do link <a href="https://www.wipo.int/pressroom/en/articles/2020/article_0022.html">https://www.wipo.int/pressroom/en/articles/2020/article_0022.html</a>. Atualmente a plataforma conta com 49000 documentos, acessíveis pelo link <a href="https://wipolex.wipo.int/en/main/judgments">https://wipolex.wipo.int/en/main/judgments</a> em inglês, espanhol, chines, francês, russo e árabe.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Experiências nacionais existem, mesmo que em menor complexidade, como o Observatório do Marco Civil da Internet (<a href="http://www.omci.org.br/">http://www.omci.org.br/</a>) e o Painel LGPD nos Tribunais (<a href="https://www.jusbrasil.com.br/static/pages/lgpd-nos-tribunais.html">LGPD nos Tribunais (jusbrasil.com.br)</a>.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> O texto integral está disponível a todos através do link <a href="https://academic.oup.com/grurint/article/71/3/206/6489393">Specialised IP Judiciary: What Are the Key Elements to Consider when Establishing or Reforming an Effective IP Court? | GRUR International | Oxford Academic (oup.com)</a>

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JOTA

A Justiça brasileira está adequadamente construída para responder às demandas de propriedade intelectual?

A propriedade intelectual e o Judiciário

O Judiciário brasileiro está adequadamente construído para responder às demandas de propriedade intelectual?