Aline Gonçalves
Sócia e responsável pelo Regulatório de Saúde do Bhering Cabral Advogados
Em meio ao cenário de desafios contínuos na área da saúde, surge no Congresso Nacional uma proposta que pode transformar significativamente o panorama dos planos de saúde no Brasil. A proposta em questão, que está em tramitação como parte do PL 7419/2006, visa alterar a Lei 9.656/1998, conhecida como Lei dos Planos de Saúde. O cerne da proposta é a introdução de um novo tipo de plano de saúde, denominado “segmentado”.
De acordo com o projeto, ainda não aprovado, os chamados planos segmentados representariam uma modalidade de produto com cobertura limitada, focada em procedimentos de baixa complexidade, o que, em tese, significaria maior previsibilidade e riscos menores para as operadoras, possibilitando a redução dos custos e dos riscos operacionais, associados aos tratamentos mais complexos.
Além de oferecer mensalidades mais atrativas, esse novo formato garantiria acesso a consultas e exames simples voltados à atenção primária. Esse enfoque poderia ter um impacto positivo ao contribuir para a prevenção de despesas futuras com tratamentos mais complexos e graves. Ao receber um tratamento preventivo e adequado desde o início, os pacientes estariam menos propensos a desenvolver complicações que exigiriam intervenções médicas mais dispendiosas e complexas.
Com base nesses ideais, o racional trazido pelo projeto de lei vem sendo defendido por muitos como saída para maior popularização da saúde suplementar, o que possibilitaria desafogar o Sistema Único de Saúde (SUS) e acolher milhões de brasileiros que chegam a aguardar meses ou até anos para ter acesso a consultas e exames básicos junto à rede pública.
Sobre as perspectivas desse cenário, o presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Paulo Rebello, tem reconhecido que a atualização da lei é inevitável. Em suas declarações, ele ressalta, contudo, que não há soluções mágicas para os desafios da saúde suplementar e enfatiza a importância de discussões mais amplas e profundas sobre o setor como um todo.
A promessa de um mercado mais inclusivo é, sem dúvida, atraente e animadora, especialmente em períodos eleitorais. No entanto, para aqueles que lidam diariamente com as complexidades de um sistema de saúde tão intrincado, surgem questões cruciais: o mercado está preparado para compreender o raciocínio por trás da contratação de produtos com coberturas limitadas, voltadas apenas para procedimentos de baixo custo e complexidade? Os beneficiários estão prontos para enfrentar as nuances das diferentes modalidades de produtos disponíveis e respeitar as limitações contratuais estabelecidas?
É preciso considerar que mudanças normativas que permitam a comercialização de novos modelos de produtos — mais simples, com menor valor e coberturas reduzidas — têm o potencial de aumentar o volume de reclamações e judicializações. Por isso, essas alterações não devem ser consideradas sem antes refletirmos sobre a necessidade de promover uma aproximação e melhorar a qualidade do diálogo entre operadoras e beneficiários.
De acordo com uma análise do Broadcast, baseada nos dados da ANS, o número de queixas de usuários de planos de saúde atingiu 34.947 em julho deste ano, marcando o maior volume registrado em 2024 e o terceiro maior da série histórica da agência. Esse patamar só fica atrás dos números de agosto e outubro de 2023, quando as reclamações somaram 36.816 e 35.766, respectivamente.
Entre os fatores que explicam esses números está o aumento das Notificações de Intermediação Preliminar (NIPs), frequentemente registradas como tentativas de obrigar as operadoras a fornecerem coberturas assistenciais não previstas no contrato. Essas situações costumam resultar em ações judiciais, o que contribui para o crescimento das estatísticas de judicialização no setor.
Engajar o beneficiário para que ele entenda claramente o que está sendo contratado e compreenda que possuir um plano de saúde não significa ter cobertura integral e irrestrita para todas as necessidades é talvez uma das demandas mais urgentes do setor. Esse esforço deveria preceder ou, pelo menos, acompanhar o movimento de “modernização” da Lei 9.656/98.
É crucial entender que a falta de informação está inserida em um contexto em que as operadoras são frequentemente vistas como vilãs do mercado. Esse cenário alimenta a desconfiança, prejudica a prestação dos serviços e cria obstáculos para a evolução do próprio sistema.
O ambiente de desconfiança estabelece barreiras na relação entre consumidores e operadoras, impedindo que os beneficiários – destinatários finais dos serviços – compreendam aspectos essenciais, como o raciocínio por trás do rol de coberturas e sua importância para o equilíbrio econômico do sistema, além da forma como o preço das mensalidades é calculado.
Nesse mesmo contexto, é essencial destacar com mais intensidade a importância do papel desempenhado pelos corretores de planos de saúde. São esses profissionais que têm a responsabilidade de orientar os consumidores previamente sobre as principais características das diferentes modalidades de produtos, recomendando o serviço que melhor atenda às suas necessidades e não apenas o que lhe renderá o maior prêmio.
O comprometimento desses agentes tem o potencial de contribuir significativamente para a conscientização dos consumidores, evitando futuramente reclamações e demandas desnecessárias decorrentes da falta de clareza nas informações.
Essa breve reflexão, que considera apenas alguns aspectos desse mercado tão complexo, nos leva a concluir que o atual cenário de mudanças legislativas, com grandes promessas de “modernização” do setor, não pode ocorrer sem um profundo amadurecimento do mercado.
A criação de novas perspectivas sobre o que a sociedade espera e entende a respeito do papel e das responsabilidades das operadoras de planos de saúde em suas relações contratuais é uma questão prévia e essencial para que o sistema possa evoluir em direção a um modelo mais inclusivo.
A discussão em torno da aprovação do PL 7419 não representa o fim dos desafios ou a solução definitiva. Pelo contrário, deve ser vista como um passo para estimular a sociedade a refletir sobre o sistema de saúde que desejamos construir. É importante entender que garantias integrais e irrestritas não são compatíveis com o ideal de um sistema de saúde que seja equitativo e, principalmente, inclusivo.
A criação de novos produtos tem, sim, o potencial de tornar a saúde privada mais acessível. No entanto, para que essa função seja cumprida, é necessário investir na melhoria do relacionamento entre operadoras e beneficiários, além de criar mecanismos que garantam diálogo eficaz e a conscientização dos consumidores sobre o papel e a extensão da responsabilidade que a saúde suplementar desempenha dentro do sistema de saúde brasileiro.
Superar o ideal utópico e impraticável de coberturas integrais e irrestritas é o caminho essencial para que o sistema possa evoluir.