Patricia Pessoa Valente

O leilão para a concessão da prestação regionalizada dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário da Cedae, promovido pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro em abril de 2021, arrecadou R$ 22,6 bilhões em outorga para a concessão de três dos quatro blocos ofertados.
Ainda que a expectativa de participação de operadores internacionais tenha sido frustrada, aqueles já atuantes no mercado nacional não deixaram por menos: fizeram propostas de grande monta, o que superou, e muito, o valor mínimo com ágio de 114%. Ficou sem interessados apenas o bloco 3, que reúne bairros da zone oeste da capital e outros seis municípios.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>O sucesso do leilão da Cedae se reflete não apenas nas cifras do projeto, mas pelo fato de este ter sido incluído na negociação para a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal pelo estado do Rio de Janeiro ainda em 2017<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. A desestatização da estatal era condição para aceitação do socorro financeiro da União, sendo que, após a modelagem do BNDES, optou-se pela concessão comum de 4 blocos à iniciativa privada.
Da perspectiva de estruturação, a modelagem econômica e jurídica baseada na prestação regionalizada mais uma vez passou no primeiro teste, o leilão<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Os municípios fluminenses foram reunidos em grupos para garantir a viabilidade econômico-financeira de cada um dos blocos.
Os municípios menos rentáveis serão subsidiados pelos mais rentáveis, compondo um agrupamento atraente aos olhos do investidor. Assim, os titulares dos serviços não precisarão fornecer contrapartida pecuniária às concessionárias, como ocorre nas PPPs, uma vez que os investimentos realizados serão custeados pelas tarifas.
Como tem sido praxe no Brasil e no Rio de Janeiro, o processo de concessão não passou incólume de percalços políticos e judiciais de última hora, gerando insegurança jurídica para os participantes e stakeholders. Às vésperas do leilão, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou o Decreto Legislativo Estadual (PDL nº 57/2021) que tinha por objetivo impedir a realização do leilão da Cedae.
Na data da publicação deste Decreto Legislativo, e em edição extraordinária do DOE, o governador em exercício fez publicar ato esclarecendo que “a competência para delegar os serviços de concessão da prestação regionalizada dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário não é do estado do Rio de Janeiro, mas da região metropolitana e dos municípios dela não integrantes” e, por este e outros motivos, resolveu prosseguir com o leilão da Cedae.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
A decisão liminar do desembargador Benedicto Abicair, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que suspendeu os efeitos do decreto legislativo com fundamento em vício formal de constitucionalidade, veio em boa hora e “desempatou” a divergência.
Como a titularidade do serviço é dos municípios e da região metropolitana, entendeu o magistrado que a matéria não seria de competência exclusiva do Poder Legislativo estadual.
A questão da competência não apareceu apenas na decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O Supremo Tribunal Federal (STF) também foi chamado para mediar a relação entre o estado do Rio de Janeiro, de um lado, e sindicados e partidos políticos, de outro<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Foi proposta ADI nº 0001674-76.2021.8.19.0000 em face do Decreto Estadual nº 47.422/2020, que dispõe sobre a concessão da prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento dos municípios do estado do Rio de Janeiro. A duração da concessão foi indicada no decreto estadual no limite de 35 anos para a concessão, prazo considerado para sua modelagem econômica e jurídica.
Os autores sustentaram que o prazo infringia o artigo 3º da Lei Estadual nº 2.831/1997, que, ao disciplinar o prazo geral dos contratos de concessão em âmbito estadual, estipulou o prazo limite de 25 anos, com a possibilidade de prorrogação por igual período.
O ministro Luiz Fux, ao apreciar a medida cautelar nos autos da Suspensão de Liminar 1.446, proferiu decisão monocrática, que confirmou o posicionamento do STF anteriormente sinalizado no longo julgamento da ADI nº 1.842<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> e, no caso concreto, manteve o prazo da concessão em 35 anos.
<blockquote class="jota-article__eye">Em cognição sumária, o ministro entendeu que o estado do Rio de Janeiro editou o referido decreto estadual no exercício de sua competência delegada da região metropolitana, esta – e, não, o estado – titular do serviço público de saneamento básico.</blockquote>
Citando o precedente, afirmou que o “plenário do Supremo, interpretando os artigos 23, IX, e 25, §3º, da Constituição, assentou entendimento no sentido de que a integração de município à região metropolitana criada por lei estadual, conquanto compulsória, não esvazia a autonomia municipal. Assim, a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico segue sendo dos municípios integrantes, a despeito da execução de referidos serviços se dar de modo conjunto no âmbito da unidade interfederativa”.
Assim, concluiu o ministro, “[à] luz do julgamento da ADI 1.842, revela-se, neste juízo sumário e sem prejuízo de ulterior revisão, a impossibilidade de invocação da Lei Estadual nº 2.831/1997 como limitadora do prazo de concessão de serviços cuja titularidade não pertence exclusivamente ao estado do Rio de Janeiro, mas antes ao conjunto de municípios integrantes da região metropolitana, sob pena de ferimento da autonomia federativa dos municípios conglomerados no caso concreto.”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Mas o que o prazo da concessão previsto no decreto legislativo estadual questionado tem a ver com a regionalização dos serviços de saneamento? O principal vetor da Lei Federal nº 14.026/2020 (“Novo Marco Legal do Saneamento”) é a universalização dos serviços de abastecimento da população com água potável e coleta de tratamento de esgotos até 31 e dezembro de 2033.
As iniciativas anteriores falharam em atingir a universalização, em grande medida diante da incapacidade de cada ente político em prestar os serviços de forma eficiente e das discussões sobre a titularidade da prestação dos serviços, que geraram debate e insegurança jurídica nas últimas décadas.
O prazo contratual é elemento fundamental para a análise acerca da viabilidade econômica da concessão. É o tempo para amortização dos investimentos realizados, inclusive em bens reversíveis. Ao final desse período, o operador/investidor espera obter seu retorno financeiro.
Nesse cálculo, especialmente em serviços como distribuição de água e esgotamento sanitário, têm peso os ganhos de escala e de eficiência que a regionalização proporciona com a reunião de Municípios em grupos.
Por esses motivos, a prestação regionalizada foi incentivada pela Lei nº 14.026/2020. Esta é, inclusive, uma das condições a serem atendidas pelas concessões estruturadas a partir do Novo Marco Legal do Saneamento que pretendam receber alocação de recursos públicos federais e financiamentos com recursos da União, conforme artigo 50, VII, da Lei nº 11.455/2007, alterado pelo Novo Marco Legal do Saneamento e regulamentado pelo Decreto Federal nº 10.588/2020.
Para estimular o emprego da prestação regionalizada pelos titulares dos serviços, o Novo Marco Legal do Saneamento estabeleceu que a prestação regionalizada pode ser estruturada de três formas: (i) região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião; (ii) unidade regional de saneamento básico; e (iii) bloco de referência (art. 3º, VI, da Lei Federal nº 11.455/2007 com redação dada pelo Novo Marco Legal do Saneamento).
Ainda nessas hipóteses, enquanto a região metropolitana e a unidade regional de saneamento são criadas a partir da vontade do estado, com formalização por meio da lei aprovada pela assembleia legislativa, o bloco de referência depende de ato da União (art. 52, §3º, da Lei Federal nº 11.455/2007, com redação dada pelo Novo Marco Legal do Saneamento).
Os estados têm até 15 de julho de 2021 para estabelecer as unidades regionais de saneamento básico. Estas são agrupamento de municípios não necessariamente limítrofes, para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, ou para dar viabilidade econômica e técnica aos municípios menos favorecidos (art. 3º, VI, “b”, da Lei Federal nº 11.455/2007 com redação dada pelo Novo Marco Legal do Saneamento). Não sendo exercida essa competência estadual, a União estabelecerá subsidiariamente blocos de referência para a prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico.
Os governos dos estados de Minas Gerais e de São Paulo já submeteram os respectivos projetos de lei às suas assembleias legislativas, assim como outros estados irão tomar providências no mesmo caminho.
O tema é relevante e, por isso, a regionalização ainda vai render não apenas dividendos, mas muito debate. Os próximos artigos desta coluna, mantida pela Liderança de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/infrawomen-saneamento" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Saneamento do Infrawomen</a> fomentará as discussões para gerar ainda mais conhecimento e circulação de ideias.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O estado do Rio de Janeiro deverá aderir ao Novo Regime de Recuperação Fiscal nos próximos meses, conforme regulamentação do Decreto Federal nº 10.681/2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Outros leilões foram realizados nos últimos meses, como abordado no artigo:  &lt;<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-modelo-de-concessao-da-cedae-seus-impactos-e-o-caso-da-geosmina-24022021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-modelo-de-concessao-da-cedae-seus-impactos-e-o-caso-da-geosmina-24022021</a>&gt;.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Para conferir o Ato do Governador em Exercício, acesse: &lt;<a href="http://www.ioerj.com.br/portal/modules/conteudoonline/mostra_edicao.php?k=60C98E20-8F5D9-4A9D-B59A-E566E04B3A861">http://www.ioerj.com.br/portal/modules/conteudoonline/mostra_edicao.php?k=60C98E20-8F5D9-4A9D-B59A-E566E04B3A861</a>&gt;. Último acesso em 04 de maio de 2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Foi proposta <a href="http://www4.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx?N=2021.007.00008">ADI 0001674-76.2021.8.19.0000</a> em face do Decreto Estadual nº 47.422, de 23 de dezembro de 2020, que dispõe sobre a concessão da prestação regionalizada dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário e dos serviços complementares dos municípios do estado do Rio de Janeiro.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Para detalhes sobre o julgamento da ADI 1842/RJ e suas repercussões na prestação dos serviços de saneamento básico, conferir o verbete “Saneamento básico: competências constitucionais para criar, organizar e prestar os serviços públicos, de André Luiz Freire, Tomo Direitos Difusos e Coletivos, Edição 1, julho de 2020, disponível em: &lt;<a href="https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/329/edicao-1/saneamento-basico:-competencias-constitucionais-para-criar,-organizar-e-prestar-os-servicos-publicos">https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/329/edicao-1/saneamento-basico:-competencias-constitucionais-para-criar,-organizar-e-prestar-os-servicos-publicos</a>&gt;. Último acesso em 04 de maio de 2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Para conferir a decisão do ministro Luiz Fux: &lt;<a href="http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346231624&amp;ext=.pdf">http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346231624&amp;ext=.pdf</a>&gt;. Último acesso em 04 de maio de 2021.

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JOTA

Disputas judiciais e políticas não abalaram a concessão da prestação regionalizada dos serviços de saneamento

A prestação regionalizada e o leilão da Cedae

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