Andre Bogossian

A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm">Lei 14.026/2020</a> conferiu às concessionárias de serviço público de saneamento básico que possuíssem contratos anteriores a esse Novo Marco Legal do Saneamento Básico uma prerrogativa única no ordenamento jurídico administrativo brasileiro. Tal prerrogativa representa exceção a um dos elementos mais fundamentais do Direito Público brasileiro, tal que não há previsão similar em qualquer outra concessão, parceria público-privada ou mesmo qualquer contrato administrativo para execução de obra ou fornecimento de bens ou serviços. Explica-se.
No estudo do contrato administrativo, tem especial relevo a análise das cláusulas exorbitantes, que, conforme o entendimento tradicional, conferem à administração uma inegável posição de supremacia em relação ao particular contratado. Segundo o entendimento tradicional, é a presença de tais cláusulas que permite caracterizar como administrativo um contrato, imprimindo o regime de direito público. Dentre as mais conhecidas estão as cláusulas de jus variandi, que permitem à administração alterar unilateralmente o contrato administrativo, impondo ao particular a obrigação de aceitar a alteração proposta pelo Estado nos termos legais.
As faculdades estatais veiculadas pelas cláusulas exorbitantes decorrem do poder-dever atribuído à administração para a tutela efetiva do interesse público. Não à toa, o artigo 58, I, da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm">Lei 8.666/1993</a>, a de licitações e contratos, conferia à administração a prerrogativa de “modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado”.
Vê-se, portanto, um primeiro limite ao poder de alteração contratual: o respeito aos direitos do contratado, que se manifestam fundamentalmente pelo direito ao equilíbrio econômico-financeiro do ajuste. Desde o seu nascimento o instituto do equilíbrio econômico-financeiro está atrelado à tentativa de estabilidade nas relações de longo prazo com a administração.
Por esse motivo, o artigo 58, §2º, da Lei de Licitações indica que na hipótese do inciso I (ou seja, de alteração unilateral) as cláusulas econômico-financeiras do contrato deverão ser revistas para que se mantenha o equilíbrio contratual. No mesmo sentido, dispõe o §6º do artigo 65 da Lei de Licitações, ao estabelecer que, quando houver alteração unilateral do contrato que aumente os encargos do contratado, a administração deverá restabelecer, por aditamento, o equilíbrio econômico-financeiro inicial. No âmbito das concessões, o artigo 9º, §4º da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm">Lei 8.987/1995</a>, a Lei de Concessões, afirma que “em havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração”.
O segundo limite diz respeito à natureza das cláusulas que poderão ser objeto de alteração unilateral. No contrato administrativo, existem duas categorias de cláusulas: as cláusulas “regulamentares” ou “de serviço”, e as cláusulas “econômicas”. Enquanto as primeiras regulamentam a execução do objeto do contrato, as cláusulas “econômicas” dizem respeito às condições de remuneração do particular. Nas concessões, as cláusulas econômicas consistem, entre outras, nos valores tarifários e/ou de contraprestações cobrados pelo concessionário e respectivos prazos e procedimentos para seu pagamento, bem como nos mecanismos que preservam a integridade da equação econômico-financeira — reajustes tarifários, revisões contratuais — e até os mecanismos indenizatórios referentes à parcela não amortizada dos investimentos vinculados a bens reversíveis.
Assim, as cláusulas regulamentares ou de serviço são passíveis de alteração unilateral pela administração. Já as cláusulas econômicas somente podem ser alteradas com a expressa concordância do contratado (artigo 58, § 1º, da Lei 8.666/93). Afinal, ninguém se submeteria ao regime do contrato administrativo se lhe fosse tolhida a possibilidade de auferir remuneração pelos encargos e riscos que assume. A intangibilidade das cláusulas econômicas dos contratos reflete a própria intangibilidade das premissas da equação econômico-financeira, amplamente assegurada especialmente no âmbito de concessões por meio da garantia prevista no artigo 10 da Lei 8.987/1995.
Um terceiro limite às alterações unilaterais de contratos administrativos diria respeito ao máximo de 25% do valor inicial atualizado do contrato previsto no §1º do artigo 65 da Lei 8.666/93. Já foi objeto de discussão a aplicabilidade de tal limite, que é próprio dos contratos administrativos de execução de obras e fornecimento de bens e serviços, ao regime das concessões e PPPs.
Tais contratos possuem uma lógica e estrutura econômica fundamentalmente distinta dos contratos de obra e fornecimento de bens e serviços — são contratos de investimento, em que os aportes do particular nos bens (ao final reversíveis) são amortizados no decorrer do (longo) prazo por meio das tarifas e/ou contraprestações e cuja fiscalização se dá fundamentalmente pela verificação de resultados satisfatórios, medidos por indicadores de performance, sendo risco inerente aos projetos concessionais a escolha dos meios necessários ao atingimento de tais resultados.
Ao contrário, nos contratos de obras, bens e serviços, a administração regula os meios empregados pelo particular contratado para consecução do objeto definido na licitação. Não há, para as concessões e PPPs, uma clareza e uniformidade a respeito do que seria o “valor do contrato” que possibilite a aplicação do limite de 25%: seria o valor do contrato o valor presente líquido das receitas estimadas do concessionário? Dos investimentos previstos — isso se houver uma previsão específica de Capex? Da outorga a ser paga ao concedente — também, se houver?
De toda forma, a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13448.htm">Lei 13.448/2017</a> em seu artigo 22 expressamente previu que as alterações dos contratos de parceria decorrentes da modernização, da adequação, do aprimoramento ou da ampliação dos serviços não estão condicionadas aos limites fixados nos §§ 1º e 2º do artigo 65 da Lei 8.666/1993.
Vê-se, portanto, que o ordenamento jurídico setorial confere aos poderes concedentes em regra ampla margem para promoção de alterações unilaterais para adequação, aprimoramento ou ampliação dos serviços, sempre tendo em vista o atingimento do interesse público.
No setor de saneamento, com o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/novo-marco-legal-do-saneamento">Novo Marco Legal</a> instituído pela Lei 14.026/2020, o principal ensejo para alteração contratual é a necessidade de incorporação nos contratos vigentes das metas de universalização que garantam o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, assim como metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento, previstas no artigo 11-B da Lei 11.445/2007.
Segundo o §2º de tal artigo, contratos firmados por meio de procedimentos licitatórios que possuam metas diversas daquelas, inclusive contratos que tratem, individualmente, de água ou de esgoto, permanecerão inalterados nos moldes licitados. Ou seja, não há uma obrigatoriedade legal de que sejam alterados para incorporação das metas. Mais: o titular do serviço deverá buscar alternativas para atingir as referidas metas, incluídas (I) a prestação direta da parcela remanescente por algum órgão ou entidade da Administração direta ou indireta; (II) a  licitação complementar para atingimento da totalidade da meta ou (III) poderá realizar o aditamento de contratos já licitados, incluindo eventual reequilíbrio econômico-financeiro, desde que em comum acordo com a contratada.
As duas primeiras hipóteses são de difícil verificação: a prestação direta tem como principal obstáculo a própria restrição fiscal e escassez de recursos públicos. Por sua vez, a licitação complementar de parcela do escopo dos serviços tem como principal desafio o arranjo de uma delegação de serviços que seja economicamente viável e atrativa ao setor privado, considerando que em regra os contratos existentes com metas não devem apresentar metas muito aquém das preconizadas pelo Novo Marco. Além disso, inegavelmente há um desafio técnico de viabilizar a relação de dois prestadores para o mesmo titular. Resta, para a larga maioria dos casos, a alteração das concessões vigentes.
Eis então a prerrogativa conferida pelo ordenamento jurídico unicamente aos concessionários de saneamento: a alteração de tais concessões somente poderá ocorrer “desde que em comum acordo com a contratada”. Não é obrigada a concessionária a aceitar qualquer tentativa do poder concedente de alterar a concessão para incorporar novos investimentos que contemplem as metas do Novo Marco. Nem mesmo caso o poder concedente proponha uma alteração que considere um reequilíbrio econômico-financeiro “concomitante” à alteração, como preconiza o artigo 9º, §4º, da Lei 8.987/1995.
E não se alegue que a Lei 8.987/1995, enquanto Lei Geral de Concessões, seria suficiente para permitir uma alteração imposta unilateralmente, e que a necessidade de acordo seria limitada somente à forma de recomposição do equilíbrio. O Novo Marco Legal, instituído por lei especial e posterior, prevalece e confere de forma única no ordenamento jurídico o direito das concessionárias de somente ter seus contratos de concessão aditados com o fito de incorporação das novas metas caso seja possível chegar a um comum acordo tanto quanto à alteração em si quanto em relação aos mecanismos e formas de compensação (reequilíbrio) devidos ao particular.
Qualquer tentativa de poderes concedentes de impor alterações dessa natureza nas concessões vigentes que possuam metas diversas das do Novo Marco deverá ser reputada nula em virtude da flagrante violação ao artigo 11-B, §2º, III, da Lei 11.445/2007. Obviamente, alterações unilaterais que digam respeito a aspectos da concessão diversos da incorporação de metas não estão inseridas no escopo dessa proteção especial e podem ser realizadas como ocorre usualmente.

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JOTA

Prerrogativa representa exceção a um dos elementos mais fundamentais do Direito Público brasileiro

A prerrogativa exclusiva das concessionárias face a alterações unilaterais

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