Cristina Maria Gama Neves da Silva

Na noite da última segunda-feira (2/5), <a href="https://www.politico.com/news/2022/05/02/supreme-court-abortion-draft-opinion-00029473">vazou o que supostamente seria um esboço inicial de voto da Suprema Corte dos EUA, </a>através do qual, por maioria, a Corte alteraria o estabelecido em Roe v. Wade<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[1]</a>, julgamento que reconheceu o aborto como uma garantia constitucionalmente protegida. Vazamentos de votos na Suprema Corte são extremamente raros e esse fato por si só é motivo de grande alarde no país. Todavia, lá nos Estados Unidos, como em tantos outros países, o aborto é um assunto delicado, sempre permeando (se não centralizando) debates eleitorais e as sabatinas dos indicados para compor a sua mais alta Corte.
Primeiramente, quanto ao vazamento, o Chief Justice Roberts já confirmou a autenticidade do esboço, contudo registrou que esse não é um posicionamento definitivo da Corte. Nesse ponto é importante explicar que na Suprema Corte dos EUA é comum a prática de os ministros (Justices) compartilharem os votos entre si, por vezes escrevendo em conjunto, por outras apresentando votos individuais divergindo ou concordando. Assim, os votos são reescritos diversas vezes e em alguns casos podem passar por alterações até poucos dias antes de sua divulgação. A decisão somente é final com a sua publicação, o que deve acontecer, neste caso, nos próximos dois meses.
Contudo, é inegável que há um forte indicativo de que a maioria da Corte irá anular Roe, principalmente diante da sua atual composição, de maioria conservadora. O federalismo norte-americano garante extensa autonomia aos estados para legislarem, mas há restrições às leis que violem garantias constitucionais. Nesse cenário, alguns estados permitem a pena de morte, ao passo que outros a proíbem. E até o julgamento de Roe v. Wade, em 1973, também era permitido aos estados criminalizarem ou não o procedimento de aborto.
Em Roe v. Wade, a Suprema Corte dos EUA, baseando-se no direito à privacidade, concedeu proteção constitucional ao procedimento de aborto. Contudo, também reconheceu o interesse do Estado na vida do feto (prenatal life) e estabeleceu um framework trimestral para regular leis relativas ao aborto<a href="#_ftn2" name="_ftnref3">[2]</a>. No julgamento, a Corte rejeitou o entendimento que fetos devam ser considerados pessoas, sob o fundamento que o termo pessoa presente na Constituição jamais foi pensado para abrangê-los. No voto da maioria, o Justice Blackmun fundamentou: “Nós não temos que resolver essa complexa questão de quando a vida se inicia. Aqueles estudiosos da medicina, teologia e filosofia não conseguiram chegar em um consenso no tema. O Judiciário, nesse momento do desenvolvimento do conhecimento humano, não está na posição de especular essa resposta”.
Assim, depois de 1973, a Suprema Corte concedeu proteção constitucional ao aborto e estipulou o escrutínio estrito (strict scrunity) como parâmetro para julgar eventuais leis sobre a matéria. Contudo, isso não significou que o debate deixaria de ser parte da sociedade e da mais alta Corte norte-americana. Muitas leis estaduais buscaram restringir o acesso e o período para se realizar o procedimento, entre outras questões. Recorrentemente clínicas e médicos que realizam o procedimento sofrem atentados e são processados. O debate inclusive foi levado para a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/corte-idh">Corte Interamericana de Direitos Humanos</a> em Baby Boy v. United States.
Todavia, 20 anos após o julgamento de Roe v. Wade, a constitucionalidade do procedimento foi reafirmada em Planned Parenthood v. Casey<a href="#_ftn3" name="_ftnref4">[3]</a>. Neste caso de 1992, a Corte, apesar de contar com uma composição de maioria conservadora (juízes nomeados por presidentes republicanos), aplicou a doutrina do stare decisis para reafirmar o entendimento de Roe, sob o clássico fundamento que “a liberdade não encontra refúgio em uma jurisprudência de dúvida”.
A doutrina de stare decisis decorre do princípio da fidelidade ao precedente, impondo que o Tribunal deve seguir a sua jurisprudência em casos similares (to stand by the things decided). Em Casey esse foi um elemento central da fundamentação da opinion of the Court. Com isso, os ministros sustentaram que a reforma de um entendimento é possível quando:
<ol>
<li>a solução assentada é impraticável;</li>
<li>houve uma evolução nos princípios legais que enfraquecem os fundamentos do precedente;</li>
<li>houve uma mudança nos fatos no qual se baseou a decisão.</li>
</ol>
O voto condutor reconheceu que o controle dos direitos reprodutivos impacta o desenvolvimento social e econômico das mulheres. Com isso, fundamentou-se que o entendimento alcançado em Roe alterou a forma como as pessoas organizam as suas relações íntimas e planejamento familiar. Diante disto, ante à importância da previsibilidade e consistência das decisões judiciais e fidelidade institucional, uma Corte, majoritariamente conservadora, manteve a proteção constitucional do aborto.
Todo esse cenário é passível de mudança caso se confirme o posicionamento do esboço do voto divulgado nesta semana. O impacto imediato é acabar com o quase meio século de proteção constitucional ao direito de abortar, vindo a permitir que estados criminalizem novamente o procedimento. Ou seja, no âmbito dos direitos reprodutivos, as mulheres americanas retornam para 1973.
Assim, mesmo que o aborto seja permitido em alguns estados americanos, não prevalece o fraco argumento de que mulheres podem viajar para outros estados para fazer o procedimento. A questão sobre o aborto também se baseia na acessibilidade, pois tempo e dinheiro não é algo que todas as mulheres detêm igualitariamente. Portanto, essa possibilidade seria apenas viável para uma pequena parcela extremamente privilegiada. O resultado desse cenário será a acentuação das já graves desigualdades estruturais da sociedade americana.
Ademais, caso o entendimento da Suprema Corte seja alterado, os EUA se alinhariam a outros três países (Polônia, El Salvador e Nicarágua) que endureceram as leis de aborto nos últimos anos, em contraposição aos 59 países que ampliaram o acesso.
Todavia, é importante lembrar, pois pouco se tem falado, que a tão especulada decisão pode afetar outro ponto do direito norte-americano, a própria doutrina da stare decisis, pois esta decisão também viria por sobrepor Casey. No Federalist Paper 78 “The Judiciary Departament”, Alexander Hamilton defende o respeito ao precedente como forma de se evitar a arbitrariedade indiscriminada das Cortes, que é o que poderá ocorrer caso haja a mudança no entendimento, especialmente se ausente fundamento em alguma das três hipóteses da doutrina stare decisis.
Nesse ponto, outra questão que também paira sobre a sociedade americana é a dúvida sobre quais outros entendimentos da Corte podem vir a ser alterados ou revertidos, em especial aqueles baseados no direito à privacidade, como Lawrence v. Texas<a href="#_ftn4" name="_ftnref5">[4]</a> – que determinou que leis que punem relações de pessoas do mesmo sexo são inconstitucionais – e Obergefell v. Hodges<a href="#_ftn5" name="_ftnref6">[5]</a> – que garantiu proteção constitucional ao casamento de pessoas do mesmo sexo.
Fato é que, em matéria de direitos das mulheres, é sempre necessário permanente cuidado e atenção, ante ao constante risco de retrocesso. Se a sociedade assume (senão impõe) que a criação dos filhos seja de responsabilidade da mulher, também lhes deve reservar a escolha de quando ou se querem se tornar mães. Nas palavras de Catharine MacKinnon, maternidade forçada é discriminação de sexo.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn2">[1]</a> Roe v. Wade, 410, US, 113 (1973)
<a href="#_ftnref2" name="_ftn3">[2]</a> No qual no 1º trimestre da gestação os estados não poderiam limitar o acesso ao aborto, apenas regular o procedimento, no 2º poderiam limitar os procedimentos que coloquem em risco a vida da mãe e no 3º poderiam proibir o procedimento.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn4">[3]</a> Planned Parenthood v. Casey, 505 U.S. 833 (1992)
<a href="#_ftnref4" name="_ftn5">[4]</a> Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558 (2003)
<a href="#_ftnref5" name="_ftn6">[5]</a> Obergefell v. Hodges, 576 U.S. 644 (2015)

aborto texas

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JOTA

Além do aborto, há dúvida sobre quais outros entendimentos da Suprema Corte podem vir a ser revertidos

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Além do aborto em Roe v. Wade, há dúvida sobre quais outros entendimentos da Suprema Corte dos EUA podem vir a ser revertidos