Rodrigo Mudrovitsch

Felipe Fernandes de Carvalho

No dia 17 de maio de 2023, foi realizada uma audiência pública na 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STJ">STJ</a>) a respeito da possível revisão da Súmula 231, que estabelece que “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”. A audiência foi convocada pelo ministro Rogério Schietti, que é relator de três Recursos Especiais (2.057.181, 2.05208.5 e 1.869.764) que versam sobre a superação do enunciado da referida súmula.
Os argumentos envolvendo a defesa da rediscussão da Súmula 231 do STJ e sua consequente revogação estão relacionados: (i) à violação do princípio da legalidade, na medida em que o art. 65 do Código Penal menciona “circunstâncias que sempre atenuam a pena”, como também (ii) à violação do princípio de individualização da pena; (iii) à inadequação da Súmula em face do ordenamento jurídico atual e (iv) às diversas questões de política criminal que envolvem decisões dessa natureza, entre outros argumentos levantados na audiência.
Conquanto os posicionamentos contrários à revogação invoquem que a Súmula daria azo ao princípio da legalidade, por, em tese, manter a individualização da pena dentro dos limites estabelecidos pelo legislador e promoveria segurança jurídica, pois se cuidaria de garantia mínima ao acusado e à sociedade – de modo que, do outro lado, a revogação promoveria um subjetivismo exacerbado do julgador assim como daria azo ao ativismo judicial –, fato é que a manutenção dessa Súmula contraria princípios e garantias constitucionais, para além de repercutir no já declarado estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro, conforme se passará a demonstrar.
<h3>Pressuposto da discussão: o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro</h3>
Diversas são as violações de direitos fundamentais dos presos, protegidos constitucionalmente, que levaram ao Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">STF</a>) reconhecer o chamado “estado de coisas inconstitucional” do sistema carcerário brasileiro nos autos da Medida Cautelar da ADPF 347. Naquela oportunidade, constatou-se a ocorrência da superlotação dos presídios, que por sua vez ocasionam doenças, rebeliões, mortes e a violação da dignidade da pessoa humana e das diversas normas nacionais e internacionais que proíbem tortura, tratamento desumano ou degradantes dos seres humanos.
Com efeito, os encarcerados brasileiros na maioria dos casos não têm acesso à água, alimentação de mínima qualidade, não recebem materiais de higiene e são expostos a estruturas precárias, celas sujas, e outras situações que colocam em risco a saúde e a integridade física, como os diversos episódios de violência nos presídios, costumeiramente relatados pela mídia.
No âmbito dessa decisão, foram determinadas algumas medidas para superar o desarranjo do sistema prisional, que envolvem a atuação do Poder Judiciário, na medida em que os operadores do direito exercem forte influência na manutenção da superlotação carcerária, devido à lógica punitivista presente, que é manifestada pelos números do cárcere. Conforme dados mais recentes do Sisdepen<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, coletados entre julho e dezembro de 2022, há 642.638 presos em celas físicas no Brasil e o déficit de vagas é de 165.582 vagas – ou seja, evidente a superlotação.
Demais disso, sabe-se que a população carcerária é formada majoritariamente por homens jovens e negros. Ora, os dados demonstram que havia até dezembro 123.143 presos na faixa etária de 18 a 24 anos, o que representa 19,16% da população carcerária e que somados com aqueles entre 25 a 29 anos representam 41,9% do cárcere, enquanto os negros (somados pardos e pretos) representam 67,22% da população carcerária, conforme os dados oficiais (registra-se que apenas 89,11% da população total possui informação sobre cor/raça).
Todos esses fatores, ou seja, a constatação do estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário, bem como a participação do Poder Judiciário nisso e a formação da população prisional devem influenciar a discussão de medidas e normas sobre a fixação da pena. A manutenção do entendimento enunciado na Súmula 231 do STJ vai de encontro aos esforços empreendidos desde a ADPF 347 para combater a superlotação carcerária e o ECI. Além disso, a vedação da aplicação da pena aquém do mínimo legal afeta importante parcela da população carcerária, na medida em que uma das circunstâncias atenuantes previstas no art. 65, I do CP é justamente a menoridade relativa, o fato do agente ser menor de 21 anos.
Tal previsão é proveniente de um ordenamento jurídico que visa proteger as crianças e adolescentes e, assim, a previsão da Súmula 231 apresenta um entendimento destoante da legislação, pois veda a aplicação do benefício a esses jovens que mereceriam uma pena mais branda devido a própria racionalidade do ordenamento, ao realizar a devida individualização da pena. Assim, revisão da Súmula 231 não pode ignorar os efeitos práticos que tem sobre o sistema carcerário, o qual já é reconhecidamente violador de diversos direitos humanos.
<h3>A violação dos princípios da legalidade e da individualização da pena</h3>
Um dos principais argumentos contrários à permanência da Súmula 231 no ordenamento jurídico pátrio é o de que o raciocínio contido em seu enunciado ultraja o princípio da legalidade.
É verdade que, para os defensores da referida Súmula, a aplicação da pena do condenado aquém do mínimo estabelecido pela norma penal, a partir do emprego das atenuantes, careceria de fundamento legal, tendo em vista que o próprio Código Penal disciplina um limite mínimo da sanção para cada delito. Nada obstante, faz-se necessário esclarecer que a intenção do legislador, ao determinar parâmetros quantitativos das penas, não foi a de suprimir direitos do sentenciado, mas, sim, criar formas de contenção do poder punitivo estatal.
Não por outro motivo, a previsão contida no art. 65 do Código Penal é inequívoca ao dispor que as circunstâncias atenuantes “sempre atenuam a pena”, ou seja, independentemente de já se encontrar no mínimo cominado. Com efeito, o dispositivo legal não excepciona sua aplicação aos casos em que a pena-base já tenha sido fixada acima do mínimo legal, muito pelo contrário, assenta, de forma categórica, a obrigatoriedade de seu emprego.
Nesse particular, antes do advento da reforma penal de 1984, as atenuantes eram previstas no art. 48 do Código Penal, que continha, em seu parágrafo único, uma vedação expressa acerca da impossibilidade de redução aquém do mínimo legal.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Contudo, da redação vigente se depreende que referida opção não foi escolhida pelo legislador, inexistindo, atualmente, qualquer disposição semelhante a esta no Código Penal.
É de se frisar que o art. 59 do Código Penal, o qual trata da fixação da pena-base, é manifesto ao dispor que o juiz deverá estabelecer a quantidade de pena aplicável nos limites previstos, ou seja, ele jamais poderá fugir aos limites traçados pela lei na determinação da pena-base. No entanto, não se pode estender tal vedação às demais etapas contidas no art. 68 do Códex (cálculo da pena), sob pena de se afigurar a analogia in malam partem, prática esta proibida no ordenamento jurídico pátrio.
Outrossim, no que tange à ofensa ao princípio da individualização da pena, argui-se que, desconsiderar uma circunstância atenuante no momento da dosimetria da pena, por força da Súmula 231, na eventualidade de ser fixada a pena-base no mínimo-legal, representa um verdadeiro desprezo da circunstância, pois em nada poderá repercutir na sanção aplicada.
O art. 5º, XLVI, da Constituição Federal, neste particular, tutela a individualização da pena, que, em termos gerais, constitui a particularização da sanção criminal, a fim de que se chegue a uma pena justa e adequada a tornar o sentenciado distinto dos demais. Nesse sentido, o Enunciado da Súmula 231, ao proibir a redução da pena abaixo do mínimo legal, simboliza uma frontal violação a tal princípio constitucional, pois impede uma adequação da pena objetiva e subjetivamente ao caso concreto.
Nota-se que a aplicação da referida Súmula acaba por gerar situações conflitantes. Imagine-se um cenário em que dois roubos são cometidos por indivíduos distintos. O primeiro praticou o delito sem a presença de qualquer circunstância (atenuante ou agravante). O outro, diferentemente, ostentava vinte anos na data do roubo (art. 65, I, do CP), tentou reparar o dano cometido (art. 65, III, b, do CP), bem como confessou a prática criminosa (art. 65, III, d, do CP).
As situações fáticas acima postas são claramente diferentes entre si, contudo, em sendo adotada o conteúdo da Súmula 231, ambos receberão a mesma pena, tendo em vista que as circunstâncias diferenciais do segundo indivíduo, apesar de eventualmente reconhecidas, terão que ser desprezadas, ferindo o princípio da individualização da pena.
<h3>A inadequação da pena em face do ordenamento jurídico atual e jurisprudências recentes </h3>
Outrossim, destaca-se que os precedentes que originaram a edição da Súmula 231 datam da década de 1970, isto é, da vigência do Código Penal de 1940 antes da reforma de 1984, e desde então, muitas e das mais variadas mudanças jurídicas e sociais ocorreram no ordenamento jurídico brasileiro.
No campo doutrinário, a principal característica que leva à compreensão de que há a necessidade do cancelamento da Súmula 231 é a de que a sua existência decorre da interpretação do Código Penal antes da alteração de 1984. Isso porque, anteriormente a essa modificação legislativa, a aplicação da pena respeitava um critério bifásico, em que as circunstâncias atenuantes e agravantes eram analisadas e valoradas juntamente com a pena-base, de modo que, em razão disso, elas não eram fixadas abaixo do mínimo legal.
Sem embargo, com a reforma de 1984, adotou-se o sistema trifásico, cuja disciplina está contida no art. 68 do Código Penal. Ou seja, atualmente a dosimetria deve ser escalonada, iniciando-se pela análise das circunstâncias judiciais do art. 59, caput (pena-base), seguida da avaliação das circunstâncias legais agravantes e atenuantes (pena provisória), e finalizada pela consideração de eventuais causas de aumento e diminuição (pena definitiva).
Destarte, a partir dessa modificação, entendeu-se que o legislador optou por sair de balizas fixas e rígidas previstas na legislação anterior, para critérios que oferecem ao magistrado a possibilidade de fixação de uma pena mais justa e equânime.
Ademais, outro ponto que se faz necessário ressaltar, é a incongruência da Súmula 231 com a criação e desenvolvimento de diversos institutos despenalizadores (v.g. acordo de não persecução penal, colaboração premiada), muitos dos quais são focados na confissão do acusado. A respeito disso, vale ressaltar posição já adotada pelo Ministro Rogério Schietti Cruz<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, que apontou para a existência de novos institutos no Direito Penal moderno, concebidos para uma criminalidade mais diversificada, “(..) mercê dos quais se permite até mesmo, entre outros benefícios legais, o perdão judicial ao réu, decorrente de uma colaboração premiada (art. 4º da Lei 12.850/2013), que nada mais é do que uma confissão detalhada e vinculada a certos objetivos que a lei indica”.
Por derradeiro, cumpre evidenciar a incompatibilidade entre a redação da Súmula 231 e da Súmula 545, ambas do STJ. Isso porque, a Súmula 545 é clara ao dispor que: "quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à atenuante prevista no art. 65, III, d, do Código Penal". Ou seja, da mesma forma que a confissão foi utilizada pelo magistrado, para sentenciar o condenado, ela também deverá levar à atenuação de sua pena. Veja-se que, no entanto, com a vigência da Súmula 231, o direito do réu resta indevidamente impedido.
Em face do exposto, conclui-se que o Enunciado 231 da Súmula do STJ deve ser superado, eis que, além de constituir flagrante violação aos princípios constitucionais da legalidade, individualização da pena e isonomia, também vai ao desencontro com o ordenamento jurídico pátrio atual.
A impossibilidade de redução da pena aquém do mínimo legal, mesmo que presentes circunstâncias atenuantes, sob imposição da Súmula 231, não só nega a vigência da disposição literal do art. 65 do CP, como também viola o direito público subjetivo do condenado a uma pena justa, legal e individualizada.
De outra banda, a subsistência da Súmula 231 no ordenamento jurídico brasileiro conflita com as alterações legais trazidas pela Reforma de 1984, notadamente quanto à mudança no método da dosimetria da pena (de bifásica para trifásica), bem assim com a diversificação do Direito Penal – com a introdução de novos institutos –, e, finalmente, caminha em desacordo com enunciado da Súmula 545.
Demais disso, o Judiciário, em qualquer discussão envolvendo a fixação da pena e outras medidas que influenciem o cárcere, não pode perder de vista o já reconhecido estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro, bem como qual será a população afetada com essas decisões, que já é uma grande parcela marginalizada da sociedade brasileira.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen">https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “Art. 48. São circunstâncias que sempre atenuam a pena: (...) Parágrafo único. Se o agente quis participar de crime menos grave, a pena é diminuida de um terço até metade, não podendo, porém, ser inferior ao mínimo da cominada ao crime cometido.”
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> STJ, HC nº 482.949/MS, Relator Ministro Rogério Schietti (decisão monocrática), DJ: 07/12/2018, DJe: 12/12/2018

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JOTA

A rediscussão sobre a Súmula 231 do STJ

A possibilidade de fixar a pena abaixo do mínimo legal

O Judiciário, ao levantar a revisão da Súmula 231, não pode perder de vista o reconhecido estado de coisas do sistema prisional brasileiro.