Antônio Augusto Souza Dias Júnior

A possibilidade ou não de amortização do ágio na aquisição de participações societárias quando da incorporação, fusão ou cisão (art. 7º da Lei 9.532/1997) é um dos temas mais recorrentes nas discussões de planejamento tributário, sendo quase um referencial para se identificar a posição adotada acerca dos limites da atuação do contribuinte na busca pela menor carga tributária possível.
Em que pese ser quase automática uma associação entre os dois temas, o presente artigo acredita e propõe que a resposta à indagação sobre a possibilidade de aproveitamento de ágio gerado dentro de um grupo empresarial (no qual as partes da operação se encontram, em última instância, sob um mesmo controle) pode ser obtida sem a investigação de critérios afetos ao estudo do planejamento tributário em si.
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Uma interpretação sistemática e teleológica de dispositivos do Código Tributário Nacional (CTN) da Lei de Socidades Anônimas (Lei das SA’s) e do Código Civil (CC) é suficiente para se chegar a uma conclusão segura da aceitação ou não pelo ordenamento jurídico brasileiro da amortização fiscal do ágio gerado em uma aquisição de participação societária entre partes sob controle comum.
Desse modo, não seria sequer necessário (e muito menos proveitoso para uma compreensão mais objetiva) se adentrar em um debate acirrado, e muitas vezes “ideológico”, sobre a adoção de critérios não previstos na literalidade expressa do CTN, tais como “propósito negocial”, “abuso de forma” ou “abuso de direito”. O caminho ora percorrido é, rigorosamente, fincado em opções e objetivos expressamente declarados tanto pelo legislador civil e empresarial quanto pelo legislador tributário.
Assim é que a criação de uma pessoa jurídica dentro de um grupo apenas para permitir a dedução do ágio deve ser posta à prova diante das disposições legais que tratam da personalidade jurídica, da sociedade e da pessoa jurídica enquanto contribuinte de tributos.
Caso uma pessoa jurídica formalmente constituída com o exclusivo objetivo de criar um ágio amortizável não se adeque ao quadro normativo vigente que disciplina a personalidade jurídica, sua existência pode ser questionada e refutada por contrariedade ao direito positivo.
Partindo do Código Civil, necessário se faz enfrentar o seu art. 49-A, parágrafo único, incluído pela Lei 13.874/2019, que define a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas como um instrumento (não como um fim em si mesmo) com a finalidade de estimular empreendimentos, gerar empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.
Esse dispositivo do Código Civil claramente explicita que a personalidade jurídica tem a finalidade de propiciar o exercício da atividade econômica, objetivo este inconfundível com a criação de uma pessoa jurídica apenas com a finalidade de criar uma participação societária com sobrepreço (ágio) a ser deduzido da base de cálculo do imposto de renda.
O art. 49, parágrafo único, do Código Civil constitui uma declaração didática de que as pessoas jurídicas não são realidades jurídicas descasadas e dissociadas da realidade em que se inserem. A origem de uma pessoa jurídica, desde sempre, foi permitir a afetação e organização de um patrimônio por um grupo de pessoas que se reúnem na consecução de uma atividade ou negócio.
Não por outra razão, o art. 46, I do Código Civil preceitua que o registro da pessoa jurídica deve declarar “os fins” e “o tempo de duração”, “quando houver”, do ente constituído. Soa artificial uma interpretação segundo a qual os fins de uma sociedade podem ser atingidos em um período de dias, caso em que os fins declarados não corresponderiam à própria razão de ser da pessoa jurídica empresarial (exercício de uma atividade econômica).
Mesmo quando uma pessoa jurídica tem como única finalidade a participação em outras pessoas jurídicas, inclusive para se beneficiar de incentivos fiscais, como admite o art. 2º, § 3º da Lei 6.404/1976, essa faculdade é condicionada à existência de uma “empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes”, regra prevista no caput do mesmo art. 2º da Lei 6.404/1976, ao qual se vincula o § 3º.
Constituir uma sociedade de existência premeditadamente efêmera, com o único fim de criar uma participação societária com ágio a ser aproveitado para a redução dos tributos de outra pessoa jurídica, não significa, de forma alguma, estabelecer uma empresa de fim lucrativo, como condiciona o caput do art. 2º da Lei 6.404/1976. Empresa de fim lucrativo, segundo o art. 966 do Código Civil, é a organização dos fatores de produção (capital e trabalho) para o exercício de uma atividade econômica, com intuito de lucro (resultado positivo da atividade que pode ser distribuído aos sócios).
A criação de uma pessoa jurídica planejada para existir por um período de poucos dias ou semanas, sem uma organização destinada ao exercício de uma atividade econômica, não pode ser considerada uma empresa de fim lucrativo, seja sob o manto do Código Civil, seja sob a ótica do art. 2º da lei 6.404/1976.
Se há o desvirtuamento da personalidade jurídica, que passa a ser utilizada de modo artificial e como instrumento efêmero de vantagens não empresariais, não há sentido em se conferir uma proteção destinada à pessoa jurídica que de fato atua na consecução de um empreendimento econômico<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Quando um grupo de pessoas constitui uma sociedade, estão declarando que pretendem atuar em um empreendimento com finalidade lucrativa, e não extinguir essa pessoa jurídica dias após seu surgimento. Formar uma sociedade com finalidade diversa da tutelada pelo direito significa declarar uma vontade (exercício de atividade econômica com finalidade lucrativa) diversa da vontade interna (no caso, obter um benefício fiscal para outra pessoa jurídica), configurando, portanto, simulação<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, e dando ensejo à revisão do lançamento nos termos do art. 149, VII do CTN.
Também no direito tributário, a compreensão da pessoa jurídica como um ente criado para o exercício de atividade econômica, em contraposição a uma formalidade jurídica documentada, é decisiva para a própria definição do sujeito passivo da obrigação tributária.
O CTN fez uma clara opção de considerar, para fins tributários, não a pessoa jurídica como um registro formal de um ato constitutivo, mas sim a atuação de um grupo de pessoas com a finalidade de exercer uma atos concretos que possuem uma substância econômica apta a desencadear os fatos geradores de obrigações tributárias.
Fosse a pessoa jurídica, para o CTN, a expressão de um documento sem qualquer relação com uma atuação econômica, não teria o legislador que elaborou as normas gerais em matéria tributária determinado que a capacidade tributária passiva independe de estar a pessoa jurídica regularmente constituída, bastando que configure uma unidade econômica ou profissional (art. 126, III do CTN). O Código Tributário é expresso e categórico ao dispor que a configuração de uma unidade econômica ou profissional, para fins tributários, prevalece sobre a regular constituição da pessoa jurídica.
A tese de que o mero registro de uma pessoa jurídica, sem nenhuma substância e destinada a uma duração de poucos dias, pode ser oposto à administração tributária, além de contrária a uma interpretação teleológica e sistemática das próprias normas civis e societárias, é expressamente rechaçada pela literalidade do CTN, que adotou uma acepção econômica da empresa como sujeito de direitos no âmbito tributário.
Não há no CTN, desse modo, uma desconsideração de personalidade jurídica com requisitos próprios e rígidos como uma norma excepcional a ser aplicada e controlada pelo Poder Judiciário. O que o CTN introduz, de modo mais direto e como norma a ser observada pala administração tributária na constituição do crédito tributária, é que a compreensão de pessoa jurídica como um ente regularmente constituído do ponto de vista formal (inscrição de um ato constitutivo no registro competente) não é incorporado de modo automático e sem adaptações no direito tributário.
<blockquote>Neste último, a investigação de uma atividade econômica efetivamente levada a cabo por um grupo de pessoas (“configuração de uma unidade econômica ou profissional”) ganha ainda mais força e supera o patamar de interpretação teleológica que se empreende nas normas civis e societárias.</blockquote>
No direito tributário, o art. 126, III do CTN foi incisivo ao optar pela prevalência da atuação econômica em detrimento da constatação de uma personalidade jurídica formal (“estar a pessoa jurídica regularmente constituída”).
Essa primazia dos fatos econômicos em relação à forma de direito privado ganha ainda mais relevância quando se está diante do imposto de renda, que não incide sobre um negócio jurídico ou depende da constatação de uma categoria de direito privado. Pelo contrário, o imposto de renda é informado pela consideração econômica do fato gerador, uma vez que o art. 43 do CTN expressamente incorporou conceitos como “disponibilidade econômica”, “produto do capital e do trabalho”, que atestam a diminuta importância das formalidades jurídicas nesse tributo.
Considerando que o fato gerador do imposto de renda não se limita a um negócio jurídico, deve o intérprete e a própria administração tributária verificar os fatos ocorridos, uma vez que o art. 118, I do CTN expressamente determina a abstração da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes nesses casos.
Diante dessa interpretação sistemática e teleológica do regime civil, societário e tributário da personalidade jurídica, é possível afirmar que a utilização da forma da pessoa jurídica de modo desvirtuado legitima sua desconsideração por força dos arts. 46, I, 49-A e 966 do Código Civil, art. 2º da Lei 6.404/1976, bem como dos arts. 118, I e 126, III do CTN, sem que se recorra a uma norma geral antielisiva ou a posições sobre teorias como “propósito negocial”, “abuso de direito” ou “abuso de forma”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Pretender que uma criação de pessoa jurídica com intuito completamente estranho ao exercício de uma atividade econômica e utilizada com o único fim de criar um benefício fiscal para outra pessoa (a que de fato atua na realidade) é contrariar a finalidade buscada pelo Código Civil da constituição de pessoas jurídicas como um grupo de pessoas destinado a um objetivo comum.
É ainda contrariar o art. 2º da Lei das SA’s que estabelece como objeto das companhias o exercício de uma empresa de fim lucrativo, algo que não pode ser realizado num período predeterminado de poucos dias. Por fim, o próprio CTN fez a opção de compreender a pessoa jurídica como um ente destinado a uma atuação econômica. O art. 126, III do CTN expressamente orientou o intérprete e a administração tributária a não se ater à regular constituição das pessoas jurídicas, devendo buscar a configuração de uma unidade econômica ou profissional.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “O princípio da autonomia patrimonial é importantíssimo para que o direito discipline de forma adequada a exploração da atividade econômica.” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Volume 2: direito de empresa. 20ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 34). Por outro ângulo, “O princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas não é prestigiado nas hipóteses de uso fraudulento ou abusivo do instituto, e para a tutela dos credores com direito não proveniente de negociação.” (Op. cit., p. 39).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “(...) na simulação há um desacordo entre a vontade declarada ou manifestada e a vontade interna. Em suma, há uma discrepância entre a vontade e a declaração; entre a essência e a aparência.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil, volume 1: Lei de introdução e parte geral. 6ª edição. São Paulo: Método, 2010, p. 400).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> "(...) uma ‘empresa de papel’ que tenha ‘domicílio’ no arquivo de um escritório de contabilidade em um paraíso fiscal, sem qualquer capacidade operacional para o exercício de seu objeto social e que nunca o exerça, não deve ser considerada uma pessoa jurídica. A artificialidade, neste caso, é tão relevante e evidente que caracteriza a conduta do contribuinte como simulada, portanto, fora do escopo do parágrafo único do artigo 116 do CTN. (...) sempre que houver uma desnaturação artificial e evidente dos atos e negócios jurídicos de Direito Privado, estaremos diante de um ato ou negócio jurídico simulado, o qual não requer a aplicação do parágrafo único do artigo 116 do CTN para sua desconsideração e requalificação. (...) Um dos temas mais controvertidos do planejamento tributário atualmente é a interposição das ditas ‘empresas veículo’. Em uma situação de interposição artificial de pessoas jurídicas, para obter o tratamento mais benéfico de um tratado internacional, por exemplo, tendo-se uma empresa de papel que não exerça qualquer objeto social, naturalmente será possível a desconsideração de tal entidade para fins fiscais, sem recurso à norma geral antielusiva. Em um caso como este, diante da descaracterização do próprio instituto da pessoa jurídica, verificada estará a simulação, a autorizar a desconsideração e requalificação dos atos e negócios jurídicos praticados para fins fiscais." (ROCHA, Sérgio André. Planejamento Tributário na Obra de Marco Aurélio Greco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 145-147).

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JOTA

Uma interpretação sistemática e teleológica

A personalidade jurídica formal no Direito Tributário e o ágio interno

Uma interpretação sistemática e teleológica