Ariel Uarian

Na antiga doutrina católica, o limbo era um lugar entre o céu e o inferno para onde as almas das crianças não batizadas iriam se morressem – elas não estariam aptas a ir para o céu porque não detinham a graça do batismo, contudo não podiam ir para o inferno visto que não tinham pecado pessoal. Esse conceito foi abolido pelo papa Bento XVI em 2007.
Apesar disso, o termo limbo é coloquialmente utilizado como um sinônimo de um estado de indefinição, um espaço de lacuna que não está nem lá, nem cá. Trata-se de um termo que pode ser claramente aplicável para a situação de Propostas de Emenda à Constituição (PECs) que já passaram pela fase constitutiva e não foram promulgadas.
Para entender melhor essa afirmação, é preciso entender a tramitação de uma PEC. Toda tramitação de proposta legislativa possui três fases: introdutória, constitutiva e complementar. A fase introdutória consiste na apresentação da própria PEC, cujo rol de proponentes é limitado pelo artigo 60, da Constituição Federal. A etapa constitutiva compreende a deliberação parlamentar, que se dá por meio do processo legislativo propriamente dito. O estágio complementar equivale à promulgação do texto.
Outro ponto que precisa ser lembrado é que o processo legislativo das PECs é diferente daquele relativo às normas infraconstitucionais. No primeiro caso, é necessário que ambas as Casas concordem com o texto ou ele não será promulgado. Desse modo, se a Casa revisora aprovar a PEC com modificações ao texto, ela retornará à Casa iniciadora. Se a Casa iniciadora rejeitar a emenda, a PEC é devolvida à Casa revisora, até que se entre em acordo sobre o texto. Desse modo, a PEC pode ficar num trâmite sem fim entre a Casa iniciadora e a Casa revisora até que ambas entrem em acordo.
Em seguida à aprovação do texto pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/camara-dos-deputados">Câmara dos Deputados</a> e pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/senado">Senado Federal</a>, a emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara e do Senado, em sessão conjunta solene.
No que tange à tramitação de normas infraconstitucionais, a Casa iniciadora tem certa superioridade em relação à Casa revisora, já que possui o poder de acatar ou rejeitar as alterações feitas pela segunda encaminhando a proposição para sanção ou veto da Presidência da República depois dessa análise. Cumpre lembrar que este poder é uma das manifestações do sistema de freios e contrapesos que existe entre os Poderes instituídos.
Percebe-se que em relação às PECs não há possibilidade de veto ou sanção por parte das Mesas da Câmara e do Senado, pois como se trata de um ato de um mesmo Poder, o Legislativo, não há que se cogitar a possibilidade de veto.
Todavia, há situações em que a PEC percorre toda a fase constitutiva e não é promulgada, por razões completamente desconhecidas pela luz do sol. Um exemplo disso é a <a href="https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pec-70-2011-sf">PEC 70/2011</a>, cujo trâmite descreve-se a seguir.
Em 2011 foi registrada no Senado a PEC 11/2011<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, que visava alterar o procedimento de apreciação das medidas provisórias. Aprovada em dois turnos, a PEC 11/2011 foi encaminhada para a Câmara.
Na Câmara, a PEC 11/2011 foi renumerada e passou a tramitar sob o protocolo PEC 70/2011, tendo sido aprovada em dois turnos e com mudanças significativas ao texto aprovado no Senado<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Por ter sido alvo de alterações, a PEC retornou ao Senado, tendo sido renumerada, passando a tramitar como PEC 91/2019<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. O plenário do Senado, por sua vez, aprovou as propostas dos deputados, com emenda de redação, a qual teve como fundamento questões de técnica legislativa e que visavam sanear lapsos manifestos.
Desse modo, a PEC 91/2019 foi encaminhada para promulgação no dia 12 de junho de 2019, o que encerra a fase constitutiva do processo legislativo. Todavia, desde então ela ainda não foi promulgada.
Percebe-se que desde a aprovação da PEC 91/2019 foram promulgadas diversas outras Emendas Constitucionais, ou seja, não foi por falta de oportunidade que não se deu a promulgação.
A PEC 91/2019 está parada num limbo legislativo, pois já percorreu toda a fase constitutiva, restando apenas a fase complementar para que sua existência e executoriedade sejam concretizadas.
A Constituição de 1988 é silente quanto à não publicação em caso de Emenda Constitucional após o curso da fase constitutiva do processo legislativo. Nesse sentido, João Trindade Cavalcante Filho<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> chega a mencionar que seria ideal uma Emenda Constitucional para esclarecer esse tema. Fica evidente, portanto, a existência uma lacuna constitucional.
Por mais que essa brecha exista, a não promulgação de Emenda Constitucional, por decisão arbitrária de uma das Casas do Congresso Nacional, após o fim da fase constitutiva do processo legislativo, equivale a uma espécie de veto, o que não é permitido pelo texto constitucional a essa espécie normativa.
Dado que esse impasse parece que não terá deslinde no curto prazo, é necessário que o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do processo de integração e reconstrução, resolva essa lacuna constitucional.
Fazendo uma interpretação sistemática, é possível se aplicar por analogia ao caso da promulgação das Emendas Constitucionais a da sanção tácita prevista no §3º, do art. 66, da Constituição Federal. Assim, adequando-a ao contexto das Emendas Constitucionais, pode-se aduzir que, após o fim da fase constitutiva, as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal têm 15 dias para promulgar as Emendas à Constituição. Nessa hipótese, durante esse período a Casa que discorde do texto deve oficiar a outra, transcorrido esse prazo a Emenda Constitucional deveria ser promulgada.
Essa é uma solução viável, enquanto a lacuna constitucional não é preenchida pelo próprio legislativo. O que não se pode tolerar é que o congresso nacional, por meio de uma de suas casas legislativas, burle ou ignore indevidamente o processo legislativo, que é um dos fundamentos de legitimidade do próprio Poder Legislativo.
Se até o limbo católico, que perdurou séculos a fio, já não existe mais, qual a razão de existir um limbo no processo legislativo de Propostas de Emendas à Constituição?
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CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7ª Ed. 17ª Reimpressão. Coimbra: Edições Almedina, 2003.
CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Processo Legislativo Constitucional. 4ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2020.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição 11/2011. Disponível em: <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4306318&amp;ts=1567531964407&amp;disposition=inline">https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4306318&amp;ts=1567531964407&amp;disposition=inline</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BRASIL. Câmara dos Deputados. Redação final PEC 70/2011. Disponível em: <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1760720&amp;filename=RDF+1+%3D%3E+PEC+70/2011">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1760720&amp;filename=RDF+1+%3D%3E+PEC+70/2011</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição 91/2019. Disponível em: <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7963202&amp;ts=1654789898703&amp;disposition=inline">https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7963202&amp;ts=1654789898703&amp;disposition=inline</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Processo Legislativo Constitucional. 4ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 203.

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JOTA

Situação equivaleria a uma espécie de veto, o que não é permitido pelo texto constitucional neste caso

A PEC 70/2011 e o limbo da promulgação de emendas à Constituição

Situação de limbo, como o da PEC 70/2011, equivaleria a uma espécie de veto, o que não é permitido pelo texto constitucional neste caso