João Paulo Forni

Marlon Tomazette

Apesar de passarem por momentos de crise econômico-financeira, é certo que os devedores em recuperação judicial continuam a exercer suas atividades regularmente, fornecendo produtos e prestando os serviços que constituem o seu objeto. A controvérsia surge quando o exercício dessas atividades envolve a participação em licitações, ante a possibilidade de impedimento por parte do Poder Público, com base na jurisprudência do Tribunal de Contas da União (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tcu">TCU</a>).
Essencialmente, o embate é fruto de diferentes interpretações do art. 31, II, da Lei 8.666/1993: “A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á a: (...) certidão negativa de falência ou concordata expedida pelo distribuidor da sede da pessoa jurídica, ou de execução patrimonial, expedida no domicílio da pessoa física”.
Apesar de se dar no bojo de lei “com data marcada para esvair-se”, a discussão é relevante em razão tanto do período que ainda resta de vigência do tradicional diploma licitatório (vide <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/mpv/mpv1167.htm">MP 1167/2023</a>, que prorrogou a validade da Lei 8.666/1993 até 30/12/2023) quanto do poder persuasório das decisões do TCU no âmbito das compras públicas brasileiras.
Na jurisprudência do TCU (acórdãos <a href="https://contas.tcu.gov.br/sisdoc/ObterDocumentoSisdoc?codVersao=editavel&amp;codArqCatalogado=13072701">5686/2017-Primeira Câmara</a> e <a href="https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/jurisprudencia-selecionada/%2522recupera%25C3%25A7%25C3%25A3o%2520judicial%2522/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520COLEGIADO%2520asc%252C%2520ANOACORDAO%2520desc%252C%2520NUMACORDAO%2520desc/0/sinonimos%253Dtrue">2265/2020-Plenário</a>), colhe-se que apenas os devedores “com plano de recuperação homologado judicialmente” poderiam participar dos certames, cabendo ao pregoeiro ou à comissão de licitação diligenciar no sentido de aferir essa circunstância. O entendimento da Corte de Contas toma por base, expressamente, o Parecer 4/2015/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU, que assim dispõe:
c) apenas com o acolhimento judicial do plano de recuperação (...), é que existe a recuperação judicial em sentido material, com a demonstração da viabilidade econômico-financeira da empresa; 
d) a certidão negativa de recuperação judicial é exigível por força do art. 31, II, da Lei 8.666, de 1993 (...) 
e) caso a certidão seja positiva de recuperação, caberá ao órgão processante da licitação diligenciar no sentido de aferir se a empresa em recuperação já teve seu plano de recuperação acolhido judicialmente, na forma do art. 58 da Lei 11.101, de 2005; 
f) se a empresa postulante à recuperação não obteve o acolhimento judicial do seu plano, não há demonstração da sua viabilidade econômica, não devendo ser habilitada no certame licitatório;  
Com as devidas vênias, as conclusões expostas partem da premissa de que caberia ao Judiciário verificar a viabilidade econômica empresa, que estaria ligada à aprovação do plano, o que não é correto.
Na jurisprudência do STJ, está sedimentado o entendimento de que “o magistrado deve exercer o controle de legalidade do plano de recuperação – no que se insere o repúdio à fraude e ao abuso de direito –, mas não o controle de sua viabilidade econômica”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. No mesmo caso, o ministro Luis Felipe Salomão asseverou que “o magistrado não é a pessoa mais indicada para aferir a viabilidade econômica de planos de recuperação judicial, sobretudo daqueles que já passaram pelo crivo positivo dos credores em assembleia, haja vista que as projeções de sucesso da empreitada e os diversos graus de tolerância obrigacional recíproca estabelecida entre credores e devedor não são questões propriamente jurídicas, devendo, pois, acomodar-se na seara negocial da recuperação judicial”.
Pela própria natureza contratual da recuperação judicial, é natural concluir que a decisão da assembleia de credores será soberana, isto é, não cabe ao juiz, a princípio, ir contra a vontade dos credores. Se estes aprovaram o plano de recuperação judicial, não caberia ao juiz rejeitá-lo. Da mesma forma, se eles não aceitaram o plano, nem na forma alternativa, o juiz não poderia, a princípio, decidir pela aprovação do plano. Dentro dessa concepção, se imporia ao juiz um papel meramente homologatório da decisão dos credores, não lhe cabendo uma intervenção mais ativa dentro do sistema brasileiro. Alberto Camiña Moreira chega a afirmar que não é o juiz que concede a recuperação judicial, mas os credores, cabendo ao juiz apenas a homologação dessa manifestação de vontade<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Nessa linha, entendemos que é a aferição da aptidão econômica do licitante que se insere na competência da Administração Pública contratante, e não do magistrado, nos termos do art. 27, III, da Lei 8.666/1993: “Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a: (...) qualificação econômico-financeira”.
O simples fato de alguém estar em recuperação judicial não é motivo suficiente para afastar essa habilitação e, consequentemente a participação do devedor do certame licitatório. Se à luz da documentação apresentada, a administração entender que não há qualificação econômica do licitante, ela poderá desqualificá-lo legalmente. Ademais, se nenhuma lei impediu expressamente a participação de um devedor em recuperação judicial do procedimento licitatório, não pode a Administração Pública fazê-lo por meio de uma interpretação extensiva da Lei 8.666/93.
Nesse sentido é o entendimento do STJ: “(...) o estado de recuperação judicial da empresa participante do certame licitatório por si só não representa óbice para o seu prosseguimento no certame e celebração do contrato administrativo, desde que demonstrada sua capacidade econômica para a execução do contrato (...). 
Isso porque não cabe à Administração Pública realizar interpretação extensiva da Lei de Licitações em vigor no caso concreto para restringir direitos, à luz do princípio da legalidade”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Deve-se considerar, ainda, que, ao proferir a decisão de processamento de recuperação judicial – uma espécie de juízo de admissibilidade – a Lei 11.101/2005 determina expressamente que o juiz “determinará a dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça suas atividades”.
A dispensa das certidões é genérica, e não exceção expressamente estabelecida. As exceções eram injustificáveis<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, pois podiam inviabilizar a continuação da empresa. Nesse sentido, o STJ permitiu, em junho de 2022, que devedor em recuperação judicial pode participar de licitações, contratar ou continuar executando contrato com a administração pública<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Por fim, salientamos que a Lei 14.133/2021 – que substituirá a Lei 8.666/1993 – acolheu referido entendimento, exigindo apenas “certidão negativa de feitos sobre falência expedida pelo distribuidor da sede do licitante” (art. 69, II), nada dizendo a respeito da recuperação, justamente por falta de coerência com o sistema, como apontado pelos doutrinadores e pela jurisprudência do STJ.
Pelo exposto, somos pela superação do entendimento externado na jurisprudência do TCU, mesmo considerando-se licitações reguladas pela Lei 8.666/1993.
&nbsp;
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> STJ - REsp 1359311/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, acórdão publicado no Diário da Justiça de 30/09/2014.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> CAMIÑA MOREIRA, Alberto. Poderes da assembleia de credores, do juiz e a atividade do ministério público. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 253-254.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> REsp n. 1.826.299/CE, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 5/12/2022. No mesmo sentido: AgInt no REsp n. 1.841.307/AM, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 30/11/2020, DJe de 9/12/2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> PIMENTA, Eduardo Goulart. Recuperação de empresas. São Paulo: IOB, 2006, p. 112-113.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> AREsp n. 978.453/RJ, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 6/10/2020, DJe de 23/10/2020; AgInt nos EDcl no REsp n. 1.940.775/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 27/6/2022, DJe de 29/6/2022.

recuperação judicial

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Entendimento da jurisprudência do TCU deve ser superado, mesmo considerando-se licitações reguladas pela Lei 8.666/93

A participação de devedores em recuperação judicial em licitações

Entendimento da jurisprudência do TCU deve ser superado, mesmo considerando-se licitações reguladas pela Lei 8.666/93