Carreira

A pandemia e o exercício da advocacia

É urgente que questão de gênero seja discutida no meio jurídico, sob pena do comprometimento da própria justiça

Crédito: Pexels

Depois de quase quatro meses de experiência forçada de home office muitas empresas vêm alegado a excelência dos resultados, na medida em que a produtividade dos colaborados, ao invés de cair, como esperado por muitos, subiu, mesmo em meio ao caos da pandemia.

Contudo, é preocupante que muitas organizações não levem em consideração que o home office praticado durante a pandemia foi implementado sem maiores planejamentos. Muitos colaboradores sequer possuem estrutura adequada para a realização dos trabalhos, de forma que deve-se reconhecer, na verdade, que a produtividade dos colaboradores se manteve ou aumentou, não em razão do home office, mas apesar deste.

Especificadamente no campo jurídico, além das dificuldades gerais no trabalho remoto, a suspensão dos prazos processuais, a criação do sistema de plantão no Judiciário, dentre outras mudanças, colocaram em risco a renda de muitos advogados e advogadas, de forma que todos se viram com a necessidade de trabalhar mais e melhor no home office.

Por outro lado, algumas advogadas também se depararam com a necessidade de se dedicar aos trabalhos domésticos e/ou a maternidade, sem qualquer estrutura de apoio, como ajudantes, escolas ou creches.

Para estas advogadas, não há tempo para atividades extras, não há tempo para lives, ou grandes debates jurídicos; estão focadas naquelas atividades obrigatórias para a manutenção do trabalho e dos clientes, especialmente em se considerando o quadro de retração econômica e a ameaça de desemprego. Mesmo as advogadas que experimentam alguma estabilidade de rendimentos ou segurança em empregos públicos, comentam que é muito difícil manter essa situação por muito mais tempo, com a mesma performance e produtividade.

A discrepância entre as dificuldades enfrentadas por juristas homens e mulheres é tão clara que a Folha de São Paulo, em 13 de maio de 2020, publicou uma reportagem sob o título – Em casa, procuradores, ministros e advogados conciliam processos com filhos e lives – pela qual advogados e magistrados (todos homens) falam sobre a nova realidade do trabalho remoto.

Um ministro destacou o maior tempo livre para leitura, filmes e séries; um advogado reclamou das dificuldades de acesso aos magistrados, com a pandemia, mas tendo participado, até aquele momento, de 21 lives; sendo que apenas um juiz relatou a necessidade de conciliar o trabalho com os cuidados para com a filha caçula, este realizado em conjunto com a esposa.

A Folha, após inúmeras críticas da parte de advogadas e entidades de todo o país, por não incluir nenhuma mulher na reportagem, não obstante termos um número equivalente de mulheres e homens inscritos na OAB, com as mulheres caminhando para superar o número de homens nos próximos anos[1], publicou, em 18 de maio de 2020, outra reportagem na mesma temática do home office para a classe jurídica, dando voz às mulheres, e o título foi – Home office na pandemia amplia desequilíbrio de gênero na justiça.

Nessa reportagem advogadas, magistradas e promotoras destacaram as dificuldades na conciliação do trabalho jurídico e os afazeres domésticos, demonstrando que durante a pandemia a separação entre as atividades domésticas e profissionais parou de existir – muitas se viram obrigadas a realizar reuniões enquanto preparam refeições, alimentam os filhos ou arrumam a casa.

Uma das advogadas entrevistadas destacou, com muita propriedade, que a retomada dos prazos judiciais (o que já aconteceu parcialmente, em relação ao processos físicos) agravou essas dificuldades. Os advogados homens, em sua maioria, pleiteavam essa retomada, que aconteceu após ação da OAB Federal, cuja diretoria é composta exclusivamente por homens.

De fato, a volta do curso dos processos é algo importante para os jurisdicionados, para as próprias advogadas e inclusive para o país, mas se as advogadas estão sobrecarregadas com as novas demandas, como podem cumprir estes mesmos prazos? Ora, as mulheres constituem 57% do contingente de advogados nos escritórios do Brasil[2] – se não têm condições de trabalho, há risco na própria prestação jurisdicional!

Parte da solução, por óbvio, passa pela divisão mais equânimes das tarefas domésticas, o que vemos acontecer, aos poucos, em nossa sociedade, mas a solução não se restringe à isso, até porque essa reorganização social demandará mais algumas gerações para acontecer por completo.

Dessa forma, no campo jurídico mostrou-se urgente o debate de gênero dentro das organizações representativas (OAB/Associações de magistrados/CESA, dentre outras), no judiciários e nos próprios escritórios e empresas com departamentos jurídicos.

É claro que nenhuma advogada quer privilégios, como por exemplo, que os prazos dos processos sob sua responsabilidade sejam suspensos, enquanto os demais correm normalmente, ou menos horas de trabalho que seus colegas homens. Não, a solução não pode passar por aí. Mas é imprescindível que o sobretrabalho feminino seja reconhecido, e que sejam discutidas formas de se amenizar esse problema.

Exatamente nessa linha, o STF, em 04 de agosto de 2020, finalizou o julgamento do RE 576.967, decidindo pela inconstitucionalidade da incidência das contribuições sociais sobre o salário-maternidade. Para o ministro relator, que foi acompanhado pela maioria, a incidência das contribuições sociais sobre um benefício pago às empregadas que se tornam mães, além de violar formalmente a Constituição Federal, desincentiva a contratação de mulheres e gera discriminação incompatível com a Constituição Federal.

É a primeira vez que o STF entra na discussão acerca da igualdade de gênero e tributação, sendo a decisão, além de muito importante para a definição da base imponível das contribuições sociais, um avanço no que se refere à concretização da isonomia e da proteção da mulher no mercado de trabalho, não apenas no campo jurídico.

É fundamental, portanto, que os escritórios e empresas também assumam suas responsabilidades, como atores sociais que são, na temática da igualdade de gênero, com a implementação de políticas contra a discriminação, políticas de benefícios, comitês de debate, ouvidoria para recebimento de reclamações, etc.

Importante ainda destacar que essa medidas independem dos tamanho das organizações. Grandes escritórios e empresas devem instituir programas regulares e formais de apoio às advogadas, mas também pequenas sociedades, mesmo que informalmente, devem manter um olhar constante para dentro de suas estruturas, visando não discriminar e dar condições de trabalho para essas advogadas.

E aqui, me permito um relato pessoal bastante exemplificativo dessas políticas, mesmo que não formalizadas em programas específicos, em sociedades menores.

Sou advogada, esposa e mãe. Há pouco mais de um ano fui convidada para desenvolver o departamento tributário em um novo escritório. Em nenhum momento, durante as tratativas quanto à sociedade, fui questionada sobre meu comprometimento com o trabalho/escritório, em razão das minhas inúmeras atividades domésticas, como mãe de trigêmeos com menos de dois anos de idade.

E em meio à atual pandemia, é claro, meus pares não acham fantástico que eu tenha que me desdobrar entre o cuidado com as crianças, permanecendo em home office em algumas oportunidades, quando o escritório já funciona normalmente, ou que algumas reuniões sejam remarcadas, outras sigam sem a minha presença, pelos mesmos motivos.

Mas isso faz parte do pacote para se manter profissionais do sexo feminino, que podem desempenhar papéis dos mais variados nas organizações, especialmente nesse momento de pandemia, e também no seu pós, onde acredita-se certas competências essencialmente femininas serão muito necessárias, como a capacidade de se exercer múltiplas tarefas, de se adaptar à novas realidades e funções e sobretudo de se colocar no lugar do outro, exercendo a empatia e o cuidado.

No mais, embora justiça social seja um fator relevante a ser considerado para o início ou aprofundamento do debate sobre as condições das advogadas nas organizações, os escritórios e empresas não podem ignorar que a diversidade de gênero é uma fonte de vantagem competitiva; tende a elevar a lucratividade, fomentar a produtividade e o crescimento[3], agregando valor à marca e trazendo clientes e colaboradores também engajados à mesma temática.

 


[1] Dados compilados pelo JOTA. Disponível em: <https://www.jota.info/carreira/mulheres-inscritos-oab-13012020>.

[2] Dados de acordo com um levantamento realizado pela Women in Law Mentoring Brazil. Disponível em: <https://wlm.org.br/como-esta-a-diversidade-de-genero-nos-escritorios-de-advocacia-no-brasil/>.

[3] Publicação: OIT – A Mulher na Gestão Empresarial. Disponível em: <http://ois.sebrae.com.br/publicacoes/oit-a-mulher-na-gestao-empresarial-tomando-forma/>. Pesquisa “A diversidade como alavanca de performance”. Disponível em: <https://www.mckinsey.com/business-functions/organization/our-insights/delivering-through-diversity/pt-br>.