José Augusto Fontoura Costa

Um pouco de brincadeira, um pouco a sério, circula um comentário interessante a respeito da matemática de quantificação da boa-fé: quanto mais uma petição se dedica a afirmar a boa-fé da parte, menos boa-fé a parte parece ter. É uma variação do ditado: quando a esmola é demais, até o santo desconfia.
Isso, porém, não impede que muito se fale a respeito da boa-fé, o que, possivelmente, se deve à combinação de muita força retórica com pouca precisão semântica. Além disso, a variabilidade dos significados é ainda maior quando se tem em vista operações transnacionais conectadas a dois ou mais Direitos estatais, às vezes de diferentes cepas.
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É equivocado, porém, buscar resolver o problema por meio de uma definição jurídica das hipóteses de comportamento correspondente a boa ou má-fé. No caso, a noção técnica resulta de sua função, não de seu conteúdo. Trata-se de elemento empregado para discernir o limite da proteção jurídica em relação às expectativas sociais a respeito de comportamentos desviantes. Em outros termos: o Direito não protege aquilo que é rejeitado pela percepção da comunidade a respeito do que deve ser protegido. Para aqueles mais acostumados com o Direito Internacional Privado, a analogia com a ordem pública internacional pode ser esclarecedora, pois essa assumidamente se refere a conteúdos históricos e geográficos bastante variáveis, mas tem uma função claramente definida: evitar efeitos deletérios da aplicação de Direito estrangeiro.
Há maiores resistências em assumir a boa-fé como algo de conteúdo variável, pois ela se aproxima mais de noções éticas aceitas como universais ou universalizáveis – inclusive o honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere. Ainda assim ocorrem inúmeras variações históricas e geográficas. Para mencionar dois aspectos bastante flexíveis, (i) as expectativas sobre a precisão das informações dadas por uma parte e (ii) o alcance do dever de zelar sobre os interesses dos outros são diferentes conforme a época ou o país. Além disso, cada ordenamento jurídico trata a boa-fé e sua dinâmica de aplicação de maneira diversa.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a generalização da discussão da noção de boa-fé é relacionada à adoção do Uniform Commercial Code nos anos 1950, instrumento que incorporou elementos conceituais do Direito alemão. A efetiva busca de uma noção unitária, cuja aplicação se restringe ao cumprimento do contrato, só passou ao centro do palco em 1980, a partir da teoria de Stephen J. Burton conforme a qual a boa-fé se caracteriza quando, durante a vigência do contrato, uma parte tem discricionariedade para definir um dever e não aproveita esse momento para recapturar uma oportunidade perdida no momento da celebração do contrato<a href="applewebdata://9F1F7B16-6871-456B-9E95-AE1AFD977D69#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Na Inglaterra, é diminuta a importância da noção para as questões contratuais. Outros Direitos, outras formas de abordar a questão.
Mais do que as variações históricas e geográficas, porém, pesam as diferenças entre ramos do Direito e setores de atividades. As formas de pensar e agir, bem como as expectativas socialmente legítimas, diferem conforme os sujeitos envolvidos e a natureza da relação. Porém, em termos jurídicos, a distinção entre contratos civis e comerciais, outrora bem marcada, perdeu nitidez em razão do aparecimento de outras categorias e subcategorias, como as relações de consumo, a contratação administrativa. Além disso, no Brasil, a absorção da tipologia comercial pelo Código Civil favoreceu uma visão integrada do Direito Privado em detrimento da autonomia comercialista. Um problema jurídico que se evidencia é o de como, então, compatibilizar conceitos e princípios com situações profundamente diversas.
A nova lex mercatoria se apresenta, nesse cenário, como uma personagem peculiar. Seu caráter transnacional e fragmentário já é, por si só, idiossincrático. Em termos do uso e do conteúdo da boa-fé, as particularidades estão longe de poderem ser minoradas: para além do problema enunciado há pouco, observa-se uma miríade de práticas e noções internas diversas. Daí a necessidade de, para os contratos internacionais, buscar a ideia e proporção corretas da boa-fé na efetiva prática comercial, com ênfase para as peculiaridades setoriais.
Em dois dos principais instrumentos uniformes de Direito do Comércio Internacional, a Convenção das Nações Unidas sobre a Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG) e os Princípios UNIDROIT para os Contratos Internacionais, a noção de boa-fé aparece expressamente. Em ambos os casos, aponta-se para um conceito estrito e diferenciado relativamente aos dos Direitos internos.
Na convenção de Viena a expressão “boa-fé” ocorre uma única vez: Artigo 7 (1), referente à interpretação da Convenção, quando se afirma a necessidade de “promover a uniformidade de sua aplicação, bem como de assegurar o respeito à boa fé no comércio internacional”. Em primeiro lugar, a regra é sobre como se interpreta a CISG e incide de modo indireto sobre os contratos por ela regidos. Nos Artigos 8 e 9, onde se trata a interpretação do contrato, a preferência é dada aos usos entre as partes e “qualquer uso reconhecido e regularmente observado no comércio internacional”. Em segundo lugar, ressalta-se a restrição ao âmbito da “boa-fé no comércio internacional”, o que é diferente dela “no Direito aplicável” ou “no Direito Comparado”.
Nos Princípios UNIDROIT a boa-fé aparece enunciada no Artigo 1.7 (1), onde se afirma inequivocamente o dever de agir de boa-fé no comércio internacional, o que não pode ser afastado pela vontade das partes. Nos comentários ao artigo, deixa-se bastante claro que a boa-fé não se refere aos padrões dos vários Direitos internos, mas apenas àquilo que possa ser demonstrado como “geralmente aceito” por esses Direitos. Além disso, a boa-fé deve ser compreendida à luz das “condições especiais do comércio internacional” de modo a abranger as peculiaridades setoriais e, inclusive “o ambiente sócio econômico em que a empresa opera”<a href="applewebdata://9F1F7B16-6871-456B-9E95-AE1AFD977D69#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Como, então, resolver as tensões entre um conceito bastante amplo no Direito brasileiro e as concepções internacionais, mais estreitas?
Na eventual aplicação da CISG, na condição de conjunto normativo contido no Ordenamento brasileiro, não se apresentam maiores problemas. A regra convencional impõe o dever de levar em conta seu caráter internacional e, também, restringe o conceito a como é consagrado no comércio internacional. Assim, para todos os efeitos, é razoável considerar que o Legislador optou por excluir suas noções próprias de boa-fé com a finalidade de possibilitar a aplicação uniforme do instrumento e, portanto, optou por dar mais segurança aos negócios em detrimento da aplicação dos parâmetros brasileiros.
Outros contratos internacionais regidos pelo Direito brasileiro colocam-se em um campo de incertezas. Aí, a solução mais óbvia é o emprego dos padrões brasileiros para aqueles aspectos do contrato regidos por tal lei. Porém, de um ponto de vista pragmático e voltado a favorecer a uniformidade como fator para a estabilização das operações econômicas internacionais, seria muito melhor o uso de princípios calibrados conforme o caráter de comerciantes profissionais das partes e as vantagens da atenção aos usos setoriais.
<blockquote class="jota-article__eye">Nesse sentido, ainda que uma postura voltada a favorecer a nova lex mercatoria e os limites da boa-fé a ela incorporados dependa de construções jurídicas mais sofisticadas, a prática e a ética do comercio internacional a favorecem.</blockquote>
É exatamente aí que as tentativas de construir noções de boa-fé estranhas ao setor e ao contexto específico em que as empresas atuam, muitas vezes sem economizar tinta, chamam a atenção. Buscar afastar o contexto normativo e social peculiar em que se formou e desenvolveu a operação econômica em favor de uma noção abstrata contraria as percepções e a ética do comércio internacional.
A boa-fé é tão difícil de definir em termos teóricos, quanto e fácil de identificar em situações concretas. As principais correções de rumo interpretativo na análise dos contratos internacionais são aquelas voltadas a esclarecer aspectos próprios dos usos setoriais, geográficos ou de determinadas comunidades. Outras considerações relevantes ajudam a esclarecer seus limites e funcionamento em um Direito aplicável. Outras palavras tendem a se perder no vento.
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<a href="applewebdata://9F1F7B16-6871-456B-9E95-AE1AFD977D69#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Veja-se Randy E. Barnett: Contracts. Oxford: Oxford University Press, 2010. Cap. 5; para o artigo seminal, Steven J. BURTON. Breach of contract and the common law duty to perform in good faith. Harvard Law Review, v. 94, n. 2. 1980. Pp. 369-404.
<a href="applewebdata://9F1F7B16-6871-456B-9E95-AE1AFD977D69#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> UNIDROIT. UNIDROIT Principles of international commercial contracts, ed. De 2016. Roma: Unidroit, 2016. Pp. 19-20.

Contrato

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A palavra é de prata e o silêncio é de ouro

Sobre a boa fé na nova Lex Mercatoria