Manuela Vidal e Silva Oliveira Santos

Ricardo Wagner Oliveira Santos

O termo Quarta Revolução Industrial, cunhado por Klaus Schwab, engenheiro e economista alemão fundador do Fórum Econômico Mundial – FEM, designa os avanços tecnológicos que encaminham o desenvolvimento humano para um novo patamar, servindo não apenas como um instrumento de desenvolvimento, mas, principalmente, de democracia, ao permitir que qualquer um se beneficie das possibilidades trazidas pelo domínio das novas tecnologias disruptivas, como a inteligência artificial.
Abundância, mobilidade social e autonomia, são palavras-chave desses novos tempos e conceitos já antigos que o capitalismo emprega com bastante ênfase para rebater as críticas de desigualdades sociais e degradação ambiental.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Note-se que as três palavras traduzem uma única ideia: liberdade. A liberdade é um dos pilares das democracias liberais ocidentais e alcança vários aspectos, dentre os quais destacamos a liberdade de expressão, um dos primeiros direitos a serem resguardados pelo constitucionalismo, cuja violação é, justamente por isso, tão combatida.
A liberdade de expressão, num mundo conectado, engloba as redes sociais, ambiente alcançado pelo Provimento 205/2021 do Conselho Federal da OAB, que veda, no parágrafo único do seu art. 6º, “em qualquer publicidade a ostentação de bens relativos ao exercício ou não da profissão, como uso de veículos, viagens, hospedagens e bens de consumo, bem como a menção à promessa de resultados ou a utilização de casos concretos para oferta de atuação profissional”.
<blockquote class="jota-article__eye">O dispositivo em referência trata de dois temas distintos: liberdade de expressão e obrigação de resultado x obrigação de meio.</blockquote>
O assunto que tem causado mais dissabor entre a classe cuida da vedação à ostentação de bens materiais. Para um melhor entendimento, façamos, portanto, a sua divisão.
A “ostentação de bens relativos ao exercício ou não da profissão, como uso de veículos, viagens, hospedagens e bens de consumo” é decisão que passa pelas preferências pessoais de cada um, não cabendo ao Estado, ou aqui, ao Conselho Federal da OAB, interferir na liberdade de expressão de seus membros, uma vez que isso obriga os advogados e as advogadas a se conformarem com o padrão de comportamento daqueles que instituíram a norma e que possivelmente serão substituídos por outros tão logo a gestão atual acabe.
Para ficar mais claro, imaginemos o contrário: visualize a edição de norma que impõe a obrigatoriedade de todos os membros da OAB ostentarem em seus perfis pessoais e profissionais os seus veículos, viagens, hospedagens e bens de consumo.
Absurdo, não é?! Então, seja para proibir, seja para obrigar, nenhuma democracia liberal convive com a ideia de ver imposta sobre seus membros as preferências pessoais daqueles que editam as normas.
A narrativa que sugere que a vedação alcançaria tão apenas a ostentação na publicidade dos serviços advocatícios e não aquela feita em canais pessoais não convence, já que há uma impossibilidade de vinculação do estilo de vida pessoal à profissão e, dessa forma, como viabilizar, por exemplo, a postagem nas redes sociais dos frutos acumulados se esse acúmulo precisa estar dissociado do trabalho, ferindo a própria lógica da economia capitalista, que se orgulha de ostentar riquezas decorrentes das oportunidades criadas pelo sistema.
Esse pensamento, inclusive, ressignificou a relação do indivíduo com o poder da Igreja e da autoridade política ao longo dos séculos, de maneira que a história da humanidade, para Leo Huberman<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, seria a sucessão de diferentes formas de produção de riqueza pelo homem, que firma, a partir disso, os critérios de legitimação dos governantes.
Adam Smith, por exemplo, ao expressar a sua preocupação na relação entre Estado (no século XVIII seria a sociedade política, de maneira que pedimos licença para fazer aqui um anacronismo com os termos de hoje) e economia, defendeu que não cabia à autoridade política impor um ideal de vida a ser compartilhado entre as pessoas, revelando que um liberal é um defensor da autonomia e que cabe ao Estado construir espaços de exercício dessa liberdade individual.
Para John Stuart Mill, há de se verificar “a natureza e os limites do poder que pode ser legitimamente exercido pela sociedade sobre o indivíduo”, evidenciando, com isso, a “proteção contra a tirania da opinião e do sentimento prevalente; contra a tendência da sociedade de impor, por outros meios que não as penalidades civis, suas próprias ideias e práticas, na forma de regras de comportamento, sobre aqueles que delas discordam”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Segundo Jaime Barreiros Neto, Mill rejeita qualquer forma de despotismo ou absolutismo por acreditar que “todo sistema político que priva o indivíduo de opinar sobre o seu próprio destino viola a dignidade da pessoa humana e põe em perigo a justiça social”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, evidenciando, assim, a importância da liberdade individual.
A ostentação é tão legítima quanto a não ostentação, pois ostentar ou não ostentar o estilo de vida que se leva não é crime, mas sim liberdade de expressão. Eventuais reflexos sobre a conduta daquele que decide expor ou preservar a si mesmo, punem ou agraciam a sua própria pessoa, não afetando a esfera individual do outro, que, caso de alguma forma se sinta atingido pelo não compartilhamento daquela abundância, pode, facilmente, não acompanhar o dia a dia mostrado nas redes sociais do advogado.
A convivência dentro de uma sociedade plural e multifacetada exige tolerância. Diversos são os pontos de vista divergentes e inúmeras são as tentativas de fazer prevalecer a sua visão pessoal.
No mundo contemporâneo, interligado, capitalista, materialista e que vive a era do “compartilhamento de experiências”, onde, como explica Yuval Noah Harari, “as pessoas são incentivadas a entender o que está acontecendo com elas em termos de como os outros as veem […] e no processo mal percebem o que eles mesmos estão sentindo. Na verdade, o que sentem é cada vez mais determinado pelas reações on-line”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, há de se ter cautela com o conteúdo que se consome e com a postura que se adota nas redes sociais, nenhum desses “cuidados”, todavia, pode ser imposto pela Ordem dos Advogados, sob pena de violação às garantias e liberdades constitucionais.
A segunda parte da norma em análise veda a “menção à promessa de resultados ou a utilização de casos concretos para oferta de atuação profissional”, tratando aqui, como se antecipou, da discussão já antiga sobre profissionais liberais e obrigação de meio ou resultado.
Sobre o tema, a jurisprudência do STJ<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> é no sentido de que “os contratos de prestação de serviços de advocacia […] encerram uma obrigação de meio, na qual a contratada se obrigou tão-somente a bem realizar as atividades ali descritas, desatrelada à obtenção de um resultado específico”, logo, ao que nos parece, a captação de clientes com foco na promessa de resultado, longe de ser conduta proibida, é algo que atrai para si a responsabilidade objetiva por encerrar uma obrigação de resultado, diante da interpretação a contrario sensu dos precedentes do STJ, de maneira que proíba ou não a OAB esse tipo de vinculação, não caberá ao advogado ou advogada que dessa forma atuou furtar-se de eventual responsabilidade civil.
O certo é que a complexidade da vida em sociedade impõe cada vez mais a edição de normas que disciplinem as relações, sem esquecer jamais que o controle externo sobre as ações dos indivíduos é limitado pelas garantias trazidas em nossa Constituição.
O estudo da história nos traz uma regra clara: o de que não devemos julgar o passado com os olhos do presente e o presente com os olhos do passado. O olhar para trás, como já dizia Steve Jobs<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, nos permite conectar alguns pontos na busca da solução de problemas atuais, nunca problemas vencidos, que já foram solucionados com aquilo que se dispunha na época, e nunca problemas futuros, cuja antecipação serve apenas para agravar a mazela.
O grande risco do “olhar para trás” é querer trazer para o presente valores passados, que não se coadunam mais com uma sociedade plural e multifacetada como a nossa. Os choques de opiniões regem várias disputas sociais desde sempre, daí o porquê de Weber enfatizar a importância das normas que regem a vida em sociedade serem impessoais e racionais, uma vez que de pessoalidade e irracionalidade, bastam as demandas e os argumentos que cada um de nós levanta em defesa própria.
&nbsp;
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Cf., História da riqueza do homem, Leo Huberman.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> MILL, John Stuart. Sobre a liberdade e a sujeição das mulheres. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 75/76.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> BARREIROS NETO, Jaime. Teorias da democracia. Salvador: Faculdade Baiana de Direito, 2019, p. 68/69. Disponível em: &lt;http://srv24.teste.website/~faculd27/wp-content/uploads/2020/ 
06/teorias-da-democracia_compressed.pdf&gt;. Acesso em: 10 de abril de 2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> HARARI, Yuval Noah. 21 Lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 120
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> REsp 1659893/RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino – Terceira Turma, DJe 19/03/21.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> “You can’t connect the dots looking forward, you can Only connect them looking backwards” Steve Jobs.

juan-marin-Gb2TkSGavww-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Uma análise do parágrafo único do art. 6º do Provimento 205/2021 do Conselho Federal da OAB

A ostentação como liberdade de expressão

Uma análise do parágrafo único do art. 6º do Provimento 205/2021 do Conselho Federal da OAB