Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">
"Men at some time are masters of their fates; 
The fault, dear Brutus, is not in our stars, 
But in ourselves, that we are underlings".
<footer class="jota-article__quote-cite" style="text-align: left;">Shakespeare, Júlio Cesar, Ato 1, Cena 2</footer>
</blockquote>
Ao longo da história, estadistas e diplomatas tiveram muitas vezes de administrar a delicada situação de um Estado de proporções relativas que, pela riqueza da sua produção e pela sua posição geográfica privilegiada, adquiria uma importância estratégica vital para um ou mais Estados vizinhos de dimensões maiores, que, contudo, não eram capazes de absorvê-lo para transformá-lo em uma província sua interna. Esse processo de tentativa de absorção de um ator vital, normalmente, leva a uma reestruturação profunda da ordem mundial. O exemplo clássico dessa situação é a relação entre Egito e Roma na Antiguidade.
Aí reside mesmo todo o pano de fundo para o encanto da história de Cleópatra, de Marco Antônio e do fim da República romana. Cleópatra, com o apoio de Júlio César, reinava sobre um estado que era literalmente a cesta de pão de Roma, provendo a República dos grãos necessários ao seu sustento. Além disso, o Egito dominava as rotas comerciais de Roma com a África Central, as Arábias e as Índias, cujas especiarias eram transportadas pelo Nilo. O Egito era a joia da coroa de Roma, que não poderia sobreviver sem ela.
Na guerra civil que se seguiu ao assassinato de Júlio César em 44 a.C., Cleópatra se aliou ao Triunvirato de Octaviano, Lepidus e Marco Antônio, com quem teve um caso. Marco Antônio passou, a partir de então, a se apoiar em Cleópatra e na riqueza do Egito para financiar as suas operações militares. A relação entre os dois evoluiu mesmo para um casamento, para o que Marco Antônio teve de se divorciar da irmã de Octaviano: Octávia, a jovem. Era o início de uma outra guerra civil, desta vez entre Marco Antônio e Octaviano, que duraria mais de uma década.
A pujança do Egito levou mesmo Cleópatra e Marco Antônio a perseguirem uma reformulação geopolítica da Antiguidade, com o intento de colocar Roma sob a tutela do Egito. O projeto foi derrotado pelas forças de Octaviano na Batalha Naval de Áccio (31 a.C.), o que levou ao famoso suicídio do casal. A vitória consolidou o poder de Octaviano, que recebeu o título de Augusto pelo Senado em 27 a.C., em um evento que marca o fim do período republicano e o início do período imperial em Roma, o que envolveu, também, a incorporação do Egito como uma província de propriedade pessoal do Imperador. A beleza de Cleópatra, em suma, simbolizava a própria personificação da importância estratégica do Egito para Roma.
Note, cara leitora, que, no mundo contemporâneo, a Ucrânia desempenha um papel análogo ao que, no mundo antigo, desempenhava o Egito. Considerada a cesta de pão da Europa, a Ucrânia é responsável por cerca de 11,5% de todo o trigo produzido no mundo. Além disso, o país é também um grande produtor de fertilizantes, onde, por exemplo, o grupo norueguês Yara, o maior fornecedor para o mercado europeu, mantém grande parte da sua produção<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Kiev, assim, possui uma importância estratégica crucial tanto para Bruxelas quanto para Moscou.
O padrão histórico demonstra que tentativas de absorção de um Estado que possui uma importância estratégica crucial soem produzir uma reestruturação da ordem internacional. Tal qual a absorção do Egito por Roma na Antiguidade levou ao fim da República, a guerra na Ucrânia está a provocar uma reestruturação da ordem mundial em uma série de níveis, dos quais se destacam pelo menos três.
O primeiro, e mais evidente, se dá no nível da segurança internacional. O conflito no Leste Europeu está gerando uma rápida reorganização das alianças militares e dos investimentos em defesa, preconizando o advento de uma era de militarização global. Países com uma tradição consolidada de neutralidade como a Suécia, a Finlândia e a Suíça assistem a uma rápida mudança de suas opiniões públicas internas, no sentido de abandono gradativo de sua postura tradicional para, como no caso de Helsinque, por exemplo, iniciarem um processo de adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), justamente o pomo da discórdia com o outro bloco que se organiza, centrado na parceria estratégica entre Moscou e Pequim.
O segundo nível de reestruturação da ordem mundial se dá no tabuleiro econômico-financeiro. As sanções impostas à Rússia estão forçando a um redirecionamento dos fluxos de comércio e investimentos globais que, dentro de alguns anos, produzirá uma nova geografia econômica mundial, com uma nova distribuição internacional do trabalho. Pairam dúvidas, neste momento, acerca do futuro do dólar norte-americano como moeda de reserva global, em face da possibilidade de que, do lado do bloco russo-chinês, outras unidades de referência sejam adotadas para as transações internacionais, como o renmimbi, o ouro e mesmo as criptomoedas.
O terceiro nível, por fim, que é uma consequência dos outros dois, se dá no campo mais imediato da segurança alimentar. Dada a enorme participação da Rússia e da Ucrânia nos mercados internacionais de energia, fertilizantes e commodities agrícolas, a reestruturação da ordem mundial e dos fluxos econômico-comerciais impostos no curto prazo inexoravelmente levarão a um hiato entre as necessidades imediatas e capacidade de realocação da produção desses insumos estratégicos, o que tende a produzir um choque de oferta dos produtos de base, impactando uma economia global já fustigada por uma inflação crescente. Desnecessário lembrar, o impacto de uma eventual falta global de alimentos será desproporcionalmente sentido pelos mais pobres, com quem deve estar a maior preocupação dos governos neste momento.
O ponto do momento atual, cara leitora, é o da definição do caráter essencial desta nova ordem mundial que se anuncia. O momento é ainda de incerteza, apesar de haver claros indícios de que a reorganização das forças produtivas mundiais se dará em um processo de reinternalização e, possivelmente, de regionalização da produção, em uma dinâmica oposta à da intensificação do processo de globalização que se verificava desde a queda do Muro de Berlim em 1989.
“Estamos em um novo mundo”, vaticina Martin Wolf, no qual “a dissociação econômica se tornará profunda e irreversível”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Independente do caráter desse novo sistema, se global, regional ou nacional, o fundamental, e pelo que a humanidade deve se bater de agora em diante, é que ele seja estruturado com base em regras claras e equânimes, sob a égide do Direito Internacional. Cessante ratione legis cessat ipsa lex.
*
Em sendo hoje dia 1º de abril, não poderia deixar de compartilhar com a leitora <a href="https://www.youtube.com/watch?v=tVo_wkxH9dU">o documentário da BBC</a><a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> recuperado pelo embaixador José Antônio de Macedo Soares na última edição do seu “Calendário do Futuro”. Trata-se de um episódio do programa “BBC Rural”, veiculado em 1º de abril de 1957, no qual se apresentava a colheita daquele ano das árvores de spaghetti no cantão de Ticino, na Suíça. Naquele ano, o “dia das fake news”, como o chama o embaixador Macedo Soares, teria pegado muitos telespectadores, inclusive o próprio então diretor-geral da emissora, Sir Ian Jacob, que caíra na troça. Nem só de pão vive o homem.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://theconversation.com/ukraine-how-the-global-fertiliser-shortage-is-going-to-affect-food-179061">https://theconversation.com/ukraine-how-the-global-fertiliser-shortage-is-going-to-affect-food-179061</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.ft.com/content/fc9e7fd7-0476-4e37-a135-538aeecbe5b2?emailId=6239de1a1625210004cd220d&amp;segmentId=7d033110-c776-45bf-e9f2-7c3a03d2dd26">https://www.ft.com/content/fc9e7fd7-0476-4e37-a135-538aeecbe5b2?emailId=6239de1a1625210004cd220d&amp;segmentId=7d033110-c776-45bf-e9f2-7c3a03d2dd26</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://www.youtube.com/watch?v=tVo_wkxH9dU">https://www.youtube.com/watch?v=tVo_wkxH9dU</a>

dea-piratedea-YbyAr2Gqbq8-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Notas sobre o padrão histórico de reorganização do sistema internacional

Cleópatra, a Ucrânia e a reestruturação da ordem mundial

Notas sobre o padrão histórico de reorganização do sistema internacional e a nova ordem mundial que emergirá após a guerra na Ucrânia