Pietra Vaz Diógenes da Silva

Quanta informação existe no mundo? Com certeza, existe mais entre a nuvem e o disco rígido do que pode imaginar nossa vã filosofia: de 1986 até 2007, a quantidade de exabytes compactados de forma otimizada passou de 2,6 para 295, <a href="https://science.sciencemag.org/content/332/6025/60.abstract" target="_blank" rel="noopener noreferrer">conforme publicação na revista Science</a>. Considerando que cada exabyte equivale a 1.1018 bytes, e que <a href="https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3854411" target="_blank" rel="noopener noreferrer">estima-se que o armazenamento cresça cerca de quatro vezes a cada três anos</a>, deve-se ter atualmente um absurdo número de 22 dígitos para expressar, em bytes, todas as informações armazenadas de forma analógica ou digital.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a> 
Em meio ao constante aprofundamento da hiperconexão da sociedade, em que cada vez mais informação é produzida e comunicada, cabe então questionar: de que adianta tantas informações, se não conseguimos manejá-las? Para que servem tantos dados, se não conseguimos acessá-los? De que valem os microdados, se não conseguimos organizá-los? Esses questionamentos, que são sobretudo filosóficos, ganham nova complexidade quando sua motivação é pública. Acontecimentos recentes ilustram essa angústia no cenário brasileiro.
A notícia de que a Plataforma Lattes estava fora do ar já <a href="https://twitter.com/search?q=lattes%20until%3A2021-07-23%20since%3A2021-07-22&amp;src=typed_query&amp;f=live" target="_blank" rel="noopener noreferrer">rodava o Twitter</a> desde sexta-feira (23/07/2021). No início desta semana, a impossibilidade de acessar não apenas o Lattes, mas também os demais sistemas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTI), foi percebida com preocupação por usuários de todo o Brasil.
O CNPq informou, <a href="https://www.gov.br/cnpq/pt-br/informe-cnpq-indisponibilidade-dos-sistemas" target="_blank" rel="noopener noreferrer">em nota publicada durante a tarde do dia 27/07/2021</a>, que a causa da indisponibilidade dos sistemas havia sido diagnosticada e que sua reparação já havia sido iniciada. A nota afastou as possibilidades de perda de dados da Plataforma Lattes e de comprometimento do pagamento de bolsas, contrariando as notícias de que não haveria backup dos dados, mas não deu fim à insegurança compartilhada por pesquisadores, acadêmicos e demais cidadãos.
Ainda que o conteúdo da nota mostre-se verdadeiro e não haja perda de dados, o fato é que já ocorreu prejuízo. A constatação de que a <a href="https://twitter.com/pablosaraiva/status/1419995227591479315" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Plataforma Lattes utiliza Apache 2.2.3 como servidor</a> surpreendeu programadores, uma vez que <a href="https://httpd.apache.org/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">a Apache HTTP Server Project descontinuou todo o desenvolvimento e revisão de </a><a href="https://httpd.apache.org/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">patch</a><a href="https://httpd.apache.org/" target="_blank" rel="noopener noreferrer"> da série 2.2</a> – a versão mais recente é a série 2.4.48. Isso significa que o sistema, que de certa forma representa o melhor que temos em ciência, tecnologia e inovação no Brasil, ironicamente era mantido por um servidor obsoleto.
A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc85.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Emenda Constitucional nº 85</a>, de 2015, incluiu na Constituição o seguinte dispositivo: “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação”. Esse esforço normativo não se coaduna com o servidor ultrapassado utilizado pela Plataforma e, em verdade, tem se mostrado pouco eficiente, pois <a href="https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2020/09/corte-de-verbas-da-ciencia-prejudica-reacao-a-pandemia-e-desenvolvimento-do-pais" target="_blank" rel="noopener noreferrer">são decrescentes os gastos com pesquisa científica no país</a>. A a possibilidade de perda das informações guardadas nos sistemas do CNPq contribuem ainda mais para o cenário de insegurança que se instalou na pesquisa brasileira.
São muitos os aspectos da ciência que agora se encontram em risco: organização pessoal e financeira de pesquisadores; integração de grupos de pesquisa; devido cumprimento de editais e demais atividades científicas; efetividade de direitos fundamentais, especialmente em meio à pandemia; e mesmo elaboração de novas políticas públicas.
<blockquote class="jota-article__eye">Os dados dos sistemas do CNPq ilustram a realidade da pesquisa brasileira. A partir deles, é possível analisar muitos aspectos da nossa ciência, das tendências de desigualdade entre gêneros e regiões até o mapeamento de áreas de concentração por tema e de interação entre instituições.</blockquote>
Todas essas informações, e várias outras, são essenciais para o desenho de políticas públicas de qualidade, de forma a aprimorar o desenvolvimento científico nacional.  Sabe-se bem que a avaliação de leis e políticas públicas “<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/politicas-publicas-legislacao-16122020">se vulnerabiliza quando o sistema de informações e dados atualizados não está disponível ou é mal estruturado</a>”.
Mas como é possível fortalecer a pesquisa se não temos acesso aos dados necessários para sequer compreendê-la? Como pensar em simplificação e transparência ativa em procedimentos envolvendo nossas pesquisas, incluindo no âmbito da difusão dos resultados, se não há solidez no armazenamento e na disponibilização da informação?
Esse não é o primeiro evento que promove a desconfiança dos brasileiros com relação ao manejo da informação pública. O corte no orçamento do Censo IBGE é o maior exemplo disso, pois ainda que a  Lei de Diretrizes Orçamentárias aprovada tenha garantido o orçamento para o Censo 2022, <a href="https://geocracia.com/ibge-nao-vai-alterar-censo-2022-para-captar-efeitos-da-pandemia/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">a redução de seu valor compromete sua qualidade</a>. Outro exemplo notório ocorreu no início de 2021, quando o Portal da Transparência do governo federal ficou fora do ar por dez horas após a divulgação de <a href="https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/01/27/portal-da-transparencia-fica-fora-do-ar-apos-divulgacao-de-gasto-com-alimentacao" target="_blank" rel="noopener noreferrer">reportagem sobre quase dois bilhões de reais gastos pela União com alimentos e bebidas</a>. A justificativa de que a instabilidade foi causada por uma grande quantidade de acessos é razoável, mas um impasse legítimo é criado na confiança dos cidadãos com relação ao governo quando o Portal fica indisponível para acesso justamente quando são buscados dados não favoráveis ao governo. Afinal, cabe ao poder público realizar a gestão transparente da informação, bem como protegê-la, <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">conforme a Lei de Acesso à Informação</a>.
Para além de problemas de ergonomia e usabilidade, constatados tanto no <a href="http://paginapessoal.utfpr.edu.br/dalila/ergonomia/artigos-neo/Artigo%20ESPACIOS%202016.pdf/view" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Portal da Transparência</a> quanto <a href="https://www.proceedings.blucher.com.br/article-details/avaliao-da-usabilidade-da-plataforma-lattes-compreendendo-os-nveis-de-desempenho-e-satisfao-do-usurio-25904" target="_blank" rel="noopener noreferrer">na Plataforma Lattes</a> em pleno funcionamento, a impossibilidade completa de acesso às informações públicas apenas contribui para o sentimento de insegurança vivido pelos pesquisadores. Ainda que os sistemas voltem, o que esses cinco dias de falta de acesso indicam? Por que a instabilidade só foi noticiada pelo próprio CNPq na terça-feira, se os portais estavam indisponíveis desde sexta-feira? Como pesquisar sem ter certeza das bases da própria atividade de pesquisa?
De fato, é impressionante pensar na quantidade de informação que existe no mundo. É mais do que um ser humano jamais conseguiria ler ou visualizar em vida. Trata-se de uma constatação humana, que revela uma miudeza que nos é intrínseca, e por isso deve ser abraçada e reconhecida. Mas é angustiante pensar na quantidade de informação que há sob a gestão do poder público e que deveria ser acessada por nós, mas é travada por uma opacidade antidemocrática. Trata-se de uma constatação contextual que mostra um obstáculo ao Estado Democrático de Direito, e por isso deve ser diagnosticada e combatida.
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JOTA

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