Carlos Henrique Alencastro

“É contra o Direito julgar ou responder sem examinar a coisa em conjunto. Apenas considerando uma parte qualquer do mesmo” [1].
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No dia 16 de julho, um dos condenados pela morte do índio Galdino, à época menor, teve o recurso de apelação negado em face de ato da banca examinadora que o excluiu do certame de agente da polícia civil do DF, durante etapa de investigação da vida pregressa.
Segundo o relator, é “ [...] de se dar prestígio à moralidade pública, levando em consideração fato trazido à tona em fase regular do concurso público, para cuja avaliação a autoridade pública está devidamente autorizada, não só por lei, mas também pelo princípio da moralidade constitucional [...]”.
A discussão, em síntese, se resume a uma ponderação entre direito ao esquecimento, vedação constitucional a pena de caráter perpétuo, e à extensão da interpretação quanto ao princípio da moralidade, além da natureza jurídica das regras de edital e da soberania da banca examinadora. A par disso, essa reflexão traz à tona algumas outras, reflexas, como maioridade penal, exigência de condições supostamente subjetivas para a ocupação de cargos públicos, e o direito-dever de ressocialização social.
Antes de tudo, e isso é muito importante observar, a jurisprudência tem cada vez mais tentado resistir à tentação de intervir nas decisões de bancas examinadoras. Recentemente, o próprio STF, em sede de repercussão geral, definiu:

““Os critérios adotados por banca examinadora de concurso não podem ser revistos pelo Poder Judiciário.” Esta tese de repercussão geral foi fixada pelo Plenário do  Supremo Tribunal Federal, em sessão nesta quinta-feira (23), no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 632853. Por maioria de votos, os ministros reafirmaram jurisprudência do Tribunal e assentaram que, apenas em casos de flagrante ilegalidade ou inconstitucionalidade, a Justiça poderá ingressar no mérito administrativo para rever critérios de correção e de avaliação impostos pela banca examinadora” [2].
Aparentemente o caso se amoldaria à exceção prevista pelo Supremo, e, portanto, permitiria um avanço no mérito. Difícil refutar a afirmação de que em ambos os lados há preceitos constitucionais de fundo insculpidos; mas ainda que não houvesse nenhum sentido constitucional de fundo, deve-se lembrar que questões tangenciadas por matéria penal, segundo o próprio Tribunal, estariam, por si só, aptas a mitigar e afastar eventual barreira quanto à “ofensa reflexa”.
Dito isso, a questão de fundo toca no seguinte ponto: a análise da vida pregressa é feita com base em requisitos objetivos, que transcendem os conceitos previstos até mesmo pela própria legislação penal-constitucional em função de um desdobramento do princípio da moralidade, ou comportaria outras divagações, de natureza subjetiva? Superada essa discussão, invariavelmente a Corte deverá discutir o eventual comprometimento da lisura e isonomia do certame a partir da definição destes critérios. Apesar da hediondez do crime que o impediu de ingressar na carreira, é irrelevante discutir, não obstante a insistência de alguns agentes políticos da sociedade, se a medida socioeducativa aplicada à época foi justa. Não se trata aqui também de discutir os limites de projeção da lei penal no tempo, porque parece que a discussão irradia mais para o campo administrativo. A Constituição, nisso, parece ser clara. Deve-se, porém, ir além.
Numa interpretação em bloco, pode-se dizer que certos cargos, sensíveis ao Estado, podem ou devem exigir requisitos especiais, como a idoneidade moral, justificada por certos ideais que funcionam como desdobramento do princípio da moralidade da Administração. De certa maneira, assemelha-se ao filtro previsto na Carta Maior que estabelece critérios balizadores para a indicação de ministros de tribunais superiores. Foi o que impediu Gim Argello de assumir o TCU – sendo que não possuía nenhuma condenação transitada em julgado –, e permitiu ao STF obrigar o Congresso a declarar a perda automática de mandato parlamentar de condenados no mensalão, não admitindo aquela outra interpretação no sentido de que seria essa uma decisão exclusiva da casa legislativa. Pode-se concluir então que a restrição ao cargo se dá em razão da natureza administrativa da questão. É preciso, no entanto, e com cautela, repensar a afirmação de Rui Barbosa, de que se deve tratar os iguais na medida de sua igualdade.
Mas em suma: se for para mudar a interpretação, que seja de maneira uniforme. Há uma tendência atual de descompasso entre lei, jurisprudência e realidade social, que talvez sugira, e com larga margem, uma releitura de certos vetores constitucionais. Insiste Lênio Streck que a principal falha do Direito é a de se deixar resumir por aquilo que os tribunais dizem que é. Segundo ele, perde-se no poder argumentativo de regras positivadas, ganha-se no “pan-principiologismo” [3]. As consequências são arrasadoras, onde o magistrado, diante de tudo isso, a pretexto de fazer justiça, pensa até “inovar” valer a pena.
O futuro dependerá da capacidade dos novos operadores de talhar um modelo que institua, em nível cívico-cultural, um diálogo claro, aberto e harmonioso, para ajudar a crescer um país que quer um pouquinho mais parecer um sonho distante, e tanto menos com um pesadelo vibrante. Daqui pra frente competirá aos futuros arquitetos, mais do que nunca, garantir e fiscalizar a harmonia de regras e princípios, sendo estes visíveis ou ainda invisíveis, na Carta da República. Que venha o futuro da democracia e da Constituição, com uma realidade um pouco mais doce, ou ao menos não tão amarga, para todos nós.
<hr />
[1] -  Celso, Digesto, liv. 1, tít. 3, frag. 24.
[2] - http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=290101.
[3] - http://www.conjur.com.br/2012-mar-22/senso-incomum-pan-principiologismo-sorriso-lagarto

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